"Pouco conhecimento faz com que as pessoas se sintam orgulhosas. Muito conhecimento, que se sintam humildes. É assim que as espigas sem grãos erguem desdenhosamente a cabeça para o Céu, enquanto que as cheias as abaixam para a terra, sua mãe." Leonardo da Vinci
Graciliano Ramos foi preso em março de 1936, acusado de ligação com o Partido Comunista. Prisão sem processo, mas que não evitou a deportação do acusado, num porão de navio, para o Rio, onde permaneceu encarcerado. Foi demitido do cargo de Diretor da Instrução Pública e levado a diversos presídios, até Janeiro de 1937, quando foi libertado. Dessa experiência resultou a obra Memórias do Cárcere, publicada postumamente em 1953. A obra não é o relato puro e simples do sofrimento e humilhações do homem Graciliano Ramos; é a análise da prepotência que marcou a ditadura Vargas e que, em última análise, marca qualquer ditadura. É um dos depoimentos mais tensos da literatura brasileira.
Escrito em quatro volumes (sem o capítulo final, pois Graciliano faleceu antes de concluí-lo), Memórias do Cárcere narra acontecimentos da vida de Graciliano Ramos e de outras pessoas que estiveram presas durante o Estado Novo. A narrativa é amarga, mas sem exageros ou invenções, nessa obra Graciliano Ramos é fiel aos acontecimentos. Se há amarguras e sordidez, é porque as situações vividas foram sórdidas e amarguradas.
A narrativa de Graciliano Ramos, pela exposição de motivos contida no capítulo de abertura da obra, dá ao texto uma autenticidade autobiográfica, sobretudo se a ela somarmos a “explicação final” de Ricardo Ramos, na qual ficam esclarecidas as dificuldades que impediram o autor de dar definitivamente o texto por concluído. Essa narrativa, característica do relato autobiográfico, oferece a típica junção autor-narrador-personagem, sendo possível percebê-la como resultado da experiência vivida, o que aproxima Graciliano Ramos da noção de narrador clássico.
A autoridade do narrador clássico é referendada pela perspectiva da morte, conforme se percebe já no início do texto: “... estou a descer para a cova...”. A morte, para o filósofo alemão, confere autoridade, pois é nesse momento que o saber humano assume uma força maior, tornando imperativa a sua transmissão. O narrador clássico sabe dar conselhos. Narra porque tem experiência de vida, e é essa experiência que lhe dá sabedoria. A obra do escritor alagoano, ao fazer uso da forma autobiográfica, ao falar de si mesmo, intencionalmente mistura a sua voz a outras, até então silenciadas, contrariando assim a perspectiva natural desse tipo de relato.
Memórias do Cárcere é o testemunho da realidade nua e crua de quem, sem saber por quê, viveu em porões imundos, sofreu com torturas e privações provocadas por um regime ditatorial chamado de Estado Novo.
Na obra Graciliano Ramos não diz diretamente que se sente injustiçado, embora o tenha sido e isso se explicita no próprio texto. Não fica insistindo que não deveria estar naquelas situações, isso faz com que a indignação do leitor não fique restrita às suas histórias particulares, mas se direcione a situações vivenciadas por muitas pessoas. O que o autor retrata, e é o que mais interessa em Memórias do Cárcere, é um olhar de quem foi preso, algo que é muito mais abrangente do que se fixar no olhar do narrador.
O discurso, regido pela égide da opressão, é caracterizado pelo desdobramento: pois é psicológico, e, ao mesmo tempo, um documentário; é particular, mas universaliza-se.
Trecho da obra
“O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, fantasmas prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolhermo-nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas idéias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido.”
Os abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos acontecimentos de 1930, a crise econômica provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a crise cafeeira, a Revolução de 1930, o acelerado declínio do nordeste condicionaram um novo estilo ficcional, notadamente mais adulto, mais amadurecido, mais moderno que se marcaria pela rudeza, por uma linguagem mais brasileira, por um enfoque direto dos fatos, por uma retomada do naturalismo, principalmente no plano da narrativa documental, temos também o romance nordestino, liberdade temática e rigor estilístico.
Os romancistas de 30 caracterizavam-se por adotarem visão crítica das relações sociais, regionalismo ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, cidade, o homem devorado pelos problemas que o meio lhe impõe.
Graciliano Ramos (1892-1953) nasceu em Quebrângulo, Alagoas. Estudou em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Após breve estada no Rio de Janeiro como revisor dos jornais "Correio da Manhã e A Tarde", passou a fazer jornalismo e política elegendo-se prefeito em 1927.
Foi preso em 1936 sob acusação de comunista e nesta fase escreveu "Memórias do Cárcere", um sério depoimento sobre a realidade brasileira. Depois do cárcere morou no Rio de Janeiro. Em 1945, integrou-se no Partido Comunista Brasileiro.
Graciliano estreou em 1933 com "Caetés", mas é São Berdado, verdadeira obra prima da literatura brasileira. Depois vieram "Angustia" (1936) e Vidas Secas (1938) inspirando-se em Machado de Assis.
Podemos justificar isto com passagens do texto:
"Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos."
"A caatinga estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas"
"Resolvera de supetão aproveitá-lo (papagaio) como alimento..."
"Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores".
ESTUDO DOS PERSONAGENS
Baleia - cadela da família, tratado como gente, muito querido pelas crianças. Sinhá Vitória - mulher de Fabiano, sofrida, mãe de 2 filhos, lutadora e inconformada com a miséria em que vivem, trabalha muito na vida. Fabiano - nordestino pobre, ignorante que desesperadamente procura trabalho, bebe muito e perde dinheiro no jogo. Filhos - crianças pobres sofridas e que não tem noção da própria miséria que vivem. Patrão - contratou Fabiano para trabalhar em sua fazenda, era desonesto e explorava os empregados. Outros personagens: o soldado, seu Inácio (dono do bar).
