I - TÍTULO:
Saga - radical de origem germânica ( “canto heróico”, “lenda”)
Rana - vem da língua indígena (“à maneira de” ou “espécie de”)
II - AUTOR:
Guimarães Rosa (Cordisburgo, MG), 1908 – RJ, 1967)
“Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. (...) Escrevendo descubro sempre um novo pedaço de infinito. (...) Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que já vivi antes. (...) Amo ainda uma coisa dos nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.
Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres.
(...) Já era míope e, nem mesmo eu, ninguém sabia. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas.”
III - ÉPOCA LITERÁRIA:
III Tempo Modernista – Geração de 45
IV - CARACTERÍSTICAS:
- Renovação da tendência regionalista assumindo experiência estética universal: UNIVERSALIZAÇÃO
“ O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe, pão ou pães é questão de opiniães...O sertão está em toda a parte.”
“Grande sertão: veredas”
- Fusão entre o real e o mágico, numa tentativa de justificar a existência humana, apresentando o homem dividido entre Bem X Mal, o Sagrado X Profano, aproximando-o do estilo Barroco:
MITOPOÉTICO
“ – Eu acho boa essa idéia de se mudar para longe, meu filho. Você não deve pensar mais na mulher, nem em vinganças. Entregue-se para Deus, e faça penitência. Sua vida foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar o demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito!”
“Sagarana”
- A palavra como instrumento: INSTRUMENTALISTA.
A linguagem “roseana” , provém de suas experiências com outras línguas estrangeiras (no mínimo 18) , mais o domínio da linguagem arcaíca, do português contemporâneo, do erudito e de suas anotações do falar do povo brasileiro, apresenta-nos um leque de significados e significantes.
- Aliterações e assonâncias
- Onomatopéias
- Rimas internas
- Metáforas, anáforas, metonímias
- Musicalidade
- Melopéia (cadências populares e medievais)
“Não, não sou romancista; sou um contista de contos críticos. (...) Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo , extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia, ciência lingüística, foram inventadas pelos inimigos da poesia.”
“Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda...”
Guimarães Rosa
“Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando...Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito...Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...”
“Sagarana”
V - ESPAÇO:- Regionalismo- Universalizante
“O sertão não é os gerais; mas sim, ageográfico: é a aprendizagem da vida e o sertanejo, é o homem.”
“O sertão é o mundo”
“O sertão é sem lugar. O senhor empurra para trás, mas, de repente, ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera. Sertão – se diz – o senhor querendo procurar nunca encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem. Viver é muito perigoso...”
VI - TEMPO:
Atemporal, onde se misturam presente e passado, real e o surreal, a magia e as histórias, desembocando numa alegoria à maneira de lendas e fábulas retornando aos grandes cavaleiros medievais, unindo o lirismo, o épico e as reflexões espiritualistas.
VII - PERSONAGENS:
Habitantes de um espaço marginalizado, onde os protagonistas são: sertão, bois, vaqueiros, jagunços, o bem X mal, crianças, loucos, bêbados, homens primitivos, pessoas que se encontram longe do processo civilizador, portanto livres para as aventuras, riscos e loucuras.
“Misto de acaso e necessidade, ação dos personagens de “Sagarana” (...) As coisas e os animais participam do encadeamento secreto de causas(...)”
(Benedito Nunes, “O dorso do tigre”)
Os animais assumem uma posição humanizada e traduzem os questionamentos filosóficos e reflexivos do destino do homem.
A natureza é ativa, participativa e confessional.
“Lá em cima daquela serra,
passa boi, passa boiada
passa gente ruim e boa,
passa a minha namorada”
VIII - FOCO NARRATIVO:
Sagarana é composto por nove contos; sendo cinco contos em 3ª Pessoa do Singular, com narrador onisciente.
“O burrinho pedrês”
“Duelo”
“Conversa de bois”
“A hora e a vez de Augusto Matraga”
“Sarapalha”
”A volta do marido pródigo”
Três contos em 1ª Pessoa do Singular, com personagem-narrador:
“São Marcos”
“Minha gente”
“Corpo Fechado”
IX - TEMÁTICA:
- A travessia
Para Guimarães Rosa, não há, de um lado, o mundo, e, de outro, o homem que o atravessa.
“Além de viajante, o homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz”
(Benedito Nunes, “O dorso do tigre”)
- O amor e a solidão em “Sarapalha”
- Grandes façanhas heróicas em “O burrinho pedrês”
- Fraquezas humanas em “O volta do marido pródigo”
- Metafísica em “O corpo fechado” e “Minha gente”
- Religiosidade em “A hora e a vez de Augusto Matraga”
- Aventuras e suspense em ”Duelo”
- Injustiça em “Conversa de bois”
- Feitiçaria em “São Marcos”
X - ENREDOS:
1. “O BURRINHO PEDRÊS”
“Era um burrinho pedrês (salpicado de branco e preto na cor), miúdo e resignado, vindo de Passa Tempo, Conceição do Serro, ou não sei de onde no sertão. Chamava-se Sete-de- Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.”
“E, ao meu macho rosado,
carregado de algodão,
preguntei: p’ra donde ia?
P’ra rodar no mutirão.”
Carregado de algodão simbolizando a carga de experiências adquiridas durante sua vida e a pergunta filosófica de “p’ra onde ia?”, metaforiza o questionamento humano sobre a existência, enquanto que, “rodar no mutirão”, é a missão de sua vida, o seu “dharma”, seu destino.
O Sete-de-Ouros era um burrinho já velho e empacadeiro. Tinha passado por outras terras, tido outros nomes (Brinquinho, Rolete, Chico-Chato, Capricho) e até sido raptado por um grupo de ciganos, que lhe deixaram uma marca-de-ferro, um coração no quarto esquerdo dianteiro e já meio apagada. Sua trajetória e experiências foram intensas (carregara algodão bruto; em cima dele morrera um tropeiro do Indaiá, baleado pelas costas; trouxera do pasto uma cobra “jararacuçu” pendurada no focinho...). Hoje, leva o nome de Sete-de-Ouros, dado por jagunço, jogador de truco (“manilha velha – a mais baixa no jogo, após a espadilha, o sete-de-copas e o zape) e pertencia a fazenda da Tampa, do Major Saulo.
Agora muito idoso e desacreditado de suas funções, longe do mundo e dos homens, o burrinho solitário e em pura indeterminação (“qual a qual, sem conversa, sem perguntas, cada um no seu lugar, devagar, por todos os séculos e seculórios, mansadamente amém.”), vivia cumprindo o seu Destino (o “rolar no mutirão”), o dever da solidariedade, do coletivo, que cumprirá em sua “hora e na sua vez”, em sua “hora de estrela”.
