sexta-feira, 23 de setembro de 2011

MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE: ARCÁDICO, PRÉ-ROMÂNTICO E SATÍRICO EM PORTUGAL

 



Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludíbrio, como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.


MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE, BOCAGE, como o povo o clamava, ou MANUEL MARIA, como era conhecido pelos mais íntimos, se tornou um dos poetas mais importantes do século XVIII e, apesar de ter deixado fama de grande satírico e improvisador, sua obra o coloca como um dos melhores sonetistas líricos de toda a literatura portuguesa.

Nasceu em Setúbal, no dia 15 de Setembro de 1765. Neto de um Almirante francês que viera organizar a nossa Marinha, filho do jurista José Luís Barbosa e de Mariana Lestoff du Bocage, cedo revelou a sua sensibilidade literária, que um ambiente familiar propício incentivou.


 
O contato com a poesia veio precocemente. O próprio poeta reconhece que: “Versos balbuciei com a voz da infância”.


Perdeu a mãe aos dez anos e desde cedo, mostrou-se um jovem de temperamento exaltado. Aos 14 anos, em 1779, parte para Lisboa onde vai completar estudos na Academia Real da Marinha. Em pouco tempo dedica-se mais à boemia do que à disciplina da Academia.

Aos 16 anos, o temperamento rebelde manifesta-se mais uma vez: foge para alistar-se como soldado; mas não consegue se adaptar à vida do quartel e resolve mudar-se para a Marinha da Guerra, dois anos depois. Em 1786, ainda na Marinha, parte em viagem para as Índias, passando pelo Rio de Janeiro, tendo vivido na Rua das Violas, no sítio da Ilha Seca. Durante algum tempo, alimentou a ideia de morar no Brasil. De sua estada na Colônia resultou na admiração que devotou ao vice-rei Luís de Vasconcelos Sousa Veiga Caminha e Faro.

Viajou por quatro anos por Goa, Macau e Cantão, revelando grande desajustamento com relação ao clima, a vaidade e a cultura local, retratados em alguns sonetos críticos demonstrando sua insatisfação à sua estada. No Oriente, duas presenças não o abandonam: Gertrúria e Camões.

Os anseios de glória e fama evocam a cada instante os versos de “Os Lusíadas”, que Bocage trazia de memória. A honra e a própria sorte levam-no à proximidade com os heróis portugueses, cujos “nomes ressoam além dos astros”.

Regressou a Portugal graças à ajuda de amigos, em 1790. Em Lisboa, frequentou os grupos intelectuais que defendiam as ideias inovadoras da Revolução Francesa contrastando com a estagnação da sociedade portuguesa.

Em seu país natal, encontra o grande amor de sua vida, a Gertrúria, a musa inspiradora de seus poemas, casada com seu irmão, Gil Francisco Du Bocage.


SONETO XXIV


Da pérfida Gertrúria o juramento
Parece-me que estou inda escutando,
E que inda ao som da voz suave e brando
Encolhe as asas, de encantado, o vento.

No vasto, infatigável pensamento
Os mimos da perjura estou notando...
Eis Amor, eis as Graças festejando
Dos ternos votos o feliz momento.

Mas, Ah!...Da minha rápida alegria
Para que acendes mais as vivas cores,
Lisonjeiro pincel da fantasia?

Basta, cega paixão, loucos amores;
Esqueçam-se os prazeres de algum dia,
Tão belos, tão duráveis como as flores.


Aqui, os temas clássicos da fugacidade do tempo, da incerteza da vida e da inconstância do amor misturam-se às antecipações românticas do sentimentalismo desenfreado.


Já por bárbaros climas entranhado,
Já por mares inóspitos vagante,
Vítima triste da Fortuna errante,
Até dos mais desprezíveis desprezado;

Da fagueira Esperança abandonado,
Lassas as forças, pálido o semblante,
Sinto rasgar meu peito a cada instante
A mágoa de morrer expatriado.

Mas ah! Que bem maior, se contra a Sorte
Lá do sepulcro no sagrado hospício
Refúgio me promete a amiga Morte!

Vem, pois, ó Nume aos míseros propício,
Vem livrar-me da mão pesada e forte,
Que de rastos me leva ao precipício!


Esse soneto apresenta claro indício pré-romântico e traduz a dolorosa consciência do fracasso.
Ainda em 1790, ingressa na “Nova Arcádia” ou Academia de Belas-Letras, que, sob a liderança do brasileiro e mulato Pe. Domingos Caldas Barbosa (“Lereno”) e José Agostinho de Macedo (“Elmiro Tagídeo”) tentavam reconstituir a Arcádia Lusitana, extinta por inanição desde 1776.

Bocage adotou o pseudônimo arcádico de “Elmano Sadino” (Elmano - anagrama de Manoel e Sadino derivado do rio Sado, que corta Setúbal, terra natal do Poeta).
As reuniões da Nova Arcádia, realizadas na casa do conde de Pombeiro, às quartas-feiras, eram denominadas “As Quartas-Feiras de Lereno”.

Bocage, inicialmente, as frequentou comportadamente, porém conflitos constantes com os membros da Arcádia o afastam rapidamente da agremiação.


UMA SESSÃO DA ACADEMIA DE BELAS-LETRAS DE LISBOA OU NOVA ARCÁDIA


Preside o neto da rainha Ginga
À corja vil, aduladora, insana.
Traz sujo moço amostras de chanfana,
Em copos desiguais se esgota a pinga.

Vem pão, manteiga e chá, tudo à catinga;
Masca farinha a turba americana;
E o oragotango a corda à banza abana,
Com gesto e visagens de mandinga.

Um bando de comparsas logo acode
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode.

Aplaudem de contínuo as frioleiras
Belmiro em ditirambo, o ex-frade em ode.
Eis aqui de Lereno as quartas-feiras.


Nesse poema Bocage ao referir-se a rainha Ginga, remete a Ana de Sousa, rainha negra de Angola, que moveu guerra contra Portugal. No verso, Bocage pretende ofender o mulato Caldas Barbosa, brasileiro e “neto” de uma negra.

Em 1791, publicou o seu primeiro volume das “Rimas”, recebido com aplauso por alguns e desprezo por outros, ao qual se seguiram mais dois, respectivamente em 1798 e 1804.




