Valéria Gonçalvez/AE |
A OUTRA VIOLÊNCIA A vitimização de alunos por professores e administradores raramente é reconhecida, mas ela existe |
A agressão de estudantes a colegas, funcionários da escola e sua infra-estrutura é um tema popular na mídia e uma grande preocupação do público. Contudo, a análise de estatísticas de criminalidade sugere que o problema da violência escolar é enormemente exagerado. Ademais, há um lado da violência escolar que recebe relativamente pouca atenção. A vitimização de alunos por professores, administradores e outros funcionários da escola, freqüentemente sob a rubrica de medidas disciplinares, é raramente reconhecida por seu potencial para contribuir para o mau comportamento, a alienação e a agressão por parte dos alunos." Esse trecho me veio à mente ao ler a celeuma causada por incidentes ocorridos em São Paulo, no início de novembro, em que professores e funcionários foram agredidos e uma escola foi depredada. Mas o trecho não se refere a esses episódios. É a introdução de um paper escrito nos Estados Unidos, em 1998, pelos pesquisadores I. Hyman e D. Perone, sobre a questão da violência escolar naquele país.
É surpreendente a semelhança entre a realidade do Brasil de 2008 e a dos EUA de dez anos atrás. Pois também aqui no Brasil nós só temos olhos para um lado da violência escolar: aquela dos alunos contra os professores e funcionários. E as condenações são rápidas e abrangentes. Na Folha de S.Paulo, a colunista Barbara Gancia se referiu assim à questão da violência nas escolas: "É melhor declarar a falência do ensino público e lacrar de vez os portões de todas as escolas do Estado de SP (...). Eles (os alunos baderneiros) não são melhores nem piores do que os adolescentes que vieram antes deles. Apenas imitam o comportamento que vêem ao seu redor, tomando para si o mesmo código de sobrevivência que vigora em todas as comunidades carentes em que a lei não se faz presente. (...) Esperar que, diante da autoridade do professor, eles se transformem em cordeirinhos é não enxergar que temos em mãos uma geração que se perdeu".
É desnecessário dizer que os jovens que infringem a lei e os códigos de civilidade devem ser punidos. Lugar de infrator não é no banco da escola, mas em centros de reclusão. É óbvio também que há jovens desajustados, e que a convivência com um entorno de violência e degradação social favorece a criminalidade. É igualmente certo que todos os professores e funcionários do estado devem ser protegidos da violência pela polícia – em seu local de trabalho e fora dele, como qualquer cidadão.
Assim como devemos condenar o infrator, porém, é preciso entender o meio que o gerou. Não porque isso o exima de culpa, mas para que se possam criar políticas públicas que diminuam a probabilidade de que mais jovens enveredem pelo mesmo caminho. E a realidade que o Brasil não quer ver é que a maior vítima de agressão no nosso sistema escolar é o aluno.
A maioria das nossas escolas está longe de ser essa refém da criminalidade que aparece nos jornais. As estatísticas oficiais, colhidas pelo MEC junto aos professores de todo o país, pintam um quadro menos sombrio. Informativo do Inep a respeito mostrou que 4,2% dos professores tinham visto alunos com armas brancas e 2,9% com armas de fogo na escola; 5,4% deles foram ameaçados por um aluno e 0,7% agredidos fisicamente por um aluno. Repita-se: a agressão a qualquer professor, carteiro ou técnico de futebol é intolerável e deve ser punida. Mas onde está a epidemia de violência que aparece nas manchetes? Esta vem de dados produzidos pelos sindicatos de professores. Há duas semanas, por exemplo, uma pesquisa do Udemo indicou que 86% das escolas de São Paulo haviam sofrido algum tipo de violência em 2007. O que é o Udemo? Qual a metodologia da pesquisa? Os dados são confiáveis? Uma simples passada de olhos sugeriria muita cautela. Afinal, a instituição é o sindicato de especialistas de educação do magistério oficial do estado de São Paulo. Não há explicação sobre a metodologia da pesquisa em seu site, apenas a menção de que, das 5 300 escolas consultadas, só 683 mandaram respostas. "Os demais diretores não responderam por motivos vários, entre os quais, provavelmente, o excesso de trabalho." Um levantamento imparcial, vê-se.
