domingo, 12 de fevereiro de 2012

Um sertanejo universal: João Guimarães Rosa


João Guimarães Rosa

De fato, João Guimarães Rosa (1908-1967), um de nossos poucos escritores de alcance universal, é celebrado como o contista de Sagarana, o novelista de Corpo de Baile e sobretudo como o magnífico romancista de Grande Sertão: Veredas, obra que completa 50 anos agora em 2006.

Mas Guimarães Rosa começou de fato como poeta. Em 1936, ele venceu um concurso promovido pela Academia Brasileira de Letras com Magma, uma coletânea de poemas. Embora premiado, ele não quis publicar o livro, que só veio à luz postumamente, em 1997.
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Detesto usar a palavra gênio, porque muito se abusa dela nos meios de comunicação. Qualquer um que tenha produzido um texto, uma canção ou um quadro assim-assim é logo carimbado como gênio. Contudo, no caso de João Guimarães Rosa, abro mão das reservas. Em relação a ele, não se pode usar um adjetivo menos entusiasmado do que "genial". Verdadeiramente, ele é um mago das palavras.

Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG). Aos seis anos, começou sozinho a estudar francês. Em 1917, com a chegada de um frade holandês à cidade, continuou o aprendizado de francês e, de quebra, iniciou-se no holandês. Estudou, depois, em Belo Horizonte, no Colégio Arnaldo, dirigido por padres alemães. Foi o suficiente para que ele também se interessasse pelo alemão.

Numa entrevista, Guimarães Rosa disse, certa vez: "Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração."

Em 1930, já casado com Lígia Cabral Penna, Rosa forma-se em medicina na Universidade de Minas Gerais. Vai exercer a profissão na cidade de Itaguara, então pertencente ao município de Itaúna (MG). O casamento, que lhe deu duas filhas, durou pouco. Achando-se pouco vocacionado para a medicina, Rosa presta concurso para o Itamarati e, em 1938, é nomeado cônsul adjunto em Hamburgo, Alemanha.

Na Europa, conhece Aracy Moebius de Carvalho, que se tornaria sua segunda esposa. Durante a guerra, várias vezes o escritor escapou da morte. Uma vez, ao voltar para casa, encontrou-a destruída por um bombardeio. Como diplomata, Rosa facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo nazismo. Dava-lhes o visto de entrada no Brasil, sem mencionar a religião do portador. Nessa empreitada, o escritor contou com a ajuda da esposa Aracy.

A concessão dos vistos representava uma atitude temerária, tanto em relação aos nazistas como ao governo brasileiro. Como se sabe, a ditadura getulista nutria francas simpatias pelo nazi-fascismo até meados da guerra. Basta lembrar que, em 1936, Vargas entregou aos nazistas a alemã Olga Benário Prestes, judia e comunista, sabendo que isso era o mesmo que condená-la à morte.

Em reconhecimento à ajuda de Guimarães Rosa e Aracy, o governo de Israel, em 1985, deu o nome do casal a um bosque em Jerusalém. Segundo Aracy, que esteve presente à cerimônia de inauguração do bosque, o marido não gostava de tocar nesse assunto. Tinha pudor de falar de si mesmo.


        Aracy e Guimarães Rosa

Agora, Guimarães Rosa, o escritor. Sagarana sai em 1946. Dez anos depois, vêm a público Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. Em seguida, vêm Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia - Terceiras Estórias (1967). Vale destacar que não houve as segundas estórias.

O autor, que se considerava um contador de "estórias",  transforma em ficção muito do que viu e ouviu na infância, durante sua experiência como médico do interior e em suas obstinadas pesquisas sobre bichos, plantas, lugares e especialmente pessoas: a gente rústica dos sertões, com suas paixões, crenças e linguagem.
Rosa foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em agosto de 1963. Mas, supersticioso, ele adiou a posse o quanto pôde. Dizia que não suportaria a emoção. De fato, ele só vestiu o fardão em 16 de novembro de 1967. E morreu daí a três dias, vítima de infarto. Foram publicados ainda dois livros póstumos de Rosa: Estas Estórias (1969) e Ave, Palavra (1970).

João Guimarães Rosa tornou-se um caso único na literatura brasileira. Além causar enorme impacto no Brasil, seus livros conquistaram o mundo. Há traduções de obras rosianas para dezenas de idiomas estrangeiros. Ele — que escreveu: "o sertão está em toda parte" — tornou-se realmente um sertanejo universal.