“Mas nada disso vale fala, porque a história de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas – seis da manhã à meia noite – nos meados no mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do rio das velhas, no centro de Minas Gerais.”
O major Saulo precisava conduzir 460 bois de sua fazenda até o arraial, para isso, doze vaqueiros foram convocados, além de Francolim Ferreira, jagunço de sua confiança. Entre eles estavam Badu e Silvino, ambos apaixonados pela mesma mulher.
Silvino havia jurado vingança e corriam boatos que iria matar Badu durante a marcha para o arraial.
“Com pezinho de Borralheira”, “todo calma, renúncia e força não usada”, “sem sexo e sem amor”, o Burrinho pedrês colocava-se em disponibilidade e harmonia perante os olhos de seu dono.
Na madrugada anterior à partida, houve fuga de montarias e o Burrinho pedrês é requisitado para seguir viagem junto, levando João Manico, o mais magro e leve de todos os homens (“decide do destino e ajeita caminho à grandeza dos homens e dos burros”).
Durante a travessia, Francolim alerta o Major Saulo sobre a intriga entre Silvino e Badu, mas esse não lhe dá ouvidos. Silvino então atiça um touro bravo contra Badu, que heroicamente consegue dominar, mas que promete matá-lo na volta do percurso.
A viagem corre naturalmente acompanhada de cantorias, lendas e histórias passadas pelos vaqueiros e os “causos” dos tropeiros.
Depois de atravessarem o rio, cheio pelas chuvas e enchentes, ao chegarem ao arraial, entregaram a boiada, comeram e beberam, porque “era preciso secar a chuva do caminho e esquentar a carcaça”.
O Major Saulo, permanece com a família no arraial e dá ordens para Francolim vigiar Silvino e conter as desavenças.
Badu bebe demasiadamente e acaba ficando para trás agarrado na crina do Burrinho pedrês, ambos ridicularizados, o bêbado equilibrado no velho burrinho.
Na volta, Francolim conta a história de uma boiada muito ruim no tempo de infância do Major Saulo. Com a boiada haviam trazido um negrinho que chorou cinco dias sem parar. Em uma noite, o negrinho cantou uma cantiga triste que fez adormecer os vaqueiros e inquietar os bois. Os bois fugiram e pisotearam em dois vaqueiros.
Quando os vaqueiros chegaram à margem do córrego da Fome, o local estava todo inundado e as opiniões entre atravessar ou não se dividiram. Decidem esperar o Badu. O bêbado e o burrinho entram na correnteza e os demais vão atrás, exceto João Manico e o Juca Bananeira.
Durante a travessia, um remoinho arrasta todos, salvando somente Badu que enfrenta a inundação agarrado à crina do burrinho, que por sua esperteza e experiência deixa-se levar pela correnteza, sem lutar contra ela, contornando seus obstáculos, enquanto, que, os outros tentando lutar contra ela, eram tragados em seus destinos.
Tragédia: oito mortos. Salvaram-se Badu e o Francolim Ferreira que no desespero segurou em algo que conseguiu mantê-lo firme, que nada mais era, o rabo do Burrinho pedrês.
Sete-de-Ouros esperou o momento exato para deixar Francolim às margens do córrego e prosseguir viagem com Badu em suas costas, ainda bêbado, até acordar e proferir palavrões.
Depois de cumprida a sua missão restava ao Sete-de-Ouros se esquentar, comer e descansar de sua jornada.
“Depois procurou um lugar qualquer, e se acomodou para dormir, entre a vaca mocha e a vaca malhada, que ruminavam, quase sem bulha na escuridão”.
CONCLUSÃO:
“Só e sério. Sem desperdício, sem desnorteio, cumpridor de obrigação, aproveitava para encher, mais um trecho, a infinda lingüiça da vida.”
“Mas Sete-de-Ouros detesta conflitos (...) Desliza. E pega o passo pelo pátio, a meio trote e em linha reta, possivelmente pensando: - Quanto exagero que há!...”
O Burrinho pedrês é caracterizado “humanamente” e sempre se apresenta com os olhos cerrados em uma meditação profunda, como se vivesse em plena introspecção mística.
Calmo, introvertido, tímido, pensativo, evitando conflitos, sempre em reflexão filosófica.
Sete-de-Ouros também conhecido como “Pica-Fumo” ou “Mole” é uma carta fraca no jogo de Truco, porém na numerologia, simboliza a sabedoria, o isolamento, a solidão, e as vitórias, enquanto que no Tarô, representa a superação.
Sete-de-Ouros possui o equilíbrio, a harmonia, a felicidade e a paz tão almejada pelos homens, podendo relacioná-lo com uma personagem bíblica: possui a terra e a ciência, que lhe assegura a paz de espírito. A enchente, o dilúvio podem ser exemplos de episódios bíblicos dentro dessa narrativa.
Salvaram-se: o Badu, em virtude de sua semiconsciência; o Sete-de-Ouros, sua sabedoria; João Manico e Juca Bananeira, pelo instinto; Francolim, lealdade e Major Saulo, certo do destino – os escolhidos.
Em, “O burrinho pedrês”, encontramos uma técnica narrativa típica de Guimarães Rosa, o entrelaçamento de narrativas paralelas à principal, onde o ápice/clímax está na travessia do sujeito e do objeto em discussão.
2. “A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO’ ou “TRAÇOS BIOGRÁFICOS DE LALINO SALÃTHIEL”
Lalino Salãthiel, ou Laio ou Eulálio é mais um anti-herói, oriundo da malandragem e da sorte de seu destino. A sua esperteza é comparada à dos sapos (“E, no brejo – friíssimo e em festa – os sapos continuavam a exultar”).
O mulatinho é sem vergonha, oportunista, mentiroso, porém inteligente de uma “raça de criaturas diferentes, que os outros não podem entender”.
Lalino trabalha quebrando pedras no minério para abrir uma rodovia. É funcionário do Sr. Marra e constantemente está atrasado para entrar em serviço, porém sempre arruma uma desculpa, saindo-se bem (“Que é que eu hei de fazer, Sr. Marrinha...Amanheci com uma nelvralgia...Fiquei com cisma de apanhar friagem...”).
No serviço cumprimenta todos os trabalhadores, desconversa de alguma ironia e desvia assuntos que não lhe convém. Para agradar o chefe fala de peças teatrais que nunca assistiu e incentiva-o a montar uma peça (“Visconde Sedutor”) elogiando o texto e mentindo que assistira à peça no Rio de Janeiro. Enfim, o mulato é faceiro, malandro, mas possui o dom da oratória e consegue convencer todos os que rodeiam.