Em 1797, é preso acusado de ofensas críticas à monarquia e à Igreja. Por essa época, o Poeta interessa-se pela Revolução Francesa, como se comprova nos versos a seguir:




Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim!) porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo que desmaia.
Oh! Venha... Oh! Venha, e trêmulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do gênio e prazer, ó Liberdade!


A aspiração do liberalismo, excitada pela Revolução Francesa e pela consolidação da República em 1797, é explicitada claramente por Bocage nesse soneto.

Num primeiro momento, sentindo que é chegada á hora da redenção, o sujeito poético, apostrofando a Liberdade, numa sequência de perguntas de retórica, questiona-a sobre onde se encontra e quem a impede; para em seguida, implorar à Liberdade o seu auxílio, o seu socorro e finalmente, no 2º terceto, o sujeito poético faz uma espécie de profissão de fé em relação ao caráter divino da Liberdade, proclamando-a “Mãe do gênio e prazer”.

No entanto, a causa principal de sua prisão é indicada por um poema erótico e político, intitulado "Pavorosa Ilusão da Eternidade", também conhecido por "Epístola a Marília".




PAVOROSA ILUSÃO DA ETERNIDADE




Pavorosa ilusão da eternidade,
Terror dos vivos, cárcere dos mortos,
D'almas vãs sonho vão, chamado inferno;
Sistema da política opressora,
Freio, que a mão dos déspotas, dos bonzos
Forjou para a boçal credulidade;
Dogma funesto, que o remorso arraigas
Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas;
Dogma funesto, detestável crença
Que envenenas delicias inocentes,

Tais como aquelas que no céu se fingem.
Fúrias, cerastes, dragos, centimanos,
Perpetua escuridão, perpetua chama;
Incompatíveis produções do engano,
Do sempiterno horror terrível quadro
(Só terrível aos olhos da ignorância)
Não, não me assombram tuas negras cores:
Dos homens o pincel e a mão conheço.
Trema de ouvir sacrílego ameaço
Quem de um Deus, quando quer, faz um tirano.


Nesse texto percebe-se a ousada crítica ao poder e a visão lúcida da íntima relação que existia entre os dogmas da Igreja e o poder absolutista dos reis. O inferno é concebido como um “freio” que os déspotas e tiranos inventaram para controlar a “boçal credulidade”. Por essa ideias, Bocage foi condenado como herege e blasfemo.

Bocage passou pelos tribunais do Santo Ofício da Inquisição e foi encarcerado no Limoeiro e por outros menos severos, acusado de ser autor de papéis sediciosos contra a segurança do Estado.

Depois de inúmeros pedidos e retratações, em Fevereiro de 1798, foi entregue pelo Intendente Geral das Polícias, Pina Manique, ao Convento de S. Bento e, mais tarde, ao Hospício das Necessidades, para ser "reeducado".

Na clausura dirigida pelos oratorianos, Bocage parece ter encontra um ambiente de calma e de trabalho intelectual que facilitou a sua conversão.

Cansado, acaba por confessar suas culpas, renegar sua vida de agitador e seus antigos escritos e converte-se à religião. Naquele ano foi finalmente libertado.

Referindo-se aos “distintos talentos” do Poeta, diz o Príncipe Regente que “se espera sirva a Deus Nosso Senhor, a Sua Majestade e ao Estado, e, útil a si, consolação aos verdadeiros amigos e parentes, que o vejam entrar em si verdadeiramente, abandonando todos os vícios e prostituições em que vivia escandalosamente”.

Os anos seguintes, que precederam a sua morte, foram bem dolorosos para o infeliz poeta, agitados de terrores e ansiedades, vendo-se pobre e doente.

Nesses últimos anos, o poeta vive com sua irmã e uma sobrinha, sustentando-as com traduções de livros didáticos. Para sobreviver, inclusive, teve de valer-se de um amigo (José Pedro da Silva) que vendia, nas ruas de Lisboa, suas derradeiras composições.

É nesta fase de sua vida que ocorre a áspera polêmica como o padre José Agostinho de Macedo, o agressivo e impiedoso Pe. Lagosta, contra quem Bocage desfere o famoso poema satírico “A pena de talião”.

O motivo inicial da polêmica travada como José Agostinho de Macedo foi á tradução que o ex-padre havia feito da “Tebaida”, de Tácito, na qual Bocage apontou algumas incorreções, criticando também a opinião do tradutor, que julgava Ovídio superior a Virgílio. Macedo revida, subestimando a tradução bocagiana de “As metamorfoses”, do mesmo Ovídio.

Em 1799, Bocage publicou a segunda edição das “Rimas”, confirmando as excepcionais qualidades do poeta lírico. Contudo, a decadência física, agravada pela miséria material e pelo desequilíbrio sentimental, encaminha o Poeta para o seu fim.

Em 1804, ainda publica o terceiro volume das “Rimas”, já então definitivamente consagrado.
No ano seguinte, pouco antes de sua morte, um amigo publica o folheto “Os improvisos de Bocage na sua mui perigosa enfermidade” e, em seguida, os “Novos improvisos”, juntando os poemas que inimigos e rivais reconciliados com Bocage, escreveram em louvor do Poeta e esse mesmo amigo, José Pedro da Silva encarregou-se de vender os dois folhetos nas ruas de Lisboa, para obter recursos de que o doente necessitava.

Em 1805, com 40 anos, faleceu, vítima de um aneurisma, na Travessa de André Valente em Lisboa, perante a comoção da população em geral.


“Já Bocage não sou...À cova escura!”


O mesmo Bocage que se converte no final de sua vida, pede que se lhe dê o seguinte epitáfio:




EPIFÁFIO DE BOCAGE

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
que engrole sob-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

"Aqui dorme Bocage, o putanheiro:
Passou a vida folgada, e milagrosa:
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro."


II – OBRAS:


• “Rimas”, primeira série (1791), segunda série (1799), terceira série (1804), quarta e quinta séries (1813) e sexta série (1842).
• “Improvisos” (1805).
• “Coleção de novos improvisos” (1805).
• “Poesias de Manuel M.B. du Bocage (1853), obra reunida por Inocêncio Francisco da Silva e composta pelos seis volumes das “Rimas”, acrescidos de inéditos e notas explicativas, além de um estudo biográfico e literário de L.A.Rebelo da Silva.
• “Poesias eróticas, burlescas e satíricas” (1854, Bruxelas).
• “Obras poéticas”, edição em oito volumes, organizada por Teófilo Braga (1875-1876, Porto).
• “Parnaso bocagiano – poesias eróticas, burlescas e satíricas” (1932, Lisboa).
• “Opera omnia – obra completa”, edição dirigida por Hernâni Cidade (1969, Lisboa).