ESTUDO DA LINGUAGEM
Tipo de discurso: indireto livre
Foco narrativo: terceira pessoa
Adjetivos, figuras de linguagem:
Metáfora: " - você é um bicho, Fabiano".
Prosopopéia: compara Baleia como gente
ANÁLISE DAS IDEIAS
Comentário Crítico:
Esse livro retrata fielmente a realidade brasileira não só da época em que o livro foi escrito, mas como nos dias de hoje tais como injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, o que nos remete a idéia de que o homem se animalizou sob condições sub-humanas de sobrevivência.
RESUMO DA OBRA
Mudança
Em meio à paisagem hostil do sertão nordestino, quatro pessoas e uma cachorrinha se arrastam numa peregrinação silenciosa _ _ . O menino mais velho, exausto da caminhada sem fim, deita-se no chão, incapaz de prosseguir, o que irrita Fabiano, seu pai, que lhe dá estocadas com a faca no intuito de fazê-lo levantar. Compadecido da situação do pequeno, o pai toma-o nos braços e carrega-o, tornando a viagem ainda mais modorrenta _ .
A cadela Baleia acompanha o grupo de humanos agora sem a companhia do outro animal da família, um papagaio, que fora sacrificado na véspera a fim de aplacar a fome que se abatia sobre aquelas pessoas. Na verdade, era um papagaio estranho, que pouco falava, talvez porque convivesse com gente que também falava pouco _ _ .
Errando por caminhos incertos, Fabiano e família encontram uma fazenda completamente abandonada. Surge a intenção de se fixar por ali. Baleia aparece com um preá entre os dentes, causando grande alegria aos seus donos. Haveria comida. Descendo ao bebedouro dos animais, em meio à lama, Fabiano consegue água. Há uma alegria em seu coração, novos ventos parecem soprar para a sua família. Pensa em Seu Tomás da bolandeira. Pensa na mulher e nos filhos.
A inesperada caça é preparada, o que garante um rápido momento de felicidade ao grupo. No céu, já escuro, uma nuvem - sempre um sinal de esperança. Fabiano deseja estabelecer-se naquela fazenda. Será o dono dela. A vida melhorará para todos _ .
Fabiano
Em vão Fabiano procura por uma raposa. Apesar do fracasso da empreitada, ele está satisfeito. Pensa na situação da família, errante, passando fome, quando da chegada àquela fazenda. Estavam bem agora _ _ . Fabiano se orgulha de vencer as dificuldades tal qual um bicho. Agora ele era um vaqueiro, apesar de não ter um lugar próprio para morar. A fazenda aparentemente abandonada tinha um dono, que logo aparecera e reclamara a posse do local. A solução foi ficar por ali mesmo, servindo ao patrão, tomando conta do local. Na verdade, era uma situação triste, típica de quem não tem nada e vive errante. Sentiu-se novamente um animal, agora com uma conotação negativa. Pouco falava, admirava e tentava imitar a fala difícil das pessoas da cidade. Era um bicho _ .
A uma pergunta de um dos filhos, Fabiano irrita-se. Para que perguntar as coisas? Conversaria com Sinha Vitória sobre isso. Essas coisas de pensamento não levavam a nada. Seu Tomás da bolandeira, apesar de admirado por Fabiano pelas suas palavras difíceis, não acabara como todo mundo? As palavras, as idéias, seduziam e cansavam Fabiano.
Pensou na brutalidade do patrão, a tratá-lo como um traste. Pensou em Sinha Vitória e seu desejo de possuir uma cama igual à de Seu Tomás da bolandeira. Eles não poderiam ter esse luxo, cambembes que eram. Sentiu-se confuso. Era um forte ou um fraco, um homem ou um bicho _ ? Sentia, por vezes, ímpeto de lutador e fraqueza de derrotado.
Lembrando dos meninos, novamente, achou que, quando as coisas melhorassem, eles poderiam se dar ao luxo daquelas coisas de pensar. Por ora, importante era sobreviver. Enquanto as coisas não melhorassem, falaria com Sinha Vitória sobre a educação dos pequenos.
Cadeia
Fabiano vai à feira comprar mantimentos, querosene e um corte de chita vermelha. Injuriado com a qualidade do querosene e com o preço da chita, resolve beber um pouco de pinga na bodega de seu Inácio. Nisso, um soldado amarelo convida-o para um jogo de cartas. Os dois acabam perdendo, o que irrita o soldado, que provoca Fabiano quando esse está de partida. A idéia do jogo havia sido desastrosa. Perdera dinheiro, não levaria para casa o prometido. Fabiano, agora, pensava em como enganar Sinha Vitória, mas a dificuldade de engendrar um plano o atormentava.
O soldado, provocador, encara o vaqueiro e barra-lhe a passagem. Pisa no pé de Fabiano que, tentando contornar a situação à sua maneira, agüenta os insultos até o possível, terminando por xingar a mãe do soldado amarelo. Destacamento à sua volta. Cadeia. Fabiano é empurrado, humilhado publicamente.
No xadrez, pensa por que havia acontecido tudo aquilo com ele. Não fizera nada, se quisesse até bateria no mirrado amarelo, mas ficara quieto. Em meio a rudes indagações, enfureceu-se, acalmou-se, protestou inocência _ . Amolou-se com o bêbado e com a quenga que estavam em outra cela. Pensou na família. Se não fosse Sinha Vitória e as crianças, já teria feito uma besteira por ali mesmo. Quando deixaria que um soldadinho daqueles o humilhasse tanto? Arquitetou vinganças, gritou com os outros presos e, no meio de sua incompreensão com os fatos, sentiu a família como um peso a carregar _ .