Sempre alegre, de bem com a vida e popular entre os conhecidos, vêm de carona com Sr. Waldemar, imitando a vida como se fosse um ator.
Casado com Maria Rita, que o ama verdadeiramente. Um dia, Lalino se cansa de imaginações e histórias inventadas, e resolve viver a realidade: o Rio de Janeiro com todas as suas façanhas. Avisou Sr. Waldemar, despediu-se do Sr. Marra, porém a dificuldade era separar-se da mulher, Maria Rita.
Sabia do interesse do espanhol, Sr. Ramiro por sua esposa, pediu-lhe dinheiro emprestado, jurou não voltar mais e tocou para o Rio de Janeiro.
Maria Rita chorou um mês, no terceiro mês estava morando com o espanhol, que era extremamente ciumento e possessivo.
Todos que conheciam o “caso”, afirmavam que Lalino havia vendido à mulher!
A rodovia ficou pronta e os espanhóis adquiriram terras por lá. Enquanto isso, Lalino no Rio de Janeiro, inicialmente se deliciava com tantas farras, que é impróprio contar aqui.
Mas um dia, enjoou-se da correria, das aventuras, da falta de dinheiro e bateu saudades daquele amor puro e verdadeiro – resolveu voltar.
Ramiro desesperado perdoou-lhe a dívida, devolveu-lhe o violão e o afastou de Maria Rita.
Mas a sorte estava ao seu lado; o Sr. Oscar, filho de Major Anacleto, chefe político local, que disputava a eleição com Benigno, oferece-lhe um emprego como cabo eleitoral.
No dia da entrevista, Lalino chega atrasado e justifica-se dizendo que colhia informações do partido concorrente para melhor servir ao Major. Major Anacleto satisfeito com a “desculpa” contrata-o como também arranja um guarda-costas, o Estevão, para a sua segurança e auxiliar contra os boatos da história da venda da Ritinha.
Durante a sua campanha eleitoral, Major Anacleto fica sabendo através do padre que, Lalino sofria por ter perdido Maria Rita; que, Ramiro, reclamava das investidas de Lalino com sua mulher e que ele estava envolvido com o filho do Benigno, seu concorrente político.
Lalino se defende afirmando que andava com o filho do Benigno para colher informações para o Major; que os espanhóis tinham-lhe raiva por ter gritado: “Viva o Brasil”; que estava caçando votos e que muito o surpreendia o Major acreditar nos espanhóis, “gente das estranjas, que nem votava em eleição?!”
Lalino pede a seu amigo Oscar que intercedesse por ele, fosse à casa do espanhol e levasse um recado à Maria Rita. Oscar foi, porém ao ver Maria Rita ficou enfeitiçado por sua beleza e tenta seduzi-la.
Maria Rita não corresponde às investidas de Oscar e confirma o seu amor ao Laio.
Oscar magoado com a recusa da moça pede a seu pai que demita Lalino. Mas, o mulatinho arma outra saída: conta ao Major que o filho de Benigno, o Nico, havia engravidado uma moça e se recusava assumir o casamento, colocando os eleitores contra o seu pai. Que ele, Lalino, esconderia o Nico e só liberariam após as eleições.
Chega à notícia que um deputado da oposição vindo de Oliveira iria apoiar Benigno.
O Major fica irritado, ainda mais quando recebe à visita de Maria Rita reclamando dos maus tratos de seu companheiro, o espanhol Ramiro e fica sabendo que Lalino estava no bar com o pessoal da oposição. Furioso, o Major se retira para descansar, mas é acordado com o barulho de um carro em sua casa; os homens da oposição: o Senhor Secretário do Interior e seus homens, de passagem “pra Belorizonte! Nunca se viu tantos rapapés naquela fazenda. Mas Suas Excelências nada queriam, apenas atendiam ao convite do Senhor Eulálio, o emissário do Major, que os abordara na estrada e os entretivera com tanto espírito durante toda à tarde, que homem divertido! Levasse-o a Belo Horizonte na próxima visita! Despediu-se logo de todos. Sua Excelência e seus homens, com um especial abraço em Lalino Salãthiel.”
Lalino recupera Maria Rita e o Major despacha os espanhóis, “que abandonem a terra, e já, ele compra e paga, e se a estranja espanholada miar, que desçam a lenha: No brejo, a saparia faceira exulta e faz festa.”
Eles não votam por serem estrangeiros e podem colocar em risco a política local. Enquanto isso, Sr. Marra, influenciado por Lalino, investe no teatro em Divinópolis.
CONCLUSÃO:
Conto de narrativa irônica. Apresentando o painel político brasileiro durante as eleições, com as falcatruas e armações políticas e politiqueiras.
Como protagonista, temos a figura do malandro, uma personagem picaresca, que com o “jeitinho brasileiro” e a sua astúcia, consegue se sair bem de todos os seus propósitos, como um “herói às avessas”.
3. “SARAPALHA”
"Na beira do rio Pará já existiu povoado, plantações, bons pastos e gente boa, antes da malária chegar, vinda pelo São Francisco e levando muita gente para o cemitério ou para outro lugar “por este mundo de Deus”. A três quilômetros pra cima, perto do vau da Sarapalha moram dois primos: Primo Ribeiro e Primo Argemiro, ambos tristes e doentes, “porque era sezão da brava – da tremedeira que não desamontava”.
Além deles, um cachorro, o Jiló e uma preta velha Ceição que cuida de levar café e cachaça com limão aos primos para poderem esquentar.
Entre um ataque de tremedeira e outro, passam os dias em eterna solidão, como se esperassem a morte chegar.
Primo Ribeiro está em estado doentio mais avançado que Primo Argemiro e este, com presteza de um irmão ou mais que um filho, preocupa-se em cuidar do outro, amparando-o durante as tremedeiras e desviando assuntos que lhe trazem lembranças ruins.
O que mais causa sofrimento ao Primo Ribeiro é o abandono de Luísa, morena bonita, com quem foi casado durante três anos e que faz questão de relembrar constantemente a vida passada junto dela, inclusive quando, já doente, Luísa foge do sítio com um bonito boiadeiro, “o capeta”.
Primo Argemiro enquanto ouve as lamúrias do Primo Ribeiro, também se entrega as lembranças: ele foi morar no sítio do Primo Ribeiro por também estar apaixonado por Luísa, mas nunca teve coragem de confessar ao Primo Ribeiro o seu amor platônico por Luísa e nem a ela, que partiu sem nada desconfiar.