Não há a menor dúvida de que Guimarães Rosa enquadra-se na categoria dos inventores. Conforme escreve o poeta Claudio Willer no ensaio "Guimarães Rosa e Sagarana":
"ele não foi apenas um pesquisador, reproduzindo no texto o que havia colhido em suas pesquisas, porém, muito mais, um inventor, um verdadeiro criador de linguagem, com novas palavras e originais articulações sintáticas. Como tal, um poeta (...)".

Os textos abaixo começam com o poema "Um chamado João", uma homenagem de Carlos Drummond de Andrade, publicada três dias após a morte de Guimarães Rosa. Em seguida, vem um pouco da criação rosiana. Primeiro, o poema "Reportagem", de seu livro de não-estréia, Magma. Depois, uma seção de prosa, que se abre com o trecho inicial do conto "Sarapalha" (de Sagarana). Fecho a amostra com frases soltas, colhidas em Grande Sertão: Veredas.
 


UM CHAMADO JOÃO   Carlos Drummond de Andrade

João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?

E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.

(publicado no Correio da Manhã, em 22/11/1967, três dias após a morte de Guimarães Rosa)



Casa onde nasceu o escritor, hoje Museu Casa de
Guimarães Rosa, em Cordisburgo, MG.
 

 
REPORTAGEM
O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo
                                            [ Socorro...

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um
                                            [ sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só
                                            [ tem costas...


SARAPALHA
                          (trecho inicial)
    Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu.
    Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar esteve nos mapas, muito antes da malária chegar.
    Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho, entrou na boca aberta do Pará, e pegou a subir. Cada ano avançava um punhado de léguas, mais perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão da brava — da "tremedeira que não desamontava" — matando muita gente.
    — Talvez que até aqui ela não chegue... Deus há-de...
    Mas chegou; nem dilatou para vir. E foi um ano de tristezas.
    Em abril, quando passaram as chuvas, o rio — que não tem pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de mês para minguar — desengordou devagarinho, deixando poços redondos num brejo de ciscos: troncos, ramos, gravetos, coivara; cardumes de mandis apodrecendo; tabaranas vestidas de ouro, encalhadas; curimatãs pastando barro na invernada; jacarés, de mudança, apressados; canoinhas ao seco, no cerrado; e bois sarapintados, nadando como búfalos, comendo o mururê-de-flor-roxa flutuante, por entre as ilhas do melosal. Então, houve gente tremendo, com os primeiros acessos da sezão.
    — Talvez que para o ano ela não volte, vá s'embora...
    Ficou. Quem foi s'embora foram os moradores: os primeiros para o cemitério, os outros por aí afora, por este mundo de Deus.


PÍLULAS DO GRANDE SERTÃO

Coração de gente — o escuro, escuros.

Quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade.

Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.

No sistema de jagunços, amigo era o braço, e o aço! 

Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de
estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou — amigo — é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.

O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.

A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.

O diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!

O diabo na rua, no meio do redemunho.

O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe! E se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele?

Quem muito se evita, se convive.

Julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.

O que lembro, tenho. 

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.  

Quem mói no asp'ro não fantaseia. 

Quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o
sentir da gente. 
Vingar... é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais.

Quem sabe do orgulho, quem sabe da loucura alheia?

Ser chefe — por fora um pouquinho amargo; mas, por dentro, é risonhas flores.
Um chefe carece de saber é aquilo que ele não pergunta.

Comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem.

Toda saudade é uma espécie de velhice.
Riu de me dar nojo. Mas nojo medo é, é não?

Um sentir é do sentente, mas outro é do sentidor.

Tudo é e não é.

Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir.

Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!

O sertão é do tamanho do mundo.

Sertão é dentro da gente. 

O sertão é sem lugar. 

O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa. 

O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena. 

O sertão é uma espera enorme.

Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas.

A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero.

A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão e as vertentes do viver.

Manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso.

Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo.

Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...

Feito flecha, feito fogo, feito faca.
Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem.

Até que, um dia, eu estava repousando, no claro estar, em rede de algodão rendada. Alegria me espertou, um pressentimento. Quando eu olhei, vinha vindo uma moça. Otacília. // Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era sempre novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se orçava mais linda, me saudou com o salvável carinho, adianto de amor.


fonte: http://www.algumapoesia.com.br/

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