Sinha Vitória
Naquele dia, Sinha Vitória amanhecera brava. A noite mal dormida na cama de varas era o motivo de sua zanga. Falara pela manhã, mais uma vez, com Fabiano sobre a dificuldade de dormir naquela cama. Queria uma cama de lastro de couro, como a de Seu Tomás da bolandeira, como a de pessoas normais.
Havia um ano que discutia com o marido a necessidade de uma cama decente e, em meio a uma briga por causa das "extravagâncias" de cada um, Sinha Vitória certa vez ouviu Fabiano dizer-lhe que ela ficava ridícula naqueles sapatos de verniz, caminhando como um papagaio, trôpega, manca. A comparação machucou-a _ .
Agora, ela irritava-se com o ronco de Fabiano ao lembrar-se de suas palavras. Circulando pela casa, fazia suas tarefas em meio a reza e a atenção ao que acontecia lá fora. Por pensar ainda na cama e na comparação maldosa de Fabiano, quase esqueceu de pôr água na comida. Veio-lhe a lembrança do bebedouro em que só havia lama. Medo da seca. Olhou de novo para seus pés e inevitavelmente achou Fabiano mau _ . Pensou no papagaio e sentiu pena dele _ .
Lá fora, os meninos brincavam em meio à sujeira. Dentro de casa, Fabiano roncava forte, seguro, o que indicava a Sinha Vitória que não deveria haver perigo algum por ali. A seca deveria estar longe _ . As coisas, agora, pareciam mais estáveis, apesar de toda a dificuldade. Lembrou-se de como haviam sofrido em suas andanças. Só faltava uma cama. No fundo, até mesmo Fabiano queria uma cama nova.
O Menino mais novo
A imagem altiva do pai foi que lhe fez surgir a idéia. Fabiano, armado como vaqueiro, domava a égua brava com o auxílio de Sinha Vitória. O espetáculo grosseiro excitava o menor dos garotos, impressionado com a façanha do pai e disposto a fazer algo que também impressionasse o irmão mais velho e a cachorra Baleia _ . No dia seguinte, acordou disposto a imitar a façanha do pai. Para tanto, quis comunicar a intenção ao mano, mas evitou, com medo de ser ridicularizado.
Quando as cabras foram ao bebedouro, levadas pelo menino mais velho e por Baleia, o pequeno tomou o bode como alvo de sua ação. Sentia-se altivo como Fabiano quando montava. No bebedouro, o garoto despencou da ribanceira sobre o animal, que o repeliu. Insistente, tentou se aprumar mas foi sacudido impiedosamente, praticando um involuntário salto mortal que o deixou, tonto, estatelado ao chão. O irmão mais velho ria sem parar do ridículo espetáculo, Baleia parecia desaprovar toda aquela loucura _ . Fatalmente seria repreendido pelos pais. Retirou-se humilhado, alimentando a raivosa certeza de que seria grande, usaria roupas de vaqueiro, fumaria cigarros e faria coisas que deixariam Baleia e o irmão admirados.
O Menino mais velho
Aquela palavra tinha chamado a sua atenção: inferno. Perguntou à Sinha Vitória, vaga na resposta. Perguntou a Fabiano, que o ignorou. Na volta à Sinha Vitória, indagou se ela já tinha visto o inferno. Levou um cascudo e fugiu indignado. Baleia fez-lhe companhia tentando alegrá-lo naquela hora difícil.
Decidiu contar à cachorrinha uma história, mas o seu vocabulário era muito restrito, quase igual ao do papagaio que morrera na viagem _ . Só Baleia era sua amiga naquele momento. Por que tanta zanga com uma palavra tão bonita ? A culpa era de Sinha Terta, que usara aquela palavra na véspera, maravilhando o ouvido atento do garoto mais velho.
Olhou para o céu e sentiu-se melancólico. Como poderiam existir estrelas? Pensou novamente no inferno. Deveria ser, sim, um lugar ruim e perigoso, cheio de jararacas e pessoas levando cascudos e pancadas com a bainha da faca _ . Sempre intrigado, abraçou-se à Baleia como refúgio _ .
Inverno
Todos estavam reunidos em volta do fogo, procurando aplacar o frio causado pelo vento e pela água que agitava a paisagem fora da casa. Chegara o inverno, e isso reunia a família próxima à fogueira. Pai e mãe conversavam daquele jeito de sempre, estranho, e os meninos, deitados, ficavam ouvindo as histórias inventadas por Fabiano, de feitos que ele nunca tinha realizado, aventuras nunca vividas. Quando o mais velho levantou-se para buscar mais lenha, foi repreendido severamente pelo pai, aborrecido pela interrupção de sua narrativa.
A chuva dava à família a certeza de que a seca não chegaria por enquanto. Isso alegrava Fabiano. Sinha Vitória, porém, temia por uma inundação que os fizesse subir ao morro, novamente errantes. A água, lá fora, ampliava sua invasão.
Fabiano empolgava-se mais ainda em contar suas façanhas _ . A chuva tinha vindo em boa hora. Após a humilhação na cidade, decidira que, com a chegada da seca, abandonaria a família e partiria para a vingança contra o soldado amarelo e demais autoridades que lhe atravessassem o caminho. A chegada das águas interrompera aqueles planos sinistros. Em meio à narrativa empolgada, Fabiano imaginava que as coisas melhorariam a partir dali; quem sabe, Sinha Vitória até pudesse ter a cama tão desejada.
Para o filho mais novo, o escuro e as sombras geradas pela fogueira faziam da imagem do pai algo grotesco, exagerado. Para o mais velho, a alteração feita por Fabiano na história que contava era motivo de desconfiança. Algo não cheirava bem naquele enredo _ . Sempre pensativo, o menino mais velho dormiu pensando na falha do pai e nos sapos que estariam lá fora, no frio.