Depois de mais um ataque de febre alta do Primo Ribeiro, Primo Argemiro não agüenta mais esconder o seu “pecado” e resolve abrir seu coração ao Primo Ribeiro. Contou-lhe o motivo de sua mudança para o sítio, o amor reprimido que sentia por Luísa, o respeito que tinha pelos dois e o sofrimento de também tê-la perdido. Jurou-lhe que nunca houve nada entre os dois, mas Primo Argemiro sentiu-se traído...como não houve nada? Ele traíra a sua confiança? Então, Primo Ribeiro inconformado com a confissão transfere a sua ira ao Primo Argemiro, expulsando-o imediatamente de lá, já que não tinha forças para matá-lo.
Primo Argemiro parte sem rumo, levando consigo as lembranças de Luísa, sua febre, o ódio do Primo Ribeiro e sendo acompanhado pelo cachorro Joli, que fica dividido entre partir com Primo Argemiro ou ficar com Primo Ribeiro e a companhia do mato, “todo enfeitado, tremendo também com a sezão”. Enquanto, Primo Ribeiro tem outro acesso de febre e cai morto.
CONCLUSÃO:
Em “Sarapalha”, o tempo age como personagem no conto. A dor do passado (a frustração amorosa dos dois primos) contrapõe-se com a dor presente (a doença e a solidão).
Perante a confissão do Primo Argemiro, temos não a salvação; mas, sim, a sua punição.
Ambos se entregam à natureza, que por sua cumplicidade “treme também” com Primo Argemiro e é “lugar bonito p’r’a gente deitar no chão e se acabar!”
4. “DUELO”
“Assim, pois: de qualquer maneira, nesta história, pelo menos no começo – e o começo é tudo – Turíbio Todo estava com a razão.”
Turíbio Todo era um seleiro “papudo, vagabundo, vingativo e mau”. Um dia aconteceu-lhe de tudo dar errado: foi pescar, mas não conseguiu nada: havia muitos mosquitos, perdeu o anzol e para piorar, quando retorna à sua casa, surpreende a sua mulher, em pleno adultério com o Cassiano Gomes, um ex-soldado e muito bom atirador.
Disfarçou o que vira e preparou a sua vingança. No dia seguinte, partiu em rumo à casa de Cassiano Gomes, ficou preparado e atirou de longe, acertando-lhe nas costas. Voltou para casa e nem pensou em vingar-se de sua mulher, afinal ela tinha olhos bonitos, “de cabra tonta”. Porém, aconteceu um equívoco! Na verdade Turíbio Todo, havia acertado no irmão de Cassiano Gomes – Levindo Gomes.
Cassiano Gomes enterra o irmão e jura vingar-se. O caso inverte: Turíbio Todo de perseguidor passa a ser perseguido.
Turíbio foge durante cinco a seis meses, chegando não se encontrar com o inimigo algumas vezes por pura sorte do destino. Sabendo que Cassiano Gomes sofria do coração, Turíbio Gomes articula o plano de deixá-lo bem cansado até morrer e parte para São Paulo. Comunica sua decisão à esposa, Silivania, que corre informar o plano ao amante.
Cassiano Gomes resolve dar uma trégua na perseguição, visitar sua mãe e depois pegar o assassino. Mas, chegando ao povoado do Mosquito, passa mal e acaba ficando por lá.
Em Mosquito, acaba conhecendo um capiau muito pobre chamado Timpim Vinte-e-Um, ajuda-o financeiramente, salvando-lhe o filho e a mulher da fome.
Cassiano Gomes e Timpim-Vinte-Um tornam-se bons amigos e antes de morrer conta-lhe a sua história.
Turíbio Todo depois de ser avisado pela esposa do falecimento de Cassiano Gomes, retorna ao seu lar, cheio de amor e de presentes. No caminho conhece um caipira e seguem juntos. Até que o caipira pergunta-lhe se ele era mesmo Turíbio Todo, depois se apresenta como Timpim Vinte-e-Um, amigo fiel de Cassiano, que jurara em seu leito vingar-se de Turíbio Todo (“-Não grita, seu Turíbio, que não adiante...Peço perdão a Deus e ao senhor, mas não tem outro jeito, porque eu prometi ao meu compadre Cassiano, lá no Mosquito, na horinha mesma d’ele fechar os olhos...”). Mesmo perante as súplicas de Turíbio, Timpim não lhe deu razão. Atirou, acertando uma bala na cara esquerda e outra na testa.
CONCLUSÃO:
Conto de tensão, onde durante a “travessia” de Turíbio Todo como perseguidor-perseguido e quando se sentiu vitorioso em seus planos (Cassiano morre do coração), é novamente perseguido por um caipira fraco, que não apresentava perigo algum. Mas, que, por ser “bom” coração cumpriu a promessa feita ao amigo.
5. “MINHA GENTE”
O narrador-protagonista está de visita à fazenda de seu tio Emílio do Nascimento e de sua prima Maria Irma, de quem foi namorado quando criança.
“Quando vim passar uns tempos na casa do meu tio Emílio já sabia de um monte de coisas da vida na roça. Outras eu ainda tinha de aprender.”
Ao desembarcar, encontra com Santana, inspetor escolar itinerante e problemista, principalmente do jogo de xadrez e José Malvino que a mando do tio, veio acompanhá-lo.
Durante a viagem Santana sugere uma partida de xadrez. Sempre vencedor, vendo-se encurralado num lance de xeque, Santana propõe interromper a partida e ganhar na conversação. Assim, puderam admirar a paisagem e aprender muitas coisas com José Malvino.
A fazenda nada mudara, exceto algumas melhorias feitas pelo trabalho. O tio Emílio era candidato político pelo partido do “João-de-Barro”, concorrendo com o partido “dos Periquito”.
O narrador-protagonista apaixona-se por sua prima Maria Irma, que de início o seduz e depois o descarta.
Enquanto auxilia o tio na confecção das cartas aos correligionários, sofre cada vez mais as indiferenças da prima, que além de linda era muito inteligente.
Para tentar relaxar decide pescar com Bento Porfírio, outro sofredor de amor. Este, por causa de uma pescaria, deixa de conhecer o grande amor de sua vida, a de-Lourdes e vem encontrá-la casada com Alexandre.
Porfírio também já casado com Bilica torna-se amante de-Lourdes, que descobre o caso e mata Bento Porfírio na frente do narrador-protagonista.
Enquanto, o narrador-protagonista fica chocado com o acontecido, Maria Irma só se preocupa com a situação das mulheres (esposa e amante) e o tio, em esconder o Alexandre até as eleições para não perder mais um voto.
O narrador-protagonista fica enciumado ao saber que Ramiro, um rapaz bonito da cidade, veio visitar Maria Irma e trazer-lhe alguns livros.
