David. Michelangelo. (1501-1504) Florença.
David ou Davi é uma das esculturas mais famosas do artista renascentista Michelangelo. O trabalho retrata o herói bíblico com realismo anatômico impressionante, sendo considerada uma das mais importantes obras do Renascimento e do próprio autor.
A escultura encontra-se em Florença, em Itália, cidade que originalmente encomendou a obra.É uma estátua em mármore e mede 5,17 m (cinco metros e dezessete centímetros). Devido à genialidade que sempre foi atribuída à obra, ela foi escolhida como símbolo máximo da República de Florença.
Havia em Florença um gigantesco bloco de mármore que havia sido esboçado por
Agostino de Duccio, mas que foi abandonado antes de se transformar em escultura.
Dois artistas disputavam a honra de esculpir o bloco para transformá-lo em uma
obra de arte: Leonardo da Vinci e Andrea Sansovino. Mas seria Michelangelo quem
ficaria responsável pela tarefa, devido à sua já consagrada fama de genial
escultor por causa de seu
Baco e de sua
Pietà (esculpida aos vinte
e três anos).
Michelangelo esculpiu
Davi nesta enorme rocha de
mármore, entre os anos de 1501-1504, como uma das mais belas representações do
corpo humano da história da arte. A escultura, um colossal adolescente de mais
de quatro metros e meio de altura, foi colocado no centro da cidade de Florença
para admiração pública. A nudez do
Davi acabou despertando a ira pudica
dos Florentinos que várias vezes o apedrejaram. Aretino, que criticou a
indecência e as liberdades anticlássicas do
Juízo Final, pediu ao
artista, em 1545, que cobrisse com folhas de parra em ouro as partes vergonhosas
do seu belo colosso.
Se para os outros a escultura era uma imagem pagã,
para Michelangelo tratava-se da mais perfeita forma criada por Deus: o corpo
masculino. Como anotou Romain Rolland, "para este criador de formas admiráveis,
que era simultaneamente um piedoso crente, um belo corpo era algo de divino ― um
belo corpo era o próprio Deus surgindo sob o véu da carne".
Essa crença
do artista na ideia de que é no corpo humano que a beleza divina melhor se
manifesta é comprovada nos versos que Michelangelo dedicou a seu amante
Cavaliere, quando diz que: "em nenhum lugar Deus se mostra mais a mim em sua
graça do que em alguma bela forma humana; e só isso amo, pois nisso Ele se
espelha".
Mais do que a simples representação de um adorável corpo
adolescente nu, a obra de Michelangelo trazia para dentro de si as proposições
máximas da estética e da filosofia do Renascimento. Superando o imperativo da
Antiguidade da "semelhança com a natureza", contida na ideia de imitação, o que
se pode ver é outra concepção, a de um triunfo da arte sobre a natureza, que se
realiza graças à imaginação e à inteligência do artista que pode recriar a
beleza absoluta que se acha incompleta no mundo natural, mas que está guardada
perfeita na sua alma.
Para o Renascimento o grande escultor seria aquele
que pela habilidade técnica produzisse o simulacro, a ilusão de que a vida
habitava o mármore. A antiguidade clássica, que inspirava os renascentistas,
baseava-se nessa proposição, e Virgilio, na
Eneida, alude tipicamente a
"bronzes que respiram suavemente e rostos vivos feitos de
mármore".
Concepção essa típica também dos tratados artísticos da época
de Michelangelo, como em Dürer: "E entende-se que um homem trabalhou bem quando
consegue copiar com precisão uma figura de acordo com a vida, de modo que o seu
desenho se assemelhe à figura e se pareça com a natureza. Sobretudo se a coisa
for bela, a cópia será considerada artística e fará jus aos mais altos
louvores".
Leonardo da Vinci e Leon Battista Alberti eram de parecer de
que a representação perfeita dos sinais físicos da emoção e dos estados de
espírito constituíam a tarefa máxima e mais difícil para o artista, pois, como
registrou Leonardo, a figura mais admirável é aquela que por suas ações melhor
exprime o espírito que a anima. O objetivo, então, era expressar as operações do
espírito através da forma, sendo a arte o melhor lugar de sua
tradução.