Baleia, incomodada com a arenga de Fabiano, procurava sossego naquela paisagem interior. Queria dormir em paz, ouvindo o barulho de fora _ .
Festa
A família foi à festa de Natal na cidade. Todos vestidos com suas melhores roupas, num traje pouco comum às suas figuras, o que lhes dava um ar ridículo. A caminhada longa tornava-se ainda mais cansativa por causa daquelas roupas e sapatos apertados. O mal-estar era geral, até que Fabiano cansou-se da situação e tirou os sapatos, metendo as meias no bolso, livrando-se ainda do paletó e da gravata que o sufocava. Os demais fizeram o mesmo. Voltaram ao seu natural. Baleia juntou-se ao grupo _ .
Chegando à cidade, foram todos lavar-se à beira de um riacho antes de se integrarem à festa. Sinha Vitória carregava um guarda-chuva. Fabiano marchava teso. Os meninos maravilham-se, assustados, com tantas luzes e gente. A igreja, com as imagens nos altares, encantou-os mais ainda. O pai espremia-se no meio da multidão, sentindo-se cercado de inimigos. Sentia-se mangado por aquelas pessoas que o viam em trajes estranhos à sua bruta feição. Ninguém na cidade era bom. Lembrou-se da humilhação imposta pelo soldado amarelo quando estivera pela última vez na cidade.
A família saiu da igreja e foi ver o carrossel e as barracas de jogos. Como Sinha Vitória negou-lhe uma aposta no bozó, Fabiano afastou-se da família e foi beber pinga _ . Embriagando-se, foi ficando valente. Imaginava, com raiva, por onde andava o soldado amarelo. Queria esganá-lo. No meio da multidão, gritava, provocava um inimigo imaginário _ . Queria bater em alguém, poderia matar se fosse o caso _ . Vez ou outra, interrompia suas imprecações para uma confusa reflexão. Cansado do seu próprio teatro, Fabiano deitou no chão, fez das suas roupas um travesseiro e dormiu pesadamente.
Sinha Vitória, aflita, tinha que olhar os meninos, não podia deixar o marido naquele estado. Tomando coragem para realizar o que mais queria naquele momento, discretamente esgueirou-se para uma esquina e ali mesmo urinou. Em seguida, para completar o momento de satisfação, pitou num cachimbo de barro pensando numa cama igual à de seu Tomas da bolandeira .
Os meninos também estavam aflitos. Baleia sumira na confusão de pessoas, e o medo de que ela se perdesse e não mais voltasse era grande. Para alívio dos pequenos, a cachorrinha surge de repente e acaba com a tensão. Restava, agora, aos pequenos, o maravilhamento com tudo de novo que viam. O menor perguntou ao mais velho se tudo aquilo tinha sido feito por gente. A dúvida do maior era se todas aquelas coisas teriam nome. Como os homens poderiam guardar tantas palavras para nomear as coisas _ ?
Distante de tudo, Fabiano roncava e sonhava com soldados amarelos.
Baleia
Pêlos caídos, feridas na boca e inchaço nos beiços debilitaram Baleia de tal modo que Fabiano achou que ela estivesse com raiva. Resolveu sacrificá-la. Sinha Vitória recolheu os meninos, desconfiados, a fim de evitar-lhes a cena.
Baleia era considerada como um membro da família, por isso os meninos protestaram, tentando sair ao terreiro para impedir a trágica atitude do pai. Sinha Vitória lutava com os pequenos, porque aquilo era necessário, mas aos primeiros movimentos do marido para a execução, lamentou o fato de que ele não tivesse esperado mais para confirmar a doença da cachorrinha.
Ao primeiro tiro, que pegou o traseiro da cachorra e inutilizou-lhe uma perna, as crianças começaram a chorar desesperadamente.
Começou, lá fora, o jogo estratégico da caça e do caçador. Baleia sentia o fim próximo, tentava esconder-se e até desejou morder Fabiano. Um nevoeiro turvava a visão da cachorrinha, havia um cheiro bom de preás. Em meio à agonia, tinha raiva de Fabiano, mas também o via como o companheiro de muito tempo. A vigilância às cabras, Fabiano, Sinha Vitória e as crianças surgiam à Baleia em meio a uma inundação de preás que invadiam a cozinha _ . Dores e arrepios. Sono. A morte estava chegando para Baleia.
Contas
Fabiano retirava para si parte do que rendiam os cabritos e os bezerros. Na hora de fazer o acerto de contas com o patrão, sempre tinha a sensação de que havia sido enganado. Ao longo do tempo, com a produção escassa, não conseguia dinheiro e endividava-se.
Naquele dia, mais uma vez Fabiano pedira a Sinha Vitória para que ela fizesse as contas. O patrão, novamente, mostrou-lhe outros números. Os juros causavam a diferença, explicava o outro. Fabiano reclamou, havia engano, sim senhor, e aí foi o patrão quem estrilou. Se ele desconfiava, que fosse procurar outro emprego. Submisso, Fabiano pediu desculpas e saiu arrasado, pensando mesmo que Sinha Vitória era quem errara.
Na rua, voltou-lhe a raiva. Lembrou-se do dia em que fora vender um porco na cidade e o fiscal da prefeitura exigira o pagamento do imposto sobre a venda. Fabiano desconversou e disse que não iria mais vender o animal. Foi a uma outra rua negociar e, pego em flagrante, decidiu nunca mais criar porcos _ .
Pensou na dificuldade de sua vida. Bom seria se pudesse largar aquela exploração. Mas não podia! Seu destino era trabalhar para os outros, assim como fora com seu pai e seu avô.