No outro dia, portou-se submisso para atraí-la, mas nem a sua submissão a conquistava, apelou para o ciúme: passear na fazenda das Tranqueiras, do Seo Juca Soares, do partido do Periquito e ver Alda, outra “antiga namoradinha de infância”. Porém, nem isso abalou Maria Irma, que inclusive falou que ele iria gostar de Alda, mas que gostaria mais de Armanda, moça bonita, inteligente, moderna, noiva de Ramiro e com viagem para Europa no currículo.
O tio Emílio o acompanhou parte do caminho e foi reclamando das eleições, sentindo-se um perdedor e acreditando que a vitória seria do Periquito.
Mas, Alda não era Maria Irma, e o narrador-protagonista não conseguia esquecê-la. Durante a conserva com Juca Soares, o narrador-protagonista comentou o desânimo de seu tio perante as eleições e isso só veio a ajudar, pois Juca sentindo que a eleição já estava ganha, relaxou, facilitando o trabalho para o tio Emílio.
O narrador-protagonista decepcionado e sofrendo pelo amor de Maria Irma, decide partir para a fazenda do tio Ludovico e esquecer Maria Irma, que insistia para que ele ficasse e conhecesse sua amiga, Armanda.
Até que o narrador-protagonista recebe duas cartas: uma do tio, comunicando que venceu as eleições e pedindo para que ele voltasse e outra, de Santana, terminando a partida interrompida, dando-lhe um xeque-mate.
Resolve voltar para o Saco-do-Sumidouro e por um fim nesse amor platônico por Maria Irma. “A estrada do amor, a gente já está mesmo nela, desde que não pergunte por direção nem destino. E a casa do amor – em cuja porta não se chama e não se espera – fica um pouco mais adiante.”
Lá chegando, encontrou Maria no quintal com uma amiga, Armanda. Foi paixão à primeira vista!
O narrador-protagonista ficou noivo de Armanda e casou-se com ela, antes ainda do casamento de Maria Irma e Ramiro Gouveia, “dos Gouveias da fazenda da Brejaúba, no Todo Fim – É – Bom.”
CONCLUSÃO:
A carta de Santana dando-lhe o xeque-mate tirou o narrador da invalidez de seus caminhos, guiando ao seu verdadeiro destino.
A travessia, a sua aprendizagem ou as coisas que “eu ainda tinha de aprender”, seguem seu rumo como numa partida de xadrez. Antes, um jogador inexperiente, tentando ganhar pela sorte; hoje, um profissional, sábio, e paciente – atingindo o seu destino, onde o xeque-mate na hora certa representa o amor verdadeiro: a técnica de saber jogar.
6. “SÃO MARCOS”
O narrador-personagem José (Izé) conta-nos a sua “travessia” quando morava no Calango Frito.
Dizia ele que naquele lugar e época, era comum a prática de feitiçarias de “amarramento e desarrumação”.
Havia no local um pai-de-santo famoso, chamado João Mangolô, que Izé todos os domingos, quando ia passear em mata adentro para contemplar a natureza, fazia questão de passar na frente do cafuá do feiticeiro e zombar de sua feiúra e suas práticas de bruxaria, ensinando-o os mandamentos do negro: cachaceiro, vagabundo e feiticeiro.
Izé conhecia a oração de São Marcos, reza brava que só recitava por achar engraçadas as suas palavras. Sá Nhá Rita Preta e Aurísio Manquitola aconselhavam-o a não brincar com coisas sérias, que era perigoso, contando-lhe alguns causos conhecidos; como por exemplo, o de Tião Tranjão, homem simples e tímido que através do poder daquela oração, transformou-se num valentão, arrombando grades e lutando contra dez homens.
Mas, Izé dizia não acreditar nessas estórias. Em um domingo, durante seu passeio, encontrou em um bambu, um poema amoroso cravado em seu tronco. Continuando com suas zombarias, pegou uma faca e escreveu em baixo do poema, uma seqüência de nomes de reis antigos, “não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais com as riçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes” e ficou meditando sobre a sonoridade das palavras, quem “têm canto e plumagem”.
Em outro domingo, em seu passeio dominical, Izé retoma ao bambuzal para continuar o desafio poético que começara com o desconhecido autor que ele mesmo apelidara de “Quem será?”
O “Quem será” havia deixado em baixo das anotações de Izé uma crítica “língua de turco rebatacho dos infernos” e acrescentado outra quadrilha, que o narrador tentou por duas vezes retrucar, mas não gostou do que escreveu.
No terceiro domingo, quando Izé estava contemplando a beleza e a harmonia da natureza, de repente sua vista escureceu. Fica desesperado e põe-se a ouvir à natureza e os seus cheiros para tentar se guiar. Quando, ouve uma voz : “ – Guenta o relance, Izé!”.
De início pensou que fosse o poeta anônimo ou Aurísio Manquitola, depois sente medo, angústia, e sentiu vontade de chorar. A voz continuava como uma ordem e descontrolado, Izé começa a proferir a oração de São Marcos. Como se entrasse em transe, começa a correr sem direção até que o mato acabou e ele ouviu os grunhidos de porcos de João Mangolô.
Totalmente enfurecido, Izé começa a esmagar João Mangolô que pedia que não o matasse. Nisso, como um milagre ou uma magia, volta à visão de Izé e ele pode ver que o feiticeiro havia colocado um retrato dele numa bruxa de pano e amarrado uma tira de pano preto em seus olhos.
Izé resolveu fazer as pazes com João Mangolô, dá-lhe uma nota de dez mil-réis e avisa-lhe que ele era bom feiticeiro, que não brincasse mais com ele, pois ele tinha reza forte e um anjo bom.
CONCLUSÃO:
O canto inicia com uma sátira sobre as crenças populares, incorporando várias micro estórias em sua narrativa. No desenrolar da estória principal, o narrador-personagem encontrará um desafio com as palavras, propondo “um vocabulário pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado”, típico da linguagem roseana. Enquanto o narrador utiliza-se de seus aspectos lingüísticos e visuais para contemplar a natureza, ocorre-lhe a cegueira e terá que substituir suas aptidões pela audição e reconhecer através dos sons, como também do seu lado mítico, recorrer à oração de São Marcos, que sempre satirizou, para lhe guiar.
Há nesse conto a metalinguagem desenvolvida pelo narrador em questionar a própria poesia, a “travessia do aprendizado”, o mítico, o sobrenatural e à integração do homem com a natureza.
7. “CORPO FECHADO”
O narrador-personagem, um médico, que estava morando em Laginha, um povoado do interior dos Gerais, através de sua amizade com Manuel Fulô, fica sabendo das estórias dos valentões do local.