A produção poética de Bocage abrange mais de duas mil páginas, em grande parte coligidas postumamente. É inevitável haver discrepâncias entre as edições, além de algumas dúvidas sobre a autoria de certos poemas.


III – CARACTERÍSTICAS:


“Eu sou tão infeliz, que isso me basta.”


“Aí o cerne da poesia bocagiana: confissão dolorosa de uma vida que, presa às convenções, busca libertar-se projetando o “eu” para fora de si; tal conflito se manifesta, esteticamente, na revisão dos valores básicos da atitude poética ou o autor lança mão da tradição clássica que o precede, aceitando uma concepção absolutista do mundo, ou atribui um papel todo especial ao “eu”. Significa, dessa perspectiva, adotar forma rígida para um conteúdo revolucionário.”


Álvaro Cardoso Gomes, introdução a “Os Amores”, de Bocage.




COMO O POETA SE RETRATA E JULGA A SUA OBRA




Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.


Esse soneto consta na edição de 1804, foi revisado pelo próprio Poeta, atenuando os versos 11 e 14. Essa tendência à inconstância traduz o individualismo romântico, que tornará Bocage cada vez mais incompatível com a disciplina doméstica e social da sociedade clássica.
Na versão original do 11° verso constava: “Inimigo de hipócritas e frades” e no verso 14°: “Num dia em que se achou cagando ao vento”.


A – POETA ÁRCADE OU NEOCLÁSSICO:


É natural que o indivíduo, criado sob a ideias do Iluminismo, do Enciclopedismo e da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, se rebelasse contra essa disciplina, que o reduzia a figura decorativa, a apêndice inútil do mundo familiar. Esse inconformismo iluminista atirava os jovens de sensibilidade mais aguda às atitudes de revolta, ao desregramento ou ao conflito interior e com Bocage não foi diferente.

Bocage era um poeta, não um homem de ação, e a repulsa ao despotismo e o culto da liberdade convergiram com seus impulsos pessoais. Era poeta emotivo, avesso à disciplina e à coerência lógica. Daí a inclinação para a vida desregrada, para á boêmia e para a aventura, às vezes interrompidas por fortes abalos afetivos e existenciais.

Bocage, nessa época, era conhecido pela eloquência de seus improvisos. Vivendo ás custas das casas nobres, à maneira dos bobos da corte da Idade Média, ganhou popularidade e obteve alguns privilégios oficiais para si para seus amigos. Para tanto, não se recusará a seguir o modismo literário do século em que viveu.

De toda a poesia produzida por Bocage, pode-se facilmente identificar, na sua fase inicial, uma acomodação aos clichês árcades: bucolismo, pastoralismo, carpe diem, fugere urbem, aurea mediocritas dentre outros, presa à imitação servil dos modelos e motivos clássicos, revisitados pelos rígidos preceitos de Boileau e Metastásio.

Fiel às lições dos mestres gregos e latinos (Píndaro, Horácio, Ovídio, Virgílio), já traduzidos e adaptados à sensibilidade da Europa setecentista, os poemas tipicamente árcades ou neoclássicos de Bocage abusam das alegorias mitológicas: os ventos não são ventos, são Zéfiros, Éolos ou Favônios; a noite não é noite, mas a “deusa que esmalta o céu de estrelas”, a “morada de Erebo”; o dia é o “domínio de Febo”; o sonho não é sonho, mas “dom de Morfeu”.

A realidade traduzida em tais termos soa estranha e artificial. Era uma poesia acadêmica, feita pelos e para os iniciados nos ambientes neoclássicos, pois só eles próprios e os nobres que o financiavam haviam estudado Latim, Grego, História Antiga, Mitologia, Retórica Clássica etc. Vocábulos raros e requintados visam revestir a poesia arcádica de um brilho clássico e de uma erudição latinizante.


TEXTO I




Olha, Marília, as flautas dos pastores,
Que bom que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali, beijando-se, os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes.
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores.

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares, sussurrando, gira:

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,
Mais tristeza que a morte me causara.


O soneto está revestido de linguagem clássica: “flautas...cadentes” significa “harmoniosas”, “musicalmente concertadas”; “inocentes” quer dizer “inofensivas”; “vagas borboletas” tem o sentido de borboletas “errantes” ou “vagueantes”; “ósculos ardentes” equivale a “beijos sensuais”.

No segundo terceto, os verbos no pretérito mais que perfeito (“vira” e “causara”) correspondem, no português contemporâneo, ao imperfeito do subjuntivo (“se eu não te visse”), e ao futuro do pretérito ou condicional (“mais tristeza...me causaria”).

A tendência classicizante, já revelada pelo vocabulário e pela construção gramatical, é reforçada pelas alusões aos Zéfiros (ventos), e aos Amores (personificação pagã do amor e da sensualidade) e ao nome poético de Marília (figura convencional da pastora, também utilizada pelo poeta Tomás Antônio Gonzaga).

Observe que, dentro do espírito clássico, a adjetivação tende mais ao universal e ao genérico, do que ao individual e ao característico: as “inocentes”, as “vagas” borboletas; “alegre” campo; manhã “clara”; de “mil cores”. O mesmo ocorre com as estas alusões: “de planta em planta”, “naquele arbusto”, “ora nas folhas, ora nos ares”, ou nas enunciações desprovidas de determinação individualizante: “as flores”, “o rouxinol”, “a abelhinha”.

O soneto é constituído pela representação de um ambiente pastoril e campestre, de uma paisagem composta de elementos reais da Natureza, que as próprias personificações não diminuem, antes fazem avultar, mas que são habilmente considerados coexistentes, e selecionados e dispostos em quadro. Este passa do mais particular (plantas, Tejo, Zéfiros etc.) ao mais geral (campo, manhã), resume-se conglobalmente na palavra tudo e vai contrapor-se à ideia e sentimento final do soneto, ao serviço dos quais todo ele fora composto: importância exclusiva, para a visão e valorização da Natureza, da presença da mulher amada.