Segundo as premissas de Alberti, em seu tratado
De
pictura, o artista não deve apenas obter uma semelhança total do objeto que
representa e sua natureza; deve ainda acrescentar-lhe a beleza. Para a
realização dessa tarefa, a glória suprema do artista estaria em agrupar em si
mesmo três qualidades: invenção, composição e execução. Desse ponto de vista, o
Davi de Michelangelo satisfaz plenamente a teoria artística do
Renascimento.
Essa pragmática formal e estética, que implicava ainda em
se seguir os princípios da proporção justa, da harmonia e do decoro, no entanto,
deixava uma margem de liberdade ao artista, particularmente no momento em que
trata tanto do movimento dos corpos quanto da alma. Segundo Alberti, a arte deve
comunicar-se com o espectador no plano emotivo, convidando-o a participar das
dores e prazeres das figuras representadas, e estimulando de alguma forma a sua
simpatia ou imaginação. O pintor comove e persuade com a representação imóvel
daquilo que as figuras da sua história fazem, pensam e sentem.
Nesse
sentido, vale observar a narrativa inerente à própria escultura de Michelangelo
que, diferente do que imaginava Buckhardt, que se mostrava incomodado com o
contraste entre a fisionomia dramática do olhar e o corpo apolíneo do
Davi, a extrema tensão fisionômica revela em si toda a ação dessa
narrativa, que é transmitida pelos olhos que comunica a disponibilidade para
ação. Trata-se de um primado da consciência sobre o corpo, de uma subordinação
do potencial dinâmico da musculatura à temporalidade da consciência, que resume
a própria ideia da escultura para Michelangelo, como representação física de uma
ideia anterior, espiritual, captada pela consciência e fixada no corpo do
mármore.
Leonardo da Vinci ficou impressionado com aquilo que chamou de
"retórica muscular" do
Davi. É no próprio corpo que está inscrita a
história bíblica de Davi, nos seus detalhes musculares que representam a força e
a consciência da sua vitória contra o inimigo.
Através da aparente calma
emanada pela expressão de Davi, percebe-se a tensão interior pela postura do
torso ligeiramente inclinado e pela cabeça voltada para o lado, oferecendo o
perfil ao espectador. O herói bíblico não mostra sinais do combate vitorioso nem
demonstra arrogância. Transmite, isto sim, uma força viril, que nasce da
juventude e sustenta a beleza, o que a torna admirável.
O princípio
ordenador da concepção artística de Michelangelo é a ideia de
disegno,
que, como diz Luiz Marques, mais do que uma atividade gráfica ou resultado dela,
"tem acepções mais amplas e envolve noções como concepção projetual de uma
figura, organização sintética da forma, em especial da forma do nu humano".
"O que o jovem Michelangelo estuda em Giotto é, claramente, seu
disegno, vale dizer, uma síntese formal capaz de fornecer às artes
visuais um denominador comum e uma premissa intelectual. Tendo Michelangelo ou
Rafael por seu máximo expoente, o conceito de
disegno permanece com a
seiva mesma do legado do Renascimento, vale dizer, de uma concepção de arte
fundamentada na precedência lógica e ontológica do pensamento sobre o gesto."
(Luiz Marques)
O desenho é para o Renascimento o pai das três artes,
escultura, pintura e arquitetura, conseguindo reunir todas as coisas da natureza
num princípio único, seja uma forma ou uma ideia. Pode-se, portanto, concluir
que o desenho nada mais é do que a criação de uma forma intuitivamente clara e
correspondente ao conceito que o espírito contém e se representa, e do qual a
ideia é de certo modo o produto.
Tal definição está de acordo com as
concepções da "Academia platônica", segundo as quais as Ideias são realidades
metafísicas: elas existem como verdadeiras substâncias, ao passo que as coisas
terrestres são simplesmente suas imagens. São imanentes ao espírito de Deus e
existem como modelos das coisas no espírito divino.
Segundo Pietro
Bellori, os nobres pintores e escultores, imitando o primeiro Operário, formam
igualmente em seus espíritos um modelo de beleza superior e, sem afastá-los dos
olhos, emendam a natureza corrigindo suas cores e suas linhas.
Construída sob o controle absoluto dos meios e sobre a ideia do que
seria a perfeição absoluta no reino metafísico, o
Davi guarda, segundo
Romaind Rolland, "uma força tumultuosa em repouso" tal qual exigia
Alberti.