Manuel Fulô, ou Manuel Veiga, ou Manuel Flor, ou Mané das Moças ou Mané-minha égua, pertencia à tímida família dos Veigas, pacato, porém esperto.
O médico perguntava-lhe sobre a vida em Laginha e Manuel contava-lhe a seqüências dos valentões que já existiriam e tiveram os seus fins nas grades de uma cadeira, nos cemitérios ou no mundo afora.
Agora quem regia no vilarejo era o Targino, valentão afamado, “ruim mesmo inteirado...Não respeita nem a honra das famílias! È um flagelo...”(...) Esse-um é maligno e está até excomungado...Ele é de uma turma de gente semque-fazer, que comeram carne e beberam cachaça na frente da igreja, em sexta-feira da Paixão, só p’ra pirraçar o padre e experimentar a paciência de Deus...”
O narrador-personagem e o protagonista foram se tornando amigos e entre uma estória e outra de valentões, Manuel Fulô, contava também as suas espertezas, como que conseguiu enganar três ciganos de uma só vez, trocando dois cavalos lazarentos por dois melhores e recebendo dinheiro de volta. Porém, feliz com sua astúcia, saiu à rua para se vangloriar do feito e depois disso não conseguia fazer negócio com mais ninguém.
Manuel Fulô tinha somente um rival, o Antoninho das Águas, ou Toniquinho das Pedras, esse tinha uma sela mexicana que não usava e nem vendia e Manuel Fulô sempre a quis. Faria um conjunto perfeito com sua égua, a Beija-Fulô.
Manuel Fulô estava apaixonado por Maria-das-Dores, “rapariguinha risonha e redonda, peituda como uma perdiz. Bonita mesmo, e diversa, com sua pele muito clara e os olhos cor de chuchu”.
Estavam Manuel Fulô e o médico bebendo num bar, quando aparece o Targino e publicamente avisa sua intenção de dormir com as Das-Dores, uma só vez, mas antes deles se casarem. Dizia que voltaria amanhã para visitá-la e caso contrário, gesticulava-se dando um tiro no Manuel Fulô.
Manuel Fulô ficou desesperado, não tinha forças pra reagir – “estava tudo acabado para ele”
O doutor tentou encorajá-lo, pediu ajuda às autoridades locais, ao padre – mas, nada, podia se fazer!
Então aparece na casa de Manuel Fulô, o Antoninho das Águas, o homem que cobiçava a égua Beija-Flor, feiticeiro da região e pede em troca de “fechar o corpo de Manuel Fulô” a sua égua. Não havia escolha. Com água, linha, cachaça, prato fundo e uma lata com brasas foram feito o trabalho espiritual.
Targino chega devidamente armado à porta da casa de Manuel Fulô, que saí com uma faquinha, tipo canivete na mão, ofendendo a mãe do outro. Ouviram cinco tiros.
O médico sai para espiar, vê Targino caído e Manuel com ódio e precisão enterrando sua faquinha no corpo de Targino, ainda deu-lhe alguns pontapés e cusparadas.
Manuel Fulô comemorou durante um mês sua valentia, teve até que adiar o casamento, pois o padre não fazia a cerimônia com pessoas bêbadas. O médico foi o padrinho de casamento e a sua fama de valentão dos valentões só se esgotou quando chegou em Laginha, um destacamento policial.
Mas, de vez em quando, Manuel Fulô escondido de sua esposa, toma meia garrafa de cachaça, empresta a Beija-Fulô do Antoninho das Águas e sai pelas ruas de Laginha gritando:
“- Conheceu, gente, o que é sangue de Peixoto?!...”
CONCLUSÃO:
Além da estória dos ex-valentões locais até o temor que causava Targino, temos a estória da vida de Manuel Fulo, espertalhão, mulherengo e cachaceiro e de, suas experiências obtidas quando morou com os ciganos, que são narradas através de diálogos entre esse e o narrador-personagem, homem culto da cidade.
Retratando os costumes, a má fama dos ciganos, o ambiente pitoresco e a falta de autoridade local, o protagonista molda um clima de tensão vivido “em terra de gente brava...”
Também encontramos o materialismo que explicitado na posse da égua de Manuel Fulô e na sela mexicana de Antoninho das Águas que metaforiza a ostentação, a aparência.
Por fim, temos outro enredo envolvendo a questão mítica, onde o “corpo fechado” de Manuel Fulõ vence o Demo (Targino). Para isso, Manuel Fulô teve que se desfazer de sua égua para ganhar o seu amor verdadeiro e a fama de valentão.
8. “CONVERSA DE BOIS”
O conto se inicia com Manuel Timborna afirmando que os bois já conversavam antes, nos livros de fadas, mas que agora, conversam no dia a dia e que poderão ser entendidos por qualquer pessoa.
Manuel Timborna conta que através de uma irara chamada Risoleta ficou sabendo dessa história que irá contar ao narrador, que por sua vez, contará aos leitores.
Um carro-de-bois chegava na encruzilhada da Ibiúva, logo após a cava do Mato-Quatro(...) terra ruim. Era guiado por Tiãozinho, menino triste, que chorava a morte de seu pai e pelos maus tratos do carreiro Agenor Soronho, seu padrasto.
O carro-de-bois era conduzido por oito bois: Buscapé, Namorado, Capitão, Brabagato, Dançador, Brilhante, Realejo e Canindé.
Eles carregavam uma carga de rapadura e o corpo de Jenuário, pai de Tiãozinho para ser enterrado.
Enquanto Tiãozinho fica em semi dormência, relembrando o passado com o seu pai, a doença que o atacou; a “senvergonhice” de sua mãe traindo o pai doente com Agenor Soronho e as palavras de seu padrasto, que agora seria tudo diferente, que ele é que mandava.
Os bois, por sua vez, conversavam e refletiam sobre suas vidas.
“Nós somos bois-de-carro e sabemos que somos bois. Os outros não são como nós” (...)
“ - E tem também o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta que cutuca a gente. Homem é um bicho que não devia de haver.;”(...)”-Nós bois-de-carro podemos pensar como bois e como homens, mas é melhor pensar como boi...”
Então, boi Brilhante se lembrou da história do boi Rodapião. “(...) Era quase como nós, mas pensava como gente e queria ensinar os bois a pensar...Tudo queria ver e não parava quieto...”(...)Boi Rodapião queria ensinar tudo pra gente que sabia fazer: como ganhar sal do homem, como pastar o melhor capim e beber a água mais fresca. Era esperto estúrdio o boi Rodapião, com suas manhas de homem...”