Nesse soneto encontram-se tendências madrigalescas e de sugestão petrarquista, juntamente com a sensorialidade e o paganismo erótico levemente sugerido nos versos quinto e sexto. Mas uma nota de sentimentalidade romântica se insinua, quer na breve anotação “o rouxinol suspira” e na visão do último verso.

Atente-se, por outro lado, em que a atitude descritiva do Poeta, intencionalmente valorizante do quadro campestre, bucólico e mitológico, e por isso mesmo idealizado e um tanto convencional, é servida por valores formais claramente sensíveis.

Observe-se o predomínio de verbos intransitivos, mais susceptíveis de exprimir a duração e a estabilidade das ações ou dos estados (soar, sorrir-se, brincar, suspirar, parar, girar), em oposição aos verbos transitivos dos últimos versos, que marcam a mutabilidade e a incidência das sensações e emoções. Note-se o uso da frase nominal no sétimo e oitavos versos, concisamente narrativa, e das do verso duodécimo, exclamativamente descritivas.

Observe-se ainda, que o soneto obedece às fórmulas tradicionais de composição clássica e que revela tanta segurança como variedade de feitura. Não só as expressões exclamativas são entrecortadas de uma interrogação e de frases descritivas, não só os imperativos se repetem a patentear interesse e a revelar colóquio afetivo (“Olha”, Marília...”Olha” o Tejo...”Olha”, não sentes), como também uma quase completa simetria de construção se registra nos versos 10° e 11°, a comunicar-nos duas fases paralelas e opostas da atividade das abelhas (Ora nas folhas...Ora nos ares). As próprias exclamações simultaneamente paralelas e dispostas em quiasmo do verso 12° (Que alegre campo! Que manhã tão clara!) ajudam a intensificar e transmitir melhor a emoção festiva até aí sugerida, para mais vincada e adversativamente se lhe opor a hipótese exclamativa e contrastante dos dois últimos versos.

Registre-se ainda a hábil combinação do verso heróico com o verso sáfico, utilizado este em pontos de ritmo por isso mesmo mais entrecortado, o que neste caso auxilia a expressividade do pensamento (v.2°), da narração (vv. 9° a 11°) ou do descritivo (v.12°).

Conclusão: trata-se de um soneto pictural, descritivo, de Natureza festiva e deleitosa, composta em quadro bucólico, luminoso e gracioso, de cores e contornos idealizados sobre o real, onde aflora a sensualidade amorosa e se patenteia uma sensorialidade externa requintada, cheia de elegância e de bom gosto de imaginação plástica; fecho madrigalesco e petrarquista, acrescido de sugestão direta camoniana; frases exclamativas que revelam gosto de viver e satisfação amorosa, levemente encrespada por simples hipótese de ausência.

É um soneto típico do século XVIII, na sua vertente árcade, composto sobre a moldura convencional do locus amoenus (lugares aprazíveis), com aproximações do estilo rococó (amenidade, frivolidade, afetação, sensualidade e ênfase no gracioso) e uma sugestiva aproximação do romantismo temperamental da fase madura de Bocage.




O ledo passarinho, que gorjeia
D'alma exprimindo a cândida ternura,
O rio transparente, que murmura,
E por entre pedrinhas serpenteia:

O Sol, que o céu diáfano passeia,
A Lua, que lhe deve a formosura,
O sorriso da Aurora alegre e pura,
A rosa, que entre os Zéfiros ondeia;

A serena, amorosa Primavera,
O doce autor das glorias que consigo,
A deusa das paixões, e de Cítera:

Quanto digo, meu bem, quanto não digo,
Tudo em tua presença degenera,
“Nada se pode comparar contigo.”


Citera: ilha do Mediterrâneo. Segundo a mitologia grega, Vênus lá teria nascido.


Nos versos acima, o eu lírico exprimi-se dentro do convencionalismo árcade: o locus amoenus bucólico; o mundo visto por meio de alegorias que personalizam as forças físicas e espirituais da Natureza, como entre os antigos poetas gregos e latinos, inclusive recorrendo à mitologia (Aurora, Zéfiro, Primavera, Citera) e as maiúsculas alegorizantes; o tema clássico como sustentação do poema (a comparação da mulher com a natureza e sua vitória). Poesia rigidamente organizada pela razão que equilibra os elementos da forma e os sentimentos.


TEXTO II

Ó tranças, de que Amor prisão me tece,
Ó mãos de neve, que regeis meu fado!
Ó tesouro! Ó mistério! Ó par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Ó ledos olhos, cuja luz parece
Tênue raio de sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!

Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois?... Sois de Vênus? - É mentira;
Sois de Marília, sois de meus amores.


Mais um poema que manifesta o convencionalismo, a praxe poética. A começar pela identidade das personagens, o texto afasta-se do real e do individual: tanto o Poeta como seus interlocutores, os amigos e amadas aos quais se dirigem os versos são disfarçados por pseudônimos que sugerem um “ar” pastoril e bucólico. Assim, Bocage é Elmano; suas amadas são Marílias, Nises, Gertrúrias e Eulinas; seus amigos são Sadinos, Tajanos etc.


TEXTO III




A loira Fílis, na estação das flores,
Comigo passeou por este prado
Mil vezes; por sinal, trazia ao lado
As Graças, os Prazeres e os Amores.

Quantos mimos então, quantos favores,
Que inocente afeição, que puro agrado
Me não viram gozar (oh doce estado!)
Mordendo-se de inveja, os mais pastores!

Porém, segundo o feminil costume,
Já Fílis se esqueceu do amor mais terno,
E com Jônio se ri de meu queixume.

Ah! Se nos corações fosses eterno,
Tormento abrasador, negro Ciúme,
Serias tão cruel como os do Inferno!


Observe neste soneto que a pastoralização do cenário ultrapassa a simples utilização de pseudônimos pastoris (“Fílis” e “Jônio”). Reforça-se na menção genérica a “pastores” (v.8°) e na ambiência bucólica e pastoril (“estação das flores”, “prado”).

As “Graças” são entidades mitológicas que simbolizam a Graça, a Beleza e a Alegria. No último terceto, expressões como “Tormento abrasador”, “negro ciúme” e a comparação do verso final traduzem uma intensidade e um vocabulário já denunciadores de uma índole romântica.


