domingo, 12 de fevereiro de 2012

Nossa marginal Ana Cristina Cesar

    
Ana Cristina Cesar

Expoente da chamada poesia marginal dos anos 70, a poeta carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983) tornou-se conhecida em escala nacional depois de figurar na antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, em 1976.

Alma inquieta, Ana Cristina viveu mais de uma vez, viajou pelo mundo, estudou literatura e cinema, publicou poesia em edições independentes. Escritora compulsiva, produzia poemas, cartas, artigos para jornais e revistas, traduções, ensaios. Entre os principais títulos deixados por Ana Cristina Cesar, encontram-se A Teus Pés, Inéditos e Dispersos, e Crítica e Tradução. Ana suicidou-se em outubro de 1983, aos 31 anos. 

Sobre seu trabalho poético, diz o professor e crítico Paulo Franchetti: "Ana Cristina é um dos lugares principais (senão o principal) do novo discurso poético, que funda a produção e a leitura do fragmento, a recolha do lugar-comum e a incompletude estética como resultado da sinceridade confessional ou como índices da impossibilidade mesma da confissão total."

Segundo o ensaísta, o dado novo na poesia de Cristina está no coloquialismo, numa escrita que não quer ser literatura. "Escrevo in loco, sem literatura", anotou ela. É óbvio que essa mesma novidade não passa incólume pelo crivo dos estudiosos, que apontam na poesia dita marginal a falta de rigor e a tentativa de dar uma marcha à ré em direção ao piadismo e a certa inconseqüência do modernismo de 1922. Não falta também quem veja no movimento uma imagem invertida das vanguardas originárias dos anos 50. Enquanto estas são acusadas de formalistas, o pessoal da poesia marginal recebe a pecha de ter relaxado os procedimentos formais da poesia.

O certo é que Ana Cristina Cesar tornou-se o nome mais forte entre todos os identificados com a poesia marginal. O poeta carioca Armando Freitas Filho, que foi amigo de Ana Cristina e se tornou, depois, o principal divulgador de sua obra, tem uma frase interessante para caracterizar a rapidez e a brevidade da vida e da obra da autora de A Teus Pés. Para ele, a amiga queria "pegar o pássaro sem interromper o seu vôo".

Na seleção abaixo incluo poemas extraídos de dois livros de Ana Cristina César: A Teus Pés; e Inéditos e Dispersos, volume organizado por Armando Freitas Filho.

...
Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor
                                       [ (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os
                                       [ cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.         

SONETO


Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?
 


olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas      
 

FLORES DO MAIS
devagar escreva
uma primeira letra
escreva
na imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

O
HOMEM PÚBLICO N. 1

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.


Tenho uma folha branca
          e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
          e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
          e limpa à minha espera:


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