“(...) Boi Rodapião queria ensinar a gente a ver e pensar cada coisa como homem, cada pedaço de cada coisa, cada coisa de uma vez, todo dia...Pra quê havíamos de fazer isso, se as coisas pensam pra gente?”
Um dia o boi Rodapião estava com sede e não queria andar até onde estava à água e dentro de seus pensamentos concluiu que, todo o lugar que tem árvores juntas, mato comprido, tem água. Viu que em cima do morro havia essa descrição e pra lá se foi, “Começou a subir a ladeira, lugar de boi não ir (...) depois despencou lá de cima, (...) sem poder nunca mais levantar do lugar. Chegaram os urubus, e eu saí de perto, que não gosto desse bicho...”
Mais adiante encontraram o carro de boi da Estiva, conduzido por João Bala, que conta que tinha despencado o Morro-do-Sabão abaixo e graças aos seus bois estava salvos. Explica que eles tinham sustentado o carro, sozinhos dando-lhe tempo para poder pular.
Agenor ao ouvir a história, debochou da incompetência de João Bala e deu ordem para a subida.
Depois, cansado dessa aventura, dorme na ponta do carro. Tiãozinho também adormece, mas “dorme caminhando como nós bois”...
Os bois sensibilizados com a dor de Tiãozinho e sentindo-se parecidos com ele, concluem que são forte “(...) Todos os bois...Sou enorme, grande e forte...Mais do que seu Agenor Soronho...”, entram em seu sono e só esperam o grito de ordem do menino para que todos juntos possam agir "Tiãozinho deu um grito, um salto para o lado...Os oito bois se jogaram todos pra frente, juntos...O carro pulou forte pra frente.”
Agenor Soronho morreu, degolado pela roda esquerda.
“(...) Mô-oung! Que é que estão falando os bois de trás?”
“- Que tudo o que se ajunta espalha.”
Tiãozinho acorda e chora desesperadamente, cheio de dúvidas: ele era o culpado? Por que gritara? Devia rezar e pedir perdão?
Seu Quirino se oferece para ajudar a levar a carga e agora além da rapadura do Nhô Alcides, levavam dois corpos e a viagem se transcorre mais tranqüila. Só não sabemos o final da história porque a irara tinha um compromisso e se foi...
CONCLUSÃO:
Durante a “travessia” na conversa entre os bois, nota-se a consciência que eles devem pensar como homens, mas agirem somente como bois.
O conto “Conversa de Bois” representa a justiça dos animais versus a crueldade dos homens.
A atitude do boi Rodapião foi de superioridade, quisera sentir-se como um homem, demonstrar sua esperteza e raciocínio, levando-o a queda, morrendo entre o capim e tendo ao seu redor os urubus.
Se Rodapião tivesse agido pelo instinto, pela sensação, que é típico dos bois, “o nosso pensamento de bois é grande e quieto...Tem o céu e o canto do carro...O homem caminha por fora. No nosso mato-escuro não há dentro nem fora.”, não aconteceria o desastre.
Outro dado importante da narrativa é que, quando ocorre o acidente com o carro-de-bois, Agenor Soronho está dormindo e Tiãozinho “dorme-não-dorme”, ambos em estado inconsciente ou em transe e a atitude dos bois, só decorrer após a “ordem” do menino, seu grito, pois os bois não agindo como os homens, não possuem vingança, necessitam por isso, dependiam de uma ordem expressa pelo homem (“tudo o que se ajunta espalha”...).
A narrativa tem um caráter mítico e é regida entre o dualismo do Bem versus o Mal. Jenuário, pai de Tiãozinho, passa muito tempo de sua vida lutando contra a morte, numa invalidez até amorosa, pois têm consciência que é traído por sua mulher, mas nada pode fazer.
Jenuário origina de Jano (deus protetor das portas (janue) e das passagens) representando o final de um ciclo e começo de outro (janeiro): João Baía tratava bem os seus animais e foi salvo por eles; a história se dá em uma encruzilhada, lugar ruim e Ibiúva significa “mato ruim”, após a cava (morte) do Mata-Quatro (Tubarão, a do boi Rodapião, a do Didico e a de Jenuário), finalizando com a morte do Demo, Agenor Soronho.
Em fim, o fraco vence o forte, o instinto vence o racional, a cumplicidade e a união, vencem o mal.
9. “A HORA E VEZ DE AUGUSTRO MATRAGA”
Antes, grande fazendeiro, agora, perdia toda a herança deixada por seu pai em aventuras e jogos.
Valentão e perverso não respeitava filha dos outros e nem mulher casada. Sua esposa, ” o amara durante três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o suportara os demais.”
Em uma noite de novena, num leilão de atrás de igreja, arrematou duas prostituas, a Angélica e a Sariema.
Dona Dionóra e Mitica durante a viagem foi convencida a abandonar seu marido e ir viver decentemente com Ovídio Moura, homem que gostava dela “da maneira de que a gente deve gostar”.
Quim Recadeiro, fiel empregado de Nhô Augusto, vai lhe dar duas péssimas notícias: a fuga da esposa e da filha e a debandada de seus capangas, que prevendo o empobrecimento de seu patrão, aliaram-se ao seu rival, o Major Consilva.
Nhô Augusto, ao invés de dar tempo ao tempo, e esperar se cumprir o ditado “cada um tem seus seis meses”, prepara-se para vingar primeiro a traição dos seus capangas e depois, acertaria as contas com a mulher e o amante. Mas, chegando nas terras do Major Consilva, foi recebido com porradas e marcado a ferro em brasa como gado, um círculo com um triângulo no meio.
Quando se viu perdido, reuniu forças e se atirou em um barranco. Os ex-capangas acreditando que ele estivesse morto, não foram atrás do corpo.
Porém, Nhô Augusto foi encontrado por um casal de negros (Serapião e Quitéria) que o acudiram e cuidaram dele até ele “ressuscitar”.
Aí começa uma nova fase na vida de Nhô Augusto: tendo o casal salvador como sua família, buscando no passado lembranças de sua mãe, rezas de sua avó, inicia a sua fase de penitência e arrependimentos. Pediu um padre para se confessar e este, lhe diz que, através de muitas rezas, humildade e solidariedade, ele conseguiria a sua absolvição, afinal “cada um tem á sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.”
Quando já estava melhor, partiu com o casal de negros, para um sítio de sua propriedade, sem antes de ajoelhar-se na estrada e jurar: “ – Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!...E a minha vez há de chegar...P’ra o céu eu vou, nem que seja de porrete!...”
Passam seis anos de trabalho árduo, dedicação, oração e abstinências de bebidas, cigarros e mulheres.