As notas em sua mão impressionavam-no. "Juros", palavra difícil que os homens usavam quando queriam enganar os outros. Era sempre assim: bastavam palavras difíceis para lograr os menos espertos. Contou e recontou o dinheiro com raiva de todas aquelas pessoas da cidade. Sinha Vitória é que entendia seus pensamentos.
Teve vontade de entrar na bodega de seu Inácio e tomar uma pinga. Lembrou-se da humilhação passada ali mesmo e decidiu ir para casa. o céu, várias estrelas. Deixou de lado a lembrança dos inimigos e pensou na família. Sentiu dó da cachorra Baleia. Ela era um membro da família.
O Soldado Amarelo
Procurando uma égua fugida, Fabiano meteu-se por uma vereda e teve o cabresto embaraçado na vegetação local. Facão em punho, começou a cortar as quipás e palmatórias que impediam o prosseguimento da busca. Nesse momento, depara-se com o soldado amarelo que o humilhara um ano atrás _ . O cruzar de olhos e o reconhecimento durou fração de segundos. O suficiente para que Fabiano esfolasse o inimigo. O soldado claramente tremia de medo. Também reconhecera o desafeto antigo e pressentia o perigo.
Fabiano irritou-se com a cena. O outro era um nadica. Poderia matá-lo com as mãos, sem armas, se quisesse. A fragilidade do outro aos poucos foi aplacando a raiva de Fabiano. Ponderou que ele mesmo poderia ter evitado a noite na cadeia se não tivesse xingado a mãe do amarelo. No meio daquela paisagem isolada e hostil, só os dois, e se ele pedisse passagem ao soldado? Aproximou-se do outro pensando que já tinha sido mais valente, mais ousado. Na verdade, na fração de segundo interminável Fabiano ia descobrindo-se amedrontado. Se ele era um homem de bem, para que arruinar a sua vida matando uma autoridade? Guardaria forças para inimigo maior.
Sentindo o inimigo acovardado, o soldado ganhou força. Avançou firme e perguntou o caminho. Fabiano tirou o chapéu numa reverência e ainda ensinou o caminho ao amarelo.
O Mundo Coberto de Penas
A invasão daquele bando de aves denunciava a chegada da seca. Roubavam a água do gado, matariam bois e cabras. Sinha Vitória inquietou-se. Fabiano quis ignorar, mas não pôde; a mulher tinha razão. Caminhou até o bebedouro, onde as aves confirmavam o anúncio da seca. Eram muitas. Um tiro de espingarda eliminou cinco, seis delas, mas eram muitas. Fabiano tinha certeza, agora, de uma nova peregrinação, uma nova fuga.
Era só desgraça atrás de desgraça. Sempre fugido, sempre pequeno. Fabiano não se conformava, pensava com raiva no soldado amarelo, achava-se um covarde, um fraco. Irado, matou mais e mais aves. Serviriam de comida, mas até quando ? Quem sabe a seca não chegasse...Era sempre uma esperança. Mas o céu escuro de arribações só confirmava a triste situação _ . Elas cobriam o mundo de penas, matando o gado, tocando a ele e à família dali, quem sabe comendo-os.
Recolheu os cadáveres das aves e sentiu uma confusão de imagens em sua cabeça. Aquele lugar não era bom de se viver. Lembrou-se de Baleia, tentou se convencer de que não fizera errado em matá-la, pensou de novo na família e no que as arribações representavam. Sim, era necessário ir embora daquele lugar maldito _ . Sinha Vitória era inteligente, saberia entender a urgência dos fatos.
Fuga
O céu muito azul, as últimas arribações e os animais em estado de miséria indicavam a Fabiano que a permanência naquela fazenda estava esgotada. Chegou um ponto em que, dos animais, só sobrou um bezerro, que foi morto para servir de comida na viagem que se faria no dia seguinte.
Partiram de madrugada, abandonando tudo como encontraram. O caminho era o do sul. O grupo era o mesmo que errava como das outras vezes. Fabiano, no fundo, não queria partir, mas as circunstâncias convenciam-no da necessidade.
A vermelhidão do céu, o azul que viria depois assustavam Fabiano _ . Baleia era uma imagem constante em seus confusos pensamentos. Sinha Vitória também fraquejava. Queria, precisava falar _ . Aproximou-se do marido e disse coisas desconexas, que foram respondidas no mesmo nível de atrapalhação.
Na verdade, ele gostou que ela tivesse puxado conversa. Ela tentou animar o marido, quem sabe a vida fosse melhor, longe dali, com uma nova ocupação para ele. Marido e mulher elogiam-se mutuamente; ele é forte, agüenta caminhar léguas, ela, tem pernas grossas e nádegas volumosas, agüenta também. A cidade, talvez, fosse melhor. Até uma cama poderiam arranjar. Por que haveriam de viver sempre como bichos fugidos _ ?
Os meninos, longe, despertavam especulações ao casal. O que seriam quando crescessem? Sinha Vitória não queria que fossem vaqueiros. O cansaço ia chegando à medida que avançava a caminhada, e assim houve uma parada para descanso. Novamente marido e mulher conversavam, fazendo planos, temendo o mau agouro das aves que voavam no céu.
Sinha Vitória acordou os pequenos, que dormiam, e seguiu-se viagem. Fabiano ainda admirou a vitalidade da mulher. Era forte mesmo! Assim, a cada passo arrastado do grupo um mundo de novas perspectivas ia sendo criado. Sinha Vitória falava e estimulava Fabiano. Sim, deveria haveria uma nova terra, cheia de oportunidades, distante do sertão a formar homens brutos e fortes como eles.