Infelizmente, não há nenhum levantamento que permita quantificar os incidentes de violência vividos pelos alunos nas escolas brasileiras, tanto por parte de professores e funcionários quanto por parte de colegas. As agressões sofridas por alunos só se tornam notícia quando atingem um grau dantesco. Como o do menino Felipe Gonçalves da Conceição, 12 anos, que fraturou os punhos e o pé esquerdo durante aula de educação física e, mesmo assim, foi obrigado a voltar para a aula e impedido de ligar para os pais. Esses casos, porém, são os que menos importam. Até porque, espera-se, ocorrem muito raramente. A pior agressão sofrida pelos alunos é a intelectual: aquela de um sistema de ensino que não está muito preocupado com seu aprendizado, que despreza sua inteligência, que mói seus sonhos, que os condena ao subemprego e à pobreza, que culpa alunos e pais pelo fracasso da escola. Em pesquisa recente com alunos da 4ª série de escolas públicas, 90% atribuíram a si mesmos a responsabilidade pelo fato de algum dia virem a sofrer uma reprovação.
Temos uma escola que tira dezenas de horas e dias e anos da vida dessas crianças e desses jovens com aulas chatas, de didática atrasada. Quando alguém tem a ousadia de dizer isso, os professores respondem em uníssono: "Só quem está no dia-a-dia da escola é que pode falar sobre o que acontece lá, saber as verdadeiras dificuldades". É uma maneira conveniente de afastar todos os membros da sociedade do debate da educação, que é um ponto vital não apenas para educadores, mas para todo o país. Mas, até quando se observa a realidade dentro das escolas, o relato é o mesmo, se não pior. Estudo recente da Unesco, chamado "Repensando a escola", enviou pesquisadores/observadores a 225 escolas de dez estados. A pesquisa revelou coisas interessantes. Alunos da 4ª série tinham dificuldade em preencher, nos questionários, o campo que perguntava seu sexo, pois não sabiam o que era "masculino" e achavam que "feminino" identificava os garotos. É uma escola que insiste na disciplina e coíbe a criatividade e a curiosidade do aluno. Oitenta e oito por cento dos alunos responderam que a definição de bom aluno é "aquele que obedece à professora". "Fazer muitas perguntas" ficou com apenas 8% dos votos. É uma escola em que a pregação ideológica substitui a preocupação com o saber e em que o viés político contamina até os níveis mais altos da administração escolar.
A característica do bom diretor é "ser democrático na tomada de decisões" para 90% dos próprios diretores. "Conhecer e aplicar as regras de administração escolar" só levou 64% das preferências. Os professores se têm em alto conceito, ao contrário da sua impressão sobre os alunos. Quando um estudante é reprovado, por exemplo, os professores atribuem a culpa a ele (39%) e aos pais dele (24%). Os próprios professores só são culpados segundo 2% da categoria. Quando um aluno não faz o dever de casa, 77% dos professores apontam a preguiça como culpada. Trinta por cento dos alunos pesquisados dizem ter medo dos professores e 13% afirmam sofrer humilhações. Diz o relatório da pesquisa: "Na maioria das salas de aula observadas, ou dos professores observados, não parecia haver preocupação com o planejamento, e este, quando havia, era pouco estimulante, limitando-se quase que exclusivamente a seguir o livro didático, tornando as aulas enfadonhas e de pouco interesse.
As aulas são monótonas, sem alegria, sem novidades, sem recursos". O recurso "didático" mais freqüentemente observado era a cópia pura e simples de matéria do quadro-negro. Isso não é dar aula, muito menos educar. Se temos um sistema educacional que trata os alunos como mimeógrafos, que atribui a dificuldade dos estudantes à sua preguiça ou pobreza e que se recusa a fazer uma auto-análise, não é de surpreender que os alunos se revoltem com essa instituição e a tratem com o mesmo desprezo com o qual são tratados por ela.
Artigo de Gustavo Ioschpe
http://veja.abril.com.br/031208/p_124.shtml
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