TEXTO VI

Se é doce no recente, ameno estio,
Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
E, lambendo as areias, e os verdores,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;

Se é doce no inocente desafio
Ouvirem-se os voláteis amadores,
Seus versos modulando, e seus ardores
Dentre os aromas de pomar sombrio;

Se é doce mares, céus, ver anilados
Pela quadra gentil, de Amor querida,
Que esperta os corações, floreia os prados;

Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
Dar-me em teus brandos olhos desmaiados
Morte, morte de amores, melhor que a vida.


Observe que, sob a armadura neoclássica e, às vezes, imerso no gosto barroco-gongórico, pelo arranjo meio artificial das anáforas, das construções simétricas e das antíteses, esses “entraves” não impedem a intensidade comunicativa da dicção do Poeta, nem impedem que rebente o fervor emocional dum temperamento da mais explosiva veemência romântica.
As duas primeiras estrofes apresentam vários elementos que, em conjunto, delineiam uma paisagem tipicamente arcádica: é verão, o campo é florido, o rio é calmo, os pássaros voam e cantam. Também é Arcádia a sugestão pastoril da figura feminina, engrinaldada de flores.

O racionalismo neoclássico fica sugerido pela construção hipotética “Se é...”, que inicia as três primeiras estrofes. Muito embora se abra com a mesma expressão racional de argumentação (“Se é doce, mares, céus...”), e continue a descrever uma paisagem tranquila e harmoniosa, o primeiro terceto começa por sugerir um paralelismo entre os sentimentos e a natureza (“desperta os corações, floreia os prados”), o que já pode ser considerada uma característica pré-romântica.

Apesar de revestido da delicadeza tradicionalmente aliada às cenas de amores pastoris, o vocabulário com que Bocage, na última estrofe, alude ao amor, recobre o amor/sentimento de traços físicos e concretos, sugerindo uma relação de intimidade entre os amantes. Reforça isto a reiteração, no verso final, da palavra morte que, neste contexto, sugere a completa e mútua satisfação amorosa.


B. O POETA PRÉ-ROMÂNTICO:


“O que o distingue melhor é a matéria psicológica que traz pela primeira vez à poesia portuguesa: o sentimento agudo da personalidade, o horror do aniquilamento na morte. Tal egotismo percebe-se ainda na maneira abstrata e retórica com que, em nome da Razão, se revolta contra a humilhação da dependência e contra o despotismo; no gosto do fúnebre e do noturno, e nos clamores não menos retóricos de ciúme, de blasfêmia ou contrição.”


Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, “História da literatura portuguesa”


A poesia bucólica e encomiástica, destinada à louvação dos poderosos, são os dois aspectos menos interessantes da poética de Bocage. A celebração de natalícios e casamentos, a louvação fúnebre de algum morto ilustre, o elogio a algum poderoso promovido a posto importante e a bajulação dos poderosos são modos de produção literária típicos do século XVIII, quando os poetas, congregados em academias, dependiam do financiamento dos ricos e influentes, aos quais, em troca, cumpriam dedicar versos elogiosos.

Um dos eixos fundamentais da evolução poética de Bocage é o da oposição ou justaposição da atitude racionalizadora, contida e clássica, contraposta à índole do Poeta, individualista, egocêntrica, impulsiva. Essa tensão, da qual Bocage tinha nítida consciência, ofereceu-lhe inúmeras ocasiões para, através da metapoesia, refletir sobre as fronteiras desse individualismo.

É comum dividir a obra de Bocage em duas fases: a primeira dentro do convencionalismo racionalista árcade, e a segunda, sentimental e pré-romântica, como se essa trajetória tivesse sido uniforme, constante e crescente.

Esse artificialismo didático traz embutido um conhecido juízo de valor, que recrimina o Bocage maldito, satírico, anticlerical, para supervalorizar os versos de arrependimento, as apóstrofes a Deus e a poesia noturnal. Contudo, é forçoso admitir que Bocage é suficientemente grande para ser, ao mesmo tempo e com a mesma propriedade, o poeta maldito, o pastor bucólico e o romântico noturno.

Muito do Bocage romântico aflora no Bocage árcade, e muito do árcade sobrevive no romântico. Por isso, optou-se por um meio-termo: Bocage é pré-romântico. Se, de um lado, traz para a sua poesia o mundo pessoal e subjetivo da paixão amorosa, do sofrimento e da morte, por outro, sobrevive á forma clássica do soneto, com indisfarçável ressonância de Camões. Algumas vezes a rigidez da métrica e da rima e as alusões mitológicas se chocam com as paixões e ânsias.

Entre as características mais tipicamente românticas que podemos identificar nos temas de seus poemas, estão ás seguintes:

O amor em Bocage aparece como um sentimento violento e não suave, como no Arcadismo. Atravessado pela desconfiança, pelo ciúme e pela traição, o amor projeta o Poeta numa solidão insatisfeita e irrequieta, atormentada e sofrida.

O locus amoenus dos árcades é substituído pelo locus horrendus dos românticos. A natureza em fúria, tumultuada, retratando os estados tormentosos da alma do poeta, substitui a natureza convencional e ornamental dos neoclássicos.

O culto da noite frequenta a obra de Bocage. Ela é lugar de refúgio da imaginação poética e é também à hora do dia em que o homem diurno, guiado pela luz da razão, se deixa substituir pelo homem noturno, guiado pelos impulsos profundos e obscuros do desejo irracional e inconsciente.

O tédio da vida, aquilo que os ingleses chamariam de “spleen” e os franceses de “ennui”, leva o poeta à vontade de morrer, ao desejo de dissolução ou de fuga da realidade por meio do sonho, da fantasia, da embriaguez, dos excessos da vida dos sentidos e, no limite, da morte.
A poesia de Bocage realiza-se basicamente na primeira pessoa do discurso. É egoísta, sentimental e confessional.

A ironia, atitude tão fundamental da alma romântica, é um instrumento fundamental na poesia de Bocage.

A crítica às instituições sociais seria, ao lado do escapismo, e num sentido inverso ao dessa atitude, uma das respostas da atitude romântica ao mundo insatisfatório.


TEXTO I

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores;
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade;
Que elas buscam piedade, e não louvores;

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores;

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.


Este soneto pode se analisado como uma profissão de fé, em que Bocage expõe, em posição metalinguística, suas ideias e sentimentos em relação à sua poesia. Assume uma posição de humildade diante de seus leitores. Desculpa-se pelos versos de “sentimento” e alega que os versos que aparentam alegria são fruto do Fingimento e da Dependência. Fica implícita a confissão da índole romântica do Poeta na alusão a que a obediência às convenções é uma inversão violenta da sua natural inclinação para a expressão sentimental de seus suspiros, lágrimas e amores.


TEXTO II

Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mundo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:

Não vos inspire, ó versos, covardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania:

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.


O Poeta expressa uma autocrítica, aparentemente arrependido de sua produção satírica e obscena. A crítica moralista superestima esses versos, para negar o Poeta Maldito e realçar o Poeta Cristão, temente ao rei e a Deus.

Esses versos patenteiam o reconhecimento de que o impulso pessoal, mergulhado no sofrimento romântico, é incoercível, ainda que o Poeta reconheça nisso uma “falha”, que faz seus versos “desentoados”, “sem arte”, “sem beleza”.

Há certa autocomiseração tipicamente romântica: “um peito de gemer cansado e rouco”, desculpa articulada para confessar e justificar a subjetividade romântica, filha da “Desventura”, da “Tristeza”. Observe que o vocabulário e a ambiência são nitidamente românticos: “desesperados”, “sepultura”, “desgraçados” etc., e denotam uma impregnação tipicamente sentimental.


TEXTO III

Olhos suaves, que em suaves dias
Vi nos meus tantas vezes empregados;
Vista, que sobre esta alma despedias
Deleitosos farpões, no céu forjados;

Santuários de Amor, luzes sombrias,
Olhos, olhos da cor de meus cuidados,
Que podeis inflamar as pedras frias,
Animar cadáveres mirrados;

Troquei-vos pelos ventos, pelos mares,
Cuja verde arrogância as nuvens toca,
Cuja horrísona voz perturba os ares;

Troquei-vos pelo mal, que me sufoca;
Troquei-vos pelos ais, pelos pesares:
Oh Câmbio triste! Oh deplorável troca!


Uma análise meticulosa do soneto mostra que o tema amoroso é revestido de uma intensidade afetiva que se revela, na linguagem, pela expressão declamatória, evidenciada nas apóstrofes, hipérboles, repetições, e pelo fecho exclamativo. Observe alguns meios ou processos expressivos: a interpelação apostrófica dos olhos da mulher amada; a hipérbole sobre o poder amoroso dos olhos; a repetição anafórica de construções; a exclamação final dupla, de sentido paralelo; os adjetivos, substantivos e verbos de natureza psicológica e afetiva.




TEXTO IV

Ó retrato da Morte! Ó noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel que a delirar me obriga.

E vós, ó cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar o meu coração de horrores.


A partir dos vocativos deste primeiro verso, o poema instaura um clima tétrico, lúgubre, noturno, que caracteriza cabalmente o locus horrendus romântico, em tudo oposto ao locus amoenus neoclássico. Essa ambiência fúnebre emoldura os sentimentos mórbidos do Poeta. A seleção vocabular é genuinamente romântica e a natureza noturnal: Morte, noite amiga, escuridão, suspiro, pranto, desgostos, cruel, delirar, escuridade, fantasmas vagos, mochos piadores, medonha, coração, horrores.


TEXTO V

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!


Nesses versos, o Poeta apresenta uma atitude introspectiva e reconhece, nos dois quartetos, uma vida de ultraje a Deus no passado. Os tercetos dão lugar à confissão do arrependimento, com o apelo à mocidade, que corria atrás da sua poesia, para que rasgue seus versos e acredite na eternidade. O Poeta compara-se a Aretino, poeta italiano do século XVI, célebre por suas obras libertinas e obscenas.


C. O POETA MALDITO:


Dessa forma, há um Bocage arcádico e pré-romântico e outro, popular a quem a fama de boêmio e a tradição da poesia erótica só fazem comprometer sua obra. A proibição pela censura portuguesa deste Bocage libertino e erótico é paralela à tradição crítica, que considera sua obra satírica inferior à lírica.

Essa mesma discriminação se manifesta ainda na biografia oficial do Poeta, que o apresenta como um pecador arrependido, contrito e confesso no final da vida, reconciliado com Deus e com os homens, submisso à Igreja e à Monarquia.

Dessa visão biográfica e crítica “oficial” e moralista acaba por emergir um poeta desbotado e enfraquecido, só redimido pelas antecipações românticas que se lêem em sua obra, pelos versos de autocrítica e arrependimento.

No entanto, a poesia erótica de Bocage é extremamente forte, nos dois sentidos que esse adjetivo comporta: por sua linguagem grosseira, vulgar e aludir a situações escabrosas e atos obscenos; mas forte também no sentido poético, pela extraordinária carga de humanidade, que se comunica imediatamente com os leitores, além de não perder as qualidades superiores do ritmo, da rima e da métrica perfeitas, dentro dos parâmetros clássicos.

É esse fascínio que ela exerce sobre o público que a faz “perigosa” aos olhos do moralismo anacrônico e a mantém, censurada e clandestina até hoje.

Os seus alvos preferidos eram os poderosos, mas também não poupou seus colegas de Academia. Mas sua produção satírica foi marcada principalmente, pela temática sexual.


TEXTO I - A MINHA AMADA

Se tu visses, Josino, a minha amada,
Havias de louvar o meu bom gosto;
Pois seu nevado, rubicundo rosto,
Às mais formosas não inveja nada:

Na sua boca Vênus faz morada:
Nos olhos Cupido as setas posto;
Nas mamas faz Lascívia o seu encosto,
Nela enfim tudo encanta, tudo agrada:

Se a Ásia visse coisa tão bonita
Talvez lhe levantasse algum pagode
A gente, que na foda se exercita!

Beleza mais completa haver não pode:
Pois mesmo o cono seu, quando palpita,
Parece estar dizendo: "Fode, fode!"


Vocabulário:


Rubicundo – vermelho, corado.
Lascívia – luxúria, libidinagem, sensualidade. Observe que o emprego da inicial maiúscula (maiúscula alegorizante) confere à palavra uma conotação mais ampla, universalizante, transformando-a, alegoricamente, numa “divindade”, como Vênus e Cupido.
Pagode – templo oriental.
Cono – vulva.