Michelangelo não esgota sua obra identificando imitação com
semelhança. Ao contrário, tentará encontrar a beleza e a graça numa ideia de
corpo que representa a superação dos exemplares particulares da natureza. Para
ele, a beleza é o reflexo do divino no mundo real, pois, como afirmou em um de
seus poemas "o que é imortal quer as coisas à sua semelhança. É esta, e não
aquela, a que teus olhos se lança". Como apontou Panofsky, "as concepções
artísticas do renascimento arrancam o objeto do mundo interior da representação
subjetiva e o situam num 'mundo exterior' solidamente estabelecido".
Era
o que pensava Ficino, que definia a beleza como a semelhança evidente dos corpos
com as Ideias ou como o triunfo da razão divina sobre a matéria. E era crença de
Michelangelo, ao compor seu
Davi, que a figura humana é a forma
particular em que ele encontra essa beleza divina mais claramente
manifesta.
O escultor acreditava que a Ideia deve submeter a matéria,
pois não há
concetto que não possa ser expresso sob a forma da escultura.
É o que fica claro no seu soneto escrito para Vittoria Colonna: "Não tem o ótimo
artista conceito algum/ que mármore em si não encerre/ em sua matéria, e só
àquele chega/ a mão que obedece ao intelecto".
Alberti preconiza que a
obra de arte era a tradução de uma ideia de beleza que está longe de acontecer
na natureza, precisando da imaginação do artista para concretizá-la de fato no
mundo real. Michelangelo era quem realizava esse ideal, proclamando
constantemente que a beleza terrestre é o "véu mortal" através do qual
reconhecemos a graça divina, que só a amamos e devemos amá-la porque ela reflete
o divino (assim como, inversamente, é o único meio de atingirmos a visão do
divino) e que a contemplação da beleza dos corpos deve elevar a alturas celestes
"o olhar sadio".
Desse ponto de vista, a
divina proporzione não
seria outra coisa que a imagem terrena das ideias metafísicas, imanentes ao
espírito de Deus, que seriam transpostas para a imagem criada pelo artista. E o
artista, como Prometeu, seria aquele que consegue arrancar a "
scintilla della
divinita" ao espírito divino, captando do intelecto de Deus o desenho
interior das formas ideais e revelando-as ao homem na sua obra. O verbo se
fazendo carne.
Seguindo um raciocínio platônico, Michelangelo atribuía um
valor metafísico a esta capacidade de perceber em espírito a beleza que se
traduziria posteriormente em obra de arte. A obra de arte seria a criação de uma
forma que corresponda ao conceito que o espírito faz da ideia
absoluta.
Esses caminhos são os de uma metafísica da arte que se empenha
em deduzir a fenomenalidade da criação artística de um princípio supra-sensível
e absoluto, ou, conforme expressão que utilizamos hoje de bom grado, de um
principio cósmico.
A arte de Michelangelo fazia parte da mesma cultura
humanística de Alberti, aquela que é a expressão visual de uma concepção
harmoniosa da vida e do mundo que deleita e instrui todo aquele que com ela
entra em contato. A obra de arte teria, por meio da beleza, a capacidade de
elevar a mente do espectador "a uma contemplação da beleza divina e,
consequentemente, à comunhão com Deus". Por sua capacidade de criar com a mesma
maestria com que Deus criou o mundo, Michelangelo foi qualificado no seu próprio
tempo como "o divino".
Para o escultor, existe uma beleza espiritual que
transcende a beleza material e é a ela que se deve buscar na concretização de
uma obra de arte: "Pois se minha alma não fosse criada igual a Deus, nada
desejaria a não ser a beleza exterior, que agrada aos olhos; mas, já que esta é
tão falaz, ela a transcende em direção à forma universal".
Esta
consciência o coloca diante da matéria marmórea, investido de um poder de
execução mais poderoso que o seu poder de conceber (
concetto) e dar forma
às promessas da sua imaginação. Davi será libertado de dentro do mármore, um
herói que já sabe de sua vitória antes mesmo que o combate aconteça. De sua
postura orgulhosa e seu olhar encolerizado, sem medo e seguro de sua força
inumana, ele se ergue, protegido por sua coragem, no momento mais brilhante e
belo da sua vida de adolescente e homem, de herói que a glória de sua missão
consagra.
Michelangelo não copia a Antiguidade, ele a recria, a reinventa
na sua modernidade de homem renascentista. O herói cristão é também um herói
grego, uma espécie de Hércules ou Teseu diante do Minotauro. Concentrado em sua
audácia que o levará, brevemente, à ação, ele tem força, ira concentrada e poder
de antever o resultado de seu ato. Encarna em si o preparo do guerreiro grego e
as virtudes da Renascença. Momento em que o nu transfere seu significado da
esfera física para a esfera moral.