Análise da obra Narrado em 3ª pessoa (ao contrário das obras anteriores de Graciliano Ramos), Vidas Secas pertence a um gênero intermediário entre romance e livro de contos. Nesta obra não é a personagem que ressalta nele, mas o narrador que se faz sentir pelo discurso indireto, construído em frases curtas, incisivas, enxutas, quase sempre em períodos simples. A obra pertence a um gênero intermediário entre romance e livro de contos. Possui 13 capítulos até certo ponto autônomos, mas que se ligam pela repetição de alguns motivos e temas, como a paisagem árida, a zoomorfização e antropomorfização das criaturas, os pensamentos fragmentados das personagens e seu conseqüente problema de linguagem, seu Tomás da bolandeira, a cama de varas de sinhá Vitória etc.
O que une os episódios no livro é a utilização de vários motivos recorrentes (a paisagem árida, a zoomorfização e antropomorfização das criaturas, os pensamentos fragmentados das personagens e seu conseqüente problema de linguagem, seu Tomás da bolandeira, a cama de varas de sinhá Vitória etc.), que dada a sua redundância e a maneira como são distribuídos, chegam a constituir um verdadeiro substituto da ação e da trama do livro.
Também as personagens são focalizadas uma por vez, o que mostra o afastamento existente entre elas. Cada uma tem sua vida particular, acentuando-se a solidão em que vivem. Vidas Secas é, portanto, a dramática descrição de pessoas que não conseguem comunicar-se. Nem os opressores comunicam-se com os oprimidos, nem cada grupo comunica-se entre si. A nota predominante do livro é o desencontro dos seres. Os diálogos são raros e as palavras ou frases que vêm diretamente da boca das personagens são apenas xingatórios, exclamações, ou mesmo grunhidos. A terra é seca, mas sobretudo o homem é seco. Daí o título Vidas Secas. O discurso do narrador é igualmente construído com frases curtas, incisivas, enxutas, quase sempre períodos simples. Escritor extremamente contido, com o pavor da verbosidade, Graciliano prefere a eloqüência das situações fixadas à eloqüência puramente verbal. O que há de libelo no livro se inclui na sua própria estrutura e não em discursos das personagens ou do autor.
Enredo
Capítulo 1 - Mudança
É a história da retirada de uma família, fugindo da seca. Fazem parte dela Fabiano, sua esposa Vitória, dois filhos, caracterizados pelo autor apenas como " menino mais novo" e "o menino mais velho", e a cachorra Baleia (deve-se lembrar que o romance fala em seis viventes, contando com o papagaio que eles comeram por não haver comida por perto). Nesse capítulo temos a descrição da terra árida e do sofrimento da família. As personagens não se comunicam; apenas duas vezes o pai, irritado com o menino mais velho, xinga-o. Essa falta de diálogos permanece por todo o livro, como também a intenção de não dar nome às crianças, para caracterizar a vida mesquinha e sem sentido em que vivem os retirantes, que não têm consciência de sua situação, embora, ainda nesse primeiro capítulo, Fabiano e Vitória sonhem com uma vida melhor: "Sinhá Vitória, queimando o assento no chão, as moas cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão.
Mais adiante é Fabiano quem sonha: "Sinhá Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de sinhá Vitória provoca ria a inveja das outras caboclas ... e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria o dono daquele mundo... Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A caatinga ficaria verde.
Capítulo 2 - Fabiano
Mostra o homem embrutecido, mas ainda capaz de analisar a si próprio. Tem a consciência de que mal sabe falar, embora admire os que sabem se expressar. E chega à conclusão de que não passa de um bicho.
Capítulo 3 - Cadeia
Aqui, pela primeira vez, aparece a figura do soldado amarelo, que mais tarde voltará simbolizando a autoridade do governo. Igualmente, pela primeira vez, insinua-se a idéia de que não é apenas a seca que faz de Fabiano e sua família pessoas animalizadas. Ele é preso sem qualquer motivo e toma a analisar sua situação de homem-bicho. Só que, desta vez, não tem mais coragem de sonhar com um futuro melhor. Ao fim do capítulo, temos Fabiano ciente de sua condição de homem vencido e, pior ainda, sem ilusões com relação à vida de seus filhos.
Capítulo 4 - Sinhá Vitória
Se as aspirações do marido resumem-se em saber usar as palavras adequadas a uma situação, a de Vitória é uma cama de couro. Também essa cama será motivo diversas vezes repetido no decorrer da obra, como veremos adiante. Além de ser a personagem que melhor articula palavras e expressões, conseqüência de ser talvez a que mais tem tempo para pensar, uma vez que Fabiano trabalha o dia todo e à noite dorme, sem ter coragem para devaneios ou para falsear sua dura realidade, ela é caracterizada como esperta e descobre que o patrão rouba nas contas do marido (no capítulo Contas).
Capítulo 5 - O Menino Mais Novo
Também ele possui um ideal na vida: o de se identificar ao pai. No início do capítulo: "Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração."
Adiante: "Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar que podia ser Fabiano."
Em seguida: "E precisava crescer ficar tão grande como Fabiano, matar cabras à mão de pilão, trazer uma faca de ponta na cintura. Ia crescer espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru."
Efinalmente: "Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no pátio assim, torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicocho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados."
Capítulo 6 - O Menino Mais Velho
"Tinha um vocabulário quase tão minguado coma o da papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia." O nível das aspirações dos componentes da família decresce cada vez mais. O ideal do menino mais velho é o de ter um amigo. A amizade de Baleia já lhe servia: "O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-separa não magoá-lo, sofria a carícia excessiva."
Capítulo 7 - Inverno
Temos a descrição de uma noite chuvosa e os temores e devaneios que desperta na família de Fabiano. A chuva inundava tudo, quase inundava a casa deles também, mas eles sabiam que dentro em pouco a seca tomaria conta de suas vidas outra vez.