TEXTO II

Fiado no fervor da mocidade,
Que me acenava com tesões chibantes,
Consumia da vida os meus instantes
Fodendo como um bode, ou como um frade:

Quantas pediram, mas em vão, piedade
Encavadas por mim balbuciantes!
Fincado a gordos sessos alvejantes
Que hemorróidas não fiz nesta cidade!

À força de brigar fiquei mamado:
Vista ao caralho meu, que de gaiteiro
Está sobre os colhões apatetado:

Oh Númen tutelar do mijadeiro!
Levar-te-ei, se tornar ao teso estado,
Por oferenda espetado um parrameiro.


Vocabulário:


Chibantes – valentes, brigões, altivos
Sessos – traseiros, nádegas
Mamado – desapontado, desiludido


O soneto é exemplar da poesia fescenina, e alude com palavras chulas à impotência fictícia ou real do Poeta.


TEXTO III

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

Para carualho ser falta-lhe um U;
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.


TEXTO IV




Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:

Dido foi puta, e puta dum soldado;
Cleópatra por puta alcança a coroa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado;

Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta),
Entre mil porras expirou vaidosa.

Todas no mundo dão a sua greta;
Não fiques, pois, oh Nise, duvidosa,
Que isto de virgo e honra é tudo peta.


Neste soneto Nise, a pastora bucólica da lírica convencional, é retratada como uma prostituta, consolada pelo Poeta com os exemplos de rainhas e cortesãs famosas.

O poeta cita Dido, víuva de Siquem, que se refugiou em Cartago, onde se apaixona por Enéias. O amor entre os dois é tratado pelo poeta latino Virgílio, no poema épico “Eneida”.

Ao referir-se a Cleóprata, rainha do Egito, remete a sedução que a mesma utilizou-se para consolidar às vantagens políticas, seduzindo, sucessivamente, César, Marco Antônio e Otávio, lóderes do Império Romano. Além de aludir a Catarina, a Grande, imperatriz da Rússia.

Um dos mais conhecidos poemas de Bocage, no gênero erótico-obsceno, é o “A Manteigui, poema em um só canto”, que tem por alvo a amante do governador português de Goa, a Manteigui. Esse poema, ao qual se atibui a expulsão de Bocage da Índia, é composto em dezenove oitavas, antecedidas de um “Argumento”. Mostra que, mesmo na vertente obscena, Bocage tem fôlego poético para composição longa e meticulosa, lavrada na oitava rima camoniana.


TEXTO V - A MANTEIGUI, POEMA EM UM SÓ CANTO

ARGUMENTO:

Da grande Manteigui, puta rafada,
Se descreve a brutal incontinência;
Do cafre infame a porra desmarcada,
Do cornígero esposo a paciência;
Como, à força de tanta caralhada,
Perdendo o negro a rígida potência,
Foge da puta, que sem alma fica,
Dando mil berros por amor da pica.

I
Canto a Beleza, canto a putaria
De um corpo tão gentil como profano;
Corpo que, a ser preciso, engoliria
Pelo vaso os martelos de Vulcano;
Corpo vil, que trabalha mais num dia
Do que Martinho trabalhou num ano,
E que atura as chumbadas e pelouros
De cafres, brancos, maratás e mouros.

II
Vênus, a mais formosa entre as deidades,
Mais lasciva também que todas elas,
Tu, que vinhas de Tróia às soledades
Dar a Anquises as mamas e as canelas,
Que gramaste do pai das divindades
Mais de seiscentas mil fornicadelas;
E matando uma vez a crica a sede,
Foste pilhada na vulcânica rede:

III
Dirige a minha voz, meu canto inspira,
Que vou cantar de ti, se a Jaques canto;
Tendo um corno na mão em vez de lira,
Para livrar-me do mortal quebranto.
Tua virtude em Manteigui respira,
Com graça, qual tu tens, motiva encanto;
E bem pode entre vós haver disputa,
Sobre qual é mais bela, ou qual mais puta.

IV
No cambaico Damão, que, escangalhado,
Mamenta a decadência portuguesa,
Este novo Ganós foi, procriado,
Peste d'Ásia em luxúria e gentileza.
Que ermitão de cilícios macerado
Pode ver-lhe o carão sem porra tesa?
Quem chapeleta não terá de mono,
Se tudo que ali vê é tudo cono?

V
Seus meigos olhos, que a foder ensinam,
Té nos dedos dos pés tesões acendem:
As mamas, onde as Graças se reclinam,
Por mais alvas que os véus, os véus ofendem
As doces partes, que os desejos minam,
Aos olhos poucas vezes se defendem;
E os Amores, de amor por ela ardendo,
As pissas pelas mãos lhes vão metendo.

VI
Seus cristalinos, deleitosos braços,
Sempre abertos estão, não para amantes,
Mas para aqueles só, que, nada escassos,
Cofres lhe atulham de metais brilhantes.
As níveas plantas, quando move os passos,
Vão pisando os tesões dos circunstantes,
E quando em ledo som de amores canta,
Faz-lhe a porra o compasso co'a garganta.

VII
Mas para castigar-lhes a vil cobiça,
O vingativo Amor, como agravado,
Fogo infernal do coração lhe atiça
Por sórdido cafre asselvajado:
Tendo-lhe visto a tórrida linguiça
Mais extensa que os canos dum telhado,
Louca de comichões, a indigna dama
Salta nele, convida-o para a cama.

VIII
Eis o bruto se coça de contente:
Vermelha febre sobe-lhe ao miolo;
Agarra na senhora, impaciente
De erguer-lhe as fraldas, e provar-lhe o bolo
Estira-a sobre o leito, e, de repente,
Quer do pano sacar o atroz mampolo,
Porém não necessita arrear cabos:
Lá vai o langotim com mil diabos.

IX
Levanta a tromba o ríspido elefante,
A tromba, costumada a tais batalhas,
E apontando ao buraco palpitante,
Bate ali qual ariete nas muralhas
Ela enganchando as pernas delirante,
"Meu negrinho (lhe diz) quão bem trabalhas!
Não há porra melhor em todo o mundo!
Mete mais, mete mais, que não tem fundo.

X
 Ah! Se eu soubera (continua o couro
Em torrentes de sémen já nadando)
Se eu soubera que havia este tesouro,
Há que tempos me estava regalando!
Nem fidalguia, nem poder, nem ouro
Meu duro coração faria brando;
Lavara o cu, lavara o passarinho,
Mas só para foder co'o meu negrinho.

