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domingo, 12 de fevereiro de 2012

Um poeta singular : Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos

O paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914) é um poeta singular. Baudelairiano de primeira linha, ele produz aqueles poemas longos, cheios de um materialismo brutal e pessimista. O tema geral é a morte. Para o gosto atual, são versos  cansativos, fora de propósito. Mas dos Anjos impressiona. Ao lado, as quadras iniciais do célebre "As Cismas do Destino", um  poema gigante, com exatas 105 estrofes! Para quem não sabe, a casa do Agra, que abre o poema, tem tudo a ver com o clima: é o necrotério.

Morto aos 30 anos, Augusto dos Anjos não gozou em vida de nenhum reconhecimento público. Segundo Otto Maria Carpeaux, a notoriedade póstuma do poeta lhe foi garantida por leitores populares. Diz Carpeaux: "A abundância de estranhas expressões científicas e de palavras esquisitas em seus versos atraiu os leitores semicultos que não compreenderam nada de sua poesia e ficavam, no entanto, fascinados pelas metáforas de decomposição em seus versos assim como estavam em decomposição suas vidas." Por causa disso, conclui, dos Anjos é um dos poetas mais lidos do Brasil.

Carpeaux também esteve entre os críticos que ressaltaram a grandeza da poesia de Augusto dos Anjos, antes relegada à prateleira do mau gosto. O certo é que, até hoje, essa poesia continua a exercer um poderoso fascínio que passa de geração para geração. E isso ocorre mesmo entre gente culta, de amplas leituras. Portanto, o exotismo verbal apontado por Carpeaux pode, sim, ter contribuído para a popularidade do poeta. Mas não deve ser o único fator. Eu mesmo já vi, aqui em São Paulo, jovens de 30 anos, ou menos, que sabem de cor longos textos do poeta paraibano.
                        
Há uma história estarrecedora — embora não comprovada — em torno do soneto "A Árvore da Serra". Conta-se que Augusto dos Anjos teria se apaixonado por uma jovem retirante, filha de um vaqueiro. Isso era simplesmente intolerável para a família de Augusto, dona de engenho de açúcar. A mãe dele teria mandado dar uma surra na moça, que estava grávida (do poeta?), e  então abortou e morreu.

Alguns especialistas na obra de Augusto dos Anjos interpretam o soneto "A Árvore da Serra" não como uma cena ecológica, mas como a transposição, em versos, dessa história tenebrosa. Dizem que o amargor e o pessimismo de Augusto vêm daí.

Conta-se também que o pai, no episódio, teria ficado ao lado de Augusto, mas era dominado pela mãe. Para esses especialistas, isso também explicaria por que o poeta escreveu vários textos citando o pai e nunca falou sobre a mãe. Então, a árvore cortada seria a amada do poeta. E o próprio Augusto é que se teria abraçado àquele tronco "e nunca mais se levantou da terra". Consta também que, embora não haja registro histórico, o caso era de amplo conhecimento na região.

Agora, os créditos: retirei a história sobre "A Árvore da Serra" de dois artigos que estão no site do Jornal de Poesia:
um do contista baiano Hélio Pólvora e o outro do poeta cearense Soares Feitosa, fundador e editor do Jornal de Poesia.


AS CISMAS DO DESTINO
                                 (trecho inicial)
Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.

(...)
 
VENCEDOR

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
 
A ÁRVORE DA SERRA
— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

... alguns poemas de Augusto dos Anjos

SONETO

Canta teu riso esplêndido sonata,
E há, no teu riso de anjos encantados,
Como que um doce tilintar de prata
E a vibração de mil cristais quebrados.

Bendito o riso assim que se desata
- Citara suave dos apaixonados,
Sonorizando os sonhos já passados,
Cantando sempre em trínula volata!

Aurora ideal dos dias meus risonhos,
Quando, úmido de beijos
em ressábios
Teu
riso esponta, despertando sonhos...


Ah! Num delíquio de ventura louca,
Vai-se minh'alma toda nos teus beijos,
Ri-se o meu coração na tua boca!
 

A IDÉIA

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica ...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica.



A LOUCA

Quando ela passa: – a veste desgrenhada,
O cabelo revolto em desalinho,
No seu olhar feroz eu adivinho
O mistério da dor que a traz penada.
Moça, tão moça e já desventurada;
Da desdita ferida pelo espinho,
Vai morta em vida assim pelo caminho,
No sudário da mágoa sepultada.
Eu sei a sua história. – Em seu passado
Houve um drama d’amor misterioso
- O segredo d’um peito torturado -
E hoje, para guardar a mágoa oculta,
Canta, soluça – o coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.


VERSOS A UM COVEIRO

Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
Um, dois, três, quatro, cinco… Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais:
Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!


O meu nirvana

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéa Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora
Do tacto — ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéas —

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéas!



O morcego

Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vêde:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

VOZES DA MORTE

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!
Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!
Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,
Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos!

TERRA FÚNEBRE

Aqui morreram tantos poetas! Tanta
Guitarra morta este lugar encerra!…
Aqui é o Campo-Santo, aqui é a Terra!
Em que a alma chora e em que a Saudade canta!
O caminheiro que o Pesar desterra,
Pare chorando nesta Terra Santa,
E se cantar como a Saudade canta,
O caminheiro fique nesta Terra!
À noute aqui um trovador eterno
Chora, abraçado às campas dos poetas,
- Esse sombrio trovador é o Inverno!
Aqui é a Terra, onde, ao noturno açoute,
Carpem na sombra pássaros ascetas,
Gemem poetas – pássaros da Noute!

VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Soneto

Ao meu primeiro filho nascido
morto com 7 meses incompletos
2 fevereiro 1911.

Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial

Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
A tua morfogênese de infante,
A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!...

Ah! Possas tu dormir feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!

SOLITÁRIO

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como
em carniçaria
O
aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
-- Velho caixão a carregar destroços --

Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

O poeta do mau gosto: Augusto dos Anjos

Análise da obra: Eu e Outras Poesias, de Augusto dos Anjos


A obra Eu, único livro de Augusto dos Anjos,  foi editada pela primeira vez em 1912. Outras Poesias acrescentaram-se às edições posteriores. Na primeira edição, a capa branca exibia o título com grandes e vermelhas letras maiúsculas impressas no centro. No alto, as letras
 pretas com o nome do autor e, em baixo, cidade, Rio de Janeiro, e data, 1912. Falecido o poeta em 1914, Órris Soares reuniu à coletânea original (Eu) a produção recente de Augusto dos Anjos, incluindo mesmo um poema inacabado, A Meretriz.

A Imprensa Oficial do Estado da Paraíba editou, em 1920, Eu e Outras Poesias, prefaciado pelo organizador. Augusto dos Anjos assombrou a elite letrada do país com seus versos que não eram parnasianos, nem antecipavam o modernismo. Eram apenas seus. E tamanha era a putrefação que seus versos representavam que, ainda hoje, ele é inclassificável em uma escola, e admirado como um poeta original. Considerado pelo público e pela critica, habituados á elegância parnasiana, um livro de mau gosto, malcriado, alguns dos poemas de Eu são vistos como os mais estranhos de toda a nossa literatura, por vários motivos.

Dentre eles, ressaltamos o vocabulário pouco comum, repleto de palavras com forte carga cientificista; a multiplicidade de influências literárias que recebe, tornando difícil, se não impossível, sua classificação estilística e principalmente o desespero radical com que tematiza o fim de todas as ilusões românticas, a fatalidade da morte como apodrecimento inexorável do corpo, a visão do cosmos em seu processo irreversível de demolição de valores e sonhos humanos.

"Eu, filho do carbono e do amoníaco
Monstro de escuridão e rutilância
Sofro, desde a epigênese da infância
A influência má dos signos do zodíaco."
"(...)
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija"


A obra surgida em momento de transição, pouco antes da virada modernista de 1922, é bem representativa do espírito sincrético que prevalecia na época, parnasianismo por alguns aspectos e simbolista por outros. A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do Eu um livro que sobrevive, antes de tudo, pelo rigor da forma.

Em outras palavras, considerando a produção literária desse poeta, pode-se dizer que traduz sua objetividade pessimista em relação ao homem e ao cosmos, por meio de um vocabulário técnico-científico-poético.

Transformado em catecismo pelos pessimistas e em bíblia dos azarados e malditos, o livro Eu é de uma instigante popularidade, resistente a todos os modismo, impermeável às retaliações da crítica e aos vermes do tempo. Foi o poeta mais original de nossa literatura.

As leitura precoces de Darwin, Haeckel, Lamarck e outros, feitas na biblioteca de seu pai, fundamentaram a postura existencial do poeta; a adesão ao Evolucionismo de Darwin e Spencer e a angústia funda, leta, ante a fatalidade que arrasta toda a carne para a decomposição. Fundem-se a visão cósmica e o desespero radical, produzindo uma poesia violenta e nova na língua portuguesa.


Temos, portanto, em Eu e outras poesias, além da linguagem científica e extravagante, a temática do vazio da coisas (o nada) e a morte (finitude da vida) em seus estágios mais degradados: a putrefação, a decomposição da matéria. Simultaneamente, reflete em seus versos a profunda melancolia, a descrença e o pessimismo frente ao ser e à sociedade, elaborando, assim, uma poesia de negação: nega as falsas ideologias, a corrupção, os amores fúteis e as paixões transitórias:

"Melancolia! Estende-me a tua asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!"


O asco ao prazer é expresso de maneira contundente; a relação entre os sexos é apenas "a matilha espantada dos instintos" ou "parodiando saraus cínicos, / bilhões de centrossomos apolínicos / na câmara promíscua do vitellus."  Reduzindo o amor humano à cega e torpe luta da células, cujo fim é senão criar um projeto de cadáver, o poeta aspira à imortalidade gélida, mas luminosa, de outros mundos onde não lateje a vida-instinto, a vida-carne, a vida-corrupção.

Augusto dos Anjos vale-se muitas vezes de técnicas expressionistas na montagem de seus textos. O Expressionismo, corrente estética Modernismo, representou uma reação contra o Impressionismo, contra o gosto pela nuance, contra o refinamento e sutileza na captação do momento.

A imagem é intencionalmente deformada e agrupada de maneira desconcertante, através da transfiguração da realidade. Em lugar da delicadeza e da suavidade, a imagem é deformada, por meio de um desenho violento, que acentua e barbariza a forma, aproximando-se, às vezes, do grotesco e da caricatura.

Daí o “mau gosto”, o “apoético" que, em Augusto dos Anjos, são convertidos em poesia. O jargão científico e o termo técnico, tradicionalmente prosaicos, não devem ser abstraídos de um contexto que os exige e os justifica. Fazia-se mister uma simbiose de termos que definissem toda a estrutura da vida (vocabulário físico, químico e biológico) e termos que exprimem o asco e o horror ante a existência.

Apoiando-se em hipérboles e paradoxos, e na exploração de efeitos sonoros, Augusto dos Anjos funde a inflexão simbolista e a retórica científica, criando uma dicção singular, que projeta a hipersensibilidade e a visão trágica e mórbida da existência.


Poemas escolhidos:

 
Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!




VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!