Capítulo 8 - Festa
Apresenta primeiramente os preparativos da família, em casa, para ir à festa de Natal na cidade e, em seguida, dirigindo-se à festa. É, senão o mais, um dos mais melancólicos capítulos do livro — quando as personagens centrais da história, em contato com outras pessoas, sentem-se mais humilhadas, mesquinhas e ate mesmo ridículas. Percebem a distância em que se encontram dos demais seres e isso é novo motivo de humilhação para eles. Resta a sinhá Vitória a solução do devaneio: "Sinha Vitória enxergava, através das barracas, a cama de seu Tomás da bolandeira. unia cama de verdade."
Para Fabiano, não há esperanças: "Fabiano roncava de papo para cima... Sonhava agoniado... Fabiano se agitava. soprando. Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pés com enormes retinas e ameaçavam-no com facões terríveis."
Capítulo 9 - Baleia
Conta a morte da cachorra. Caíra-lhe o pêlo, estava pele e ossos, o corpo enchera-se de chagas. Fabiano resolve matá-la para aliviar os sofrimentos dela. Os filhos percebem a situação, magoados e feridos por perderem um “irmão”: "Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam..."
Já ferida, com os demais membros da família chorando e rezando por ela, Baleia espera a morte sonhando com outro tipo de vida: "Baleia queria dormir Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano. um Fabiano enorme. As crianças se esposariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás gordos, enormes."
Percebe-se, aliás, que dos seis componentes da família, Baleia é quem, ao lado de Vitória, com maior clareza, consegue elaborar seus devaneios.
Capítulo 10 - Contas
É outro capítulo melancólico. Se em Cadeia Fabiano conscientiza-se de que há no mundo homens que, por possuírem uma posição social diferente da dele, podem machucá-lo, se em Festa os familiares percebem sua situação inferior e desajeitada e sentem-se ridículos, agora chegam à conclusão de que pessoas com dinheiro também podem aproveitar-se deles. São duas as reações de Fabiano ao notar-se roubado pelo patrão: primeiro revolta, depois descrença e resignação. Vale a pena ressaltar nesse capítulo que é sinhá Vitória quem percebe que as contas do patrão estão erradas. Ela é caracterizada como a mais arguta e perspicaz dos seis viventes da família.
Capítulo 11 - O Soldado Amarelo
Temos uma descrição mais profunda desta personagem. Observa-se que, fisicamente, é menos forte que Fabiano; moralmente é uma pessoa corrupta, enquanto Fabiano é honesto; contudo é por ele respeitado e temido, por ocupar olugar de representante do governo.
Capítulo 12 - O Mundo Coberto de Penas
A seca está para chegar outra vez, prenunciando mais miséria e sofrimento. Fabiano faz um resumo de todas as desgraças que têm marcado sua vida. Há muito não sonha mais. Seus problemas agora são livrar-se de certo sentimento de culpa por ter matado Baleia e fugir de novo.
Capítulo 13 - Fuga
Continua a análise de Fabiano a respeito de sua vida. A esposa junta-se a ele e refletem juntos pela primeira vez. Vitória é mais otimista e consegue transmitir-lhe um pouco de paz e esperança por algum tempo. E numa mistura de sonhos, descrenças e frustrações termina o livro. Graciliano Ramos transmite uma visão amarga da vida dos retirantes
Comentários
Vidas Secas começa por uma fuga e acaba com outra. No início da leitura tem-se a impressão de que Fabiano e sua família fogem da seca: "Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões do poente. Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram-se as suas desgraças e os seus pavores."
O último capítulo, Fuga, descreve cena semelhante: "A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços franzidos rezando rezas desesperadas. Encolhido no banto do copiar Fabiano espiava a caatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, torturadas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre. Mas quando a fazenda se despovoou. viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher; matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao inundo, como negro fugido.
O romance decorre entre duas situações idênticas, de tal modo que a fim, encontrando o principio, fecha a ação num circulo. Entre a seca e as águas, a vida do sertanejo se organiza, do berço à sepultura, a modo de retorno perpétuo.
Mas será apenas a seca o motivo dessa fuga? Percebemos no romance a descrição de dois mundos: o mundo de Fabiano e o mundo composto pela sociedade. Do primeiro, fazem parte Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo, Baleia e o papagaio. Do segundo, seu Tomás da bolandeira, o patrão de Fabiano e o soldado amarelo. Tanto as personagens do primeiro grupo como as do segundo vivem na mesma região, sofrendo todas a mesma seca. Por que não foge dela o patrão de Fabiano? Porque ele possui as terras e o dinheiro, porque ele emprega os trabalhadores segundo suas próprias leis, fazendo deles meros escravos sem qualquer direito a uma vida digna e independente.
Caracterizado como dono e opressor, o patrão não tem necessidade de fugir da seca. De seu Tomás também Fabiano sente-se distante. Porque seu Tomás era culto, sabia comunicar-se com precisão, ao passo que ele, Fabiano, só sabia grunhir e mal articulava uma ou outra palavra.
Se o dinheiro do patrão representa um fator de humilhação para Fabiano, a linguagem de seu Tomás significa a cultura e a educação que Fabiano jamais poderá possuir. E ele se humilha mais uma vez.
Seu Tomás simboliza ainda um status econômico de segurança e conforto. De fato, sinhá Vitória manifesta sempre o desejo de possuir uma cama igual a dele, e esse sonho é a mais alta aspiração que possui. Osoldado amarelo, por sua vez, simboliza o governo. Metido num “fuzuê sem motivo”, Fabiano acaba preso. Temos agora um Fabiano não apenas humilhado, mas vencido, consciente de sua situação animalizada dentro de uma sociedade em que os mais fortes sempre vencem os mais fracos. E é por esse mesmo motivo que, no capítulo O Soldado Amarelo, ficando as duas personagens, lado a lado, sem mais ninguém por perto e Fabiano, podendo revidar a injustiça anteriormente sofrida, resolve deixá-lo em paz.