XI
 Mete mais, mete mais... Ah Dom Fulano!
Se o tivesses assim, de graça o tinhas!
Não viverás um perpétuo engano,
Pois vir-me-ia também quando te vinhas.
Mete mais, meu negrinho; anda, magano.
Chupa-me a língua, mexe nas maminhas...
Morro de amor, desfaço-me em langonha...
Anda, não tenhas susto, nem vergonha...

XII
"Há quem fuja da carne, há quem não morra
por tão belo e dulcíssimo trabalho?
Há quem tenha outra ideia, há quem discorra
Em cousa que não seja de mangalho?
Tudo entre as mãos se me converta em porra,
Quanto vejo transforme-se em caralho;
Porra e mais porra, no Verão e no Inverno,
Porra até nas profundas do Inferno!...

XIII
"Mete mais, mete mais" (ia dizendo
A marafona ao bruto, que suava,
E convulso, fazia estrondo horrendo
Pelo rústico som com que fungava):
"Mete mais, mete mais, que eu estou morrendo!..."
"Mim não tem mais!" O negro lhe tornava;
E triste exclama a bêbada fodida:
"Não há gosto perfeito nesta vida!"

XIV
Neste comenos, o cornaz marido,
O bode racional, veado humano,
Entrava pela câmara atrevido,
Como se entrasse num lugar profano;
Mas vendo o preto em jogos de Cupido,
Eis sai logo, dizendo: "Arre, magano!
Na minha cama! Estou como uma brasa!
Mas, bagatela! tudo fica em casa."

XV
A foda começada ao meio-dia,
Teve limite pelas seis da tarde;
Veio saltando a ninfa da alegria,
E da sórdida ação fazendo alarde.
O bom consorte, que risonha a via,
Lhe diz: "Estás corada! O Céu te guarde;
Bem boa alpiste ao pássaro te coube!
Ora dize, menina, a que te soube?"

XVI
"Cale-se, tolo" (a puta descarada
Grita num tom raivoso e lhe resinga).
O rei dos cornos a cerviz pesada
Entre os ombros encolhe, e não respinga;
E o courão, da pergunta confiada,
Outra vez com o cafre, e mil se vinga,
Até que ele, faltando-lhe a semente,
Tira-lhe a mama e foge de repente.

XVII
Deserta por temor de esfalfamento,
Deserta por temer que o couro o mate;
Ela então de suspiros enche o vento,
E faz alvorotar todo o Surrate.
Vão procurá-lo de cipais um cento;
Trouxeram-lhe a cavalo o tal saguate:
Ela o vai receber, e grão Nababo
Pasmou disto, e quis ver este diabo.

XVIII
Pouco tempo aturou de novo em casa
O cão, querendo logo a pele forra,
Pois a puta co'a crica toda em brasa,
Nem queria comer, só qu'ria porra.
Voou-lhe, qual falcão batendo a asa,
E o courão, sem achar quem a socorra,
Em lágrimas banhadas, acesa em fúria,
Suspira de saudade e de luxúria.

XIX
Courões das quatro partes do Universo,
De gálico voraz envenenados!
Se deste canto meu, deste acre verso
Ouvirdes por ventura os duros brados,
Em brando marcial, coro perverso,
Vinde ver um cação dos mais pescados,
Vinde cingir-lhe os louros, e, devotos,
Beijar-lhe as aras, pendurar-lhe os votos.

TEXTO VI - SONETO DO MEMBRO MONSTRUOSO

Esse disforme, e rígido porraz
Do semblante me faz perder a cor:
E assombrado d'espanto, e de terror
Dar mais de cinco passos para trás:

A espada do membrudo Ferrabrás
De certo não metia mais horror:
Esse membro é capaz até de pôr
A amotinada Europa toda em paz.

Creio que nas fodais recreações
Não te hão de a rija máquina sofrer
Os mais corridos, sórdidos cações:

De Vênus não desfrutas o prazer:
Que esse monstro, que alojas nos calções,
É porra de mostrar, não de foder.

TEXTO VII - SONETO (DES)PEJADO

Num capote embrulhado, ao pé de Armia,
Que tinha perto a mãe o chá fazendo,
Na linda mão lhe foi (oh céus) metendo
O meu caralho, que de amor fervia:

Entre o susto, entre o pejo a moça ardia;
E eu solapado os beijos remordendo,
Pela fisga da saia a mão crescendo
A chamada sacana lhe fazia:

Entra a vir-se a menina... Ah! Que vergonha!
"Que tens?" — lhe diz a mãe sobressaltada:
Não pode ela encobrir na mão langonha:

Sufocada ficou, a mãe corada:
Finda a partida, e mais do que medonha
A noite começou da bofetada.


IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS:




A obra de Bocage ocupa mais de duas mil páginas, e sem a inclusão dos poemas marginais. Tendo vivido apenas 40 anos, pode-se, assim, dizer que o rigor, a contenção, a mão temperada não faziam parte de suas características. Criou em quase todas as modalidades poéticas possíveis: o soneto, a ode, a canção, a elegia, o epicédio, o idílio, a cantata, a epístola, a sátira, a ode, a quadra, o apólogo, a adivinhação, sem falar nas traduções e nos poemas, vamos dizer, obscenos ou pornográficos.


Segundo Bilac, Bocage era um grande metrificador e isto pode ser facilmente notado, principalmente no decassílabo que era a sua chave-mestra. Sabia musicar através das sílabas, mas, em especial, era um forjador de imagens insólitas. Não era um poeta conceitual, voltado para grandes pensamentos, porém, por ironia, é na logopéia da sátira onde melhor se encaixa.

Ridicularizou inúmeras pessoas, usando seu verbo afiado e, então, um senso de medida que não está presente noutros gêneros.

Bocage foi uma espécie de pré-romântico português, com a sua “Sturm und Drang” muito peculiar: dissoluto e revolucionário, lírico e erótico, lamentoso e satírico, irreverente e bajulador.

Concluindo, apesar das contradições geradas pela quantidade, a obra de Bocage traduz um marco na literatura de Portugal. E poucos poetas foram tão “personagens” como ele – na vida e na arte. A primeira gerava a segunda que lhe devolvia renovada seiva através de aplausos, escândalos, polêmicas, prisão e inquérito.













































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