Certo dia, o Tião da Thereza, conhecido de Nhô Augusto passou por lá, pois “tudo é muito pequeno, e o sertão ainda menor”, o reconheceu e lhe deu notícias: Dona Dionóra estava feliz, pensando até se casar com Ovídio, a sua filha Mimita tinha sido seduzida por um cometa (caixeiro viajante) e se perdera, virando mulher à toa, o Major Consilva havia arrematado suas duas fazendas e o Quim Recadeiro tinha sido assassinado ao defendê-lo.
Nhô Augusto faz Tião da Thereza, jurar segredo sobre o seu paradeiro, mesmo porque Nhô Augusto estava morto.
As notícias o abalaram, mas as palavras do padre eram mais fortes e Augusto Matraga resistia à tentação de uma vingança. Com o passar do tempo, as vontades adormecidas, voltaram e recomeça a fumar e sentir desejos. Então, aparece um grupo de oito valentões liderados por Joãozinho Bem-Bem. O povoado inteiro se estremeceu, mas Nhô Augusto recebeu o grupo com simpatia, oferecendo-lhes comida, pousada e amizade. Nesse dia até experimentou uma cachaça com o bando e tentou atirar, pra ver se ainda conseguia. Na despedida Joãozinho Bem-Bem o convida a seguir juntos, a tentação foi muito forte, mas Nhô Augusto resistiu novamente.
Os dias passavam e numa manhã de sol, sentiu o chamado: era à sua hora e sua vez. Augusto Matraga parte para a tristeza de todos do povoado que o queriam muito bem e leva um jegue, por insistência de todos.
O destino o guiava sempre ao rumo do Sul, perto do povoado do Murici, do seu grande amigo, Joãozinho Bem-Bem. Quando encontrou o bando, foi recebido com alegria, mas acabara de acontecer uma desgraça: tinham matado o Juruminho à traição e o chefe, jurava vingança. Joãozinho Bem-Bem chega a oferecer as armas de Juruminho a Augusto Matraga, que as negou.
Nessa hora batem à porta. Era o pai do assassino, um velho desesperado, tremendo e chorando, pedia pela vida de sua família, que não matassem seu filho e nem entregasse suas filhas ao bando. Joãozinho Bem-Bem ignorou as súplicas do velhinho e disse que a morte é a melhor maneira de vingança. O velhinho insulta-o de Satanás e pede forças a Deus.
Augusto Matraga interfere no assunto e pede pela aquela família que sofria e pedia em nome da Virgem e do Cristo.
Diante da recusa de Joãozinho Bem-Bem, Augusto Matraga o desafia, dizendo que só por cima de seu cadáver, ele vingaria àquela família. Começa a confusão: tiros, facadas e palavrões. Morreram três e outros três fugiram, sobrando Joãozinho Bem-Bem e Augusto Matraga, ensangüentados, mas com um sorriso na boca. A faca entra no estômago de Joãozinho Bem-Bem e “um mundo de cobras sangrentas saltou para o ar livre”.
O povo tenta acudir Augusto Matraga, que pede para ajudar o seu “parente” que morria primeiro, “morro, mas morro na faca do homem mais maneiro de junta e de mais coragem que eu já conheci!...Eu sempre lhe disse quem era bom mesmo, mano velho...É só assim que gente como eu tem licença de morrer...Quero acabar sendo amigos...” Enquanto que, Augusto pede para que o amigo se arrependa dos pecados e morresse como um cristão “que é para a gente poder ir juntos”... Pede para buscarem um padre, para vir abençoando-lhe no caminho, senão não daria tempo, insiste em morrer na rua “olhando o céu, e no claro”, não permite que vibrem a morte de Joãozinho Bem-Bem e exige respeito a ele e um enterro decente.
O povoado vibrava de contentamento, “foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mor de salvar as famílias da gente!” O pai do assassino, agradecia a Nhô Augusto e pedia para não deixar “este santo morrer assim...”
Em sua hora derradeira, Nhô Augusto pergunta quem “já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas!” João Lomba, primo de Nhô Augusto o reconhece. Então, Augusto Matraga pede: “-põe a bênção na minha filha...seja lá onde for que ela esteja...E, Dionóra...Fala com a Dionóra que está tudo em ordem!”
E morre.
CONCLUSÃO:
A travessia desse conto está na passagem do homem cristão pela terra, um homem rude e primitivo, sem o contato com o mundo civilizado, onde as qualidades são: a força física e a intuição.
A sua viagem consiste alegoricamente em sua “morte”, “ressurreição” e depois a “vida”.
Primeiramente, Nhô Augusto aparece como um pecador, o castigo é a sua aprendizagem para a ressurreição e somente depois de seu aprimoramento, a vida.
A imagem de Matraga seguindo o seu destino em um jumento, lembra-nos a imagem de Cristo, um novo Cristo, “às avessas” buscando a “sua hora e sua vez”, a sua obrigação que está comprometida com Deus e consigo próprio. Podemos notar que a religiosidade de Matraga, a sua maneira de alcançar o céu, se dá pelo sacrifício: morrer para defender o velho e sua família.
É interessante notar, que a marca que Matraga traz, feita por seus traidores, é um triângulo dentro de um círculo, retomando a Santíssima Trindade e o círculo, a eternidade, o infinito.
Outro detalhe importante é que a personagem tem três nomes: Augusto Esteves, Nhô Augusto e Matraga.
Augusto Esteves, o coronel temido e perverso (a morte); Nhô Augusto, o penitente (a ressurreição) e Matraga, o santo (a vida, o espiritual).
A vida de Matraga é sempre compartilhada em três: duas prostitutas no leilão; a esposa e a filha em casa; o casal de negros no sertão e finalmente, o velho e Joãozinho Bem-Bem.
A cobra também é uma metáfora religiosa simbolizando o mal. Quando Quim Recadeiro dá o recado ao Matraga, diz que o povo afirma que ele é “cobra má”, a negra Quitéria ao ouvir os delírios de Matraga afirma, “ruim feito cascavel” e na hora e na vez de Joãozinho Bem-Bem, “um mundo de cobras sangrentas saltou para o ar livre”, que representa o Demo na história, está colocando para fora todo o seu mal.
A alegria antes da morte é a transcendência para o plano espiritual, a sua grandeza interior, entrando no céu, nem “que seja a porrete”: à sua hora e sua vez tão esperada.
Curiosamente percebemos a identidade entre Joãozinho Bem-Bem e Augusto Matraga, o Mal X o Bem, como se um necessitasse do outro, enfim, a metafísica que delimita o pecado versus o perdão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário