domingo, 12 de fevereiro de 2012

A fome do primeiro grito : Hilda Hilst

  
Hilda Hilst

"Como me sinto? Como se colocassem dois olhos sobre uma mesa e dissessem a mim , a mim que sou cego : isso é aquilo que vê , essa é a matéria que vê . Toco os dois olhos sobre a mesa , lisos , tépidos ainda , arrancaram há pouco, gelatinosos , mas não vejo o ver . É assim o que sinto tentando materializar na narrativa a convulsão do meu espírito , e desbocado e cruel , manchado de tintas , essas pardas escuras do não saber dizer , tento amputado conhecer o passo , cego conhecer a luz , ausente de braços tento te abraçar".
...
"Alguns doutos em ciências descobriram que quanto maior o intestino, mais místico o indivíduo. E quem mais místico que Deus? Grande Intestino, orai por nós".

Escrever poesia amorosa não é tarefa para meros sofredores apaixonados e lamurientos. Drummond deu o alerta: "Os impactos de amor não são poesia". A poeta paulista Hilda Hilst (1930-2004) já sabia, de cor, essa lição. Ela escreve poemas de amor nos quais não há dores-de-cotovelo, nem toda essa frágil ciumeira que empapa os lenços da música popular.

São textos profundos, em que o sentimento amoroso é apenas um dos cordéis que ligam o eu poético à vida. Os três poemas mostrados aqui foram extraídos da coletânea Do Amor. Embora apresente uma incrível unidade, esse volume é uma antologia da poesia amorosa de Hilda, extraído de livros publicados entre 1959 a 1995.
Nascida em Jaú–SP, Hilda Hilst foi poeta, dramaturga e ficcionista. Conheça mais sobre os trabalhos de Hilda em seu site oficial.

XIISe te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
desejasse.

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
          De Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974)

XLII As barcas afundadas. Cintilantes
Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante
E obscura barca ardendo sob as águas.
Palavras eu as fiz nascer
Dentro de tua garganta.
Úmidas algumas, de transparente raiz:
Um molhado de línguas e de dentes.
Outras de geometria. Finas, angulosas
Como são as tuas
Quando falam de poetas, de poesia.

As barcas afundadas. Minhas palavras.
Mas poderão arder luas de eternidade.
E doutas, de ironia as tuas
Só através de minha vida vão viver.

          De Amavisse (1989)


LXIIQue as barcaças do Tempo me devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
Como desde sempre o conheci: pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto caminhassem
Porque vinha de um a luz do outro.

Que me devolvam a noite, o espaço
De me sentir tão vasta e pertencida
Como se as águas e madeiras de todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.

Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.
          De Amavisse (1989)
 



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