A sede do triunfo irradia-se pela
escultura. Os seus mínimos gestos não traem seu pensamento secreto da certeza da
vitória? A massa de músculos prepara-se para agir, enquanto o gesto das mãos
traduz a coragem tranquila e o olhar indica a decisão orgulhosa. O tensionamento
de um lado do corpo e o relaxamento do outro cria o contraste entre força e
segurança. O peso repousa sobre a perna direita e o movimento da esquerda
responde ao do braço esquerdo erguido. O lado esquerdo é todo liberdade,
enquanto o direito parece conter em si a força em potência. Haveria aqui a
sobrevivência da crença medieval, que atribuía ao lado direito do corpo o
privilégio da proteção divina, enquanto o esquerdo era dominado pelo
mal?
Davi é um herói desarmado, sem espadas, sem vestimentas, sem
armaduras. Michelangelo concentrou-se na potência muscular, na força moral do
olhar. Não há nada de pitoresco nessa imagem, nada que distraia o espectador da
beleza pura. Para o conceito de arte clássica, a unidade orgânica do corpo é o
modelo da própria unidade artística. No texto de Alberti: "o corpo humano não é
apenas o suporte privilegiado da verdade ou da expressão das paixões: é o
alicerce, a medida e o modelo da unidade da representação em seu
conjunto".
O seu triunfo irradia-se por todo o corpo, como uma energia
latente que dilata os músculos e incha as veias tão visíveis. Foram "os gregos
que descobriram no nu a possibilidade de personificação da energia, (...) desde
tempos homéricos, os deuses e heróis da Grécia exibiam orgulhosamente a sua
energia física".
O sentido da vida é inferido na observação dos músculos,
local de sua presença máxima. A vida que não se deixa afrouxar apenas por ser
pedra. A vitalidade dos volumes está por toda parte, coxas, braços, peito,
nádegas, ombros, rosto. Michelangelo revelou a ideia para a arte de que o tema
mais elevado era constituído pelo nu masculino, fisicamente perfeito, e
executado de tal forma que o corpo humano pudesse transmitir através de sua
aparição um movimento de energia transbordante de vida. Mais tarde, William
Blake, um aficionado pelo escultor, diria que "a energia é a eterna
delícia".
Comentando o sentido dos nus de Michelangelo, Keneth Clark diz:
"Qualquer que fosse a sua intenção explícita, é evidente que Michelangelo os
interpretava como mediadores entre o mundo físico e o espiritual. A sua beleza
física é uma imagem da perfeição divina. Os seus movimentos atentos e vigorosos
são uma expressão da energia divina. Os belos corpos de jovens, segundo as
fórmulas do idealismo grego, encontravam-se tão sobrecarregados de valores
espirituais que puderam entrar ao serviço da cristandade".
A beleza do
corpo despido de Davi revela o profundo conhecimento que o escultor tinha de
anatomia, conhecimento este assimilado e subordinado a um ideal espiritual. Por
isso a energia, embora latente, mostra-se contida, como diz Walter Pater, ao
definir o que seria a principal característica de Michelangelo: "
delicadeza y
fuerza, que causan placer y asombro; energia de concepción que parece a cada
momento romper todas las cualidades de forma graciosa, pero que recobra luego
toque a toque um encanto que, por lo general, sólo se halla em las cosas
naturales más sencillas ― ex forti dulcedo".
Segundo disse John A.
Symonds: "No
Davi Michelangelo mostrou pela primeira vez aquela qualidade
de
terribilità, de enorme força apavorante, pela qual posteriormente se
tornou célebre".
Demais, sabemos do tema neoplatônico da persistência da
Ideia como manifestação metafísica, provinda do tratado de Alberti sobre a
pintura, que estará sempre presente na poesia do escultor. Em Michelangelo, o
amor ao corpo é o amor ao espiritual, aquilo que não se apaga com o tempo e leva
a mente à contemplação do divino. Davi, embora represente o corpo humano, escapa
de sua realidade corpórea, transmitindo diretamente uma ideia pura. A natureza
do corpo criada pela essência do espírito.
artigo de:
Jardel
Dias Cavalcanti
retirado de: http://www.digestivocultural.com/