Fabiano entrevê na organização do Estado a entidade que humilha; o representante dessa entidade, às vezes, e até frágil, mas a estrutura condiciona o humilhado à incapacidade de reagir.
Entre os dois mundos que acabamos de descrever “não há um sistema de trocas, senão um mecanismo de opressão e bloqueio”. O que parece ser importante para Graciliano Ramos é denunciar a desigualdade entre os homens, a opressão social, a injustiça. São esses os temas de Vidas Secas, por isso foi dito no início desta análise que o livro não deve ser considerado apenas regionalista. Em momento algum o esmagamento de Fabiano e de sua família é explicado apenas pela seca ou por qualquer fator geográfico.
Já foi feita uma referência anteriormente sobre a consciência de Fabiano quanto à sua condição animalizada na sociedade a que pertence. Affonso Romano de Sant’Ana faz uma aproximação de Fabiano à Baleia, e de sinhá Vitória ao papagaio. Segundo ele, o pensamento de Fabiano, no capítulo que recebe seu nome, passa por três etapas:
"Primeiramente, ele se considera positivamente dizendo: —Fabiano, você é um homem’. Depois se estuda com menos otimismo, e considerando mais realisticamente sua situação se corrige ‘— Você é um bicho, Fabiano - Ou seja: um individuo que não sendo exatamente um homem, pelo menos sabia se. safar dos problemas. No entanto. poucas frases adiante, nova alteração se dá em suas considerações. E de homem que se aceitara apenas como um bicho esperto, ele se coloca como um animal: “o corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. Entristeceu.
Decaindo do ponto mais elevado da escala, passando a individuo apenas esperto e depois a um semelhante do animal, Fabiano termina por se aproximar de Baleia, a quem, em contraposição, em seu diálogo-a-um ele considera: “— Você é bicho, Baleia ‘, Nesta frase estaria integrado o sentido duplo do termo “bicho ‘. aplicado a Baleia: animal / esperteza, positivo / negativo. Uma análise mais interessada nestes levantamentos poderia perfilar dentro do livro todos os processos sistemáticos de zoomorfização dos animais, destacando principalmente os verbos e adjetivos conferidos a um e outro elemento numa mesma simbiose metafórica.
A identificação entre sinhá Vitória e o papagaio acentua-se sobretudo no capítulo Sinha Vitória, quando ela tenta perceber o sentido da comparação que seu marido fizera do seu modo de caminhar com o do papagaio: "Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usara nas festas, caros e inúteis. Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como papagaio, era ridícula."
A partir dai a imagem dos pés de Vitória vai se fundindo à imagem do papagaio, até que estilisticamente a superposição se destaca em frases como essas: Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Aí o adjetivo pobre já não se refere exclusivamente ao papagaio que foi morto para matar a fome da família, mas descreve a própria sinhá Vitória tão “infeliz” como aquele “pobre louro “. No resto do capítulo, o autor usa de um processo de recorrência da imagem da ave, agora ampliando-lhe a área semântica, referindo-se à galinha, especialmente a “galinha pedrês", devorada pela raposa.
Othon Bastos no papel de Paulo Honório, na adaptação cinematográfica
PERÍODO LITERÁRIO DA OBRA: Modernismo II fase
ANO DA 1a. PUBLICAÇÃO DA OBRA: 1934
CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS DO MODERNISMO II FASE:
• Uma resposta artística ao momento de fermentação política e ideológica da década de 30;
• Arte engajada, de clara militância política;
• Interesse por temas nacionais;
• A busca de uma linguagem mais brasileira;
• Interesse pela vida cotidiana;
• Romance mais amadurecido;
• Enfoque mais direto da realidade;
• Denuncia: as agruras da seca e da migração, os problemas do trabalhador rural, a miséria e a ignorância;
• Sondagem do mundo interior (psicologia);
• Influências do Realismo-Naturalismo do século XIX;
• O cangaço, o fanatismo religioso, a luta pela terra, a crise dos engenhos;
• Sobressai o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, pelos poderosos, o homem sendo devorado pelos problemas que o meio lhe impõe (Determinismo);
• Predominância do regionalismo;
RESUMO
Sentado na sala de jantar de sua residência, tendo ao lado o filho de cerca de três anos, Paulo Honório, fazendeiro nas imediações de Viçosa, estado de Alagoas, dedica-se à árdua tarefa de escrever sozinho a história de sua vida, pois as tentativas de fazê-lo com a ajuda de conhecidos seus haviam fracassado completamente devido tanto a divergências políticas como, em particular, de linguagem. Em vista de tais percalços, o fazendeiro decide executar ele próprio seu projeto de autobiografia e entra direto no assunto.
A ASCENSÃO
Aos 18 anos, já tendo trabalhado na enxada para vários patrões, em várias fazendas, aprendera a ler na cadeia, onde permanecera quatro anos em virtude de ter esfaqueado um rival na disputa por uma moça, que depois se tornaria prostituta. Ao ser libertado, resolvera concentrar todo seu esforço no objetivo de ganhar dinheiro, correndo o sertão atrás de negócios variados e, não raro, perigosos.
A AQUISIÇÃO DA FAZENDA S. BERNARDO
Finalmente, cansado de tal vida, tomara a decisão de fixar-se no município de Viçosa, acalentando a intenção de adquirir a fazenda São Bernardo, onde havia trabalhado quando jovem. O proprietário da mesma, Salustiano Padilha, falecera há algum tempo, depois de não ter podido realizar seu sonho de dar ao filho, Luís, um diploma de doutor. Este, sem título nem vontade de trabalhar, entregara-se à bebida, ao jogo e à farra com mulheres, deixando a fazenda em completo abandono. São Bernardo no teatro
O CASAMENTO COM MADALENA
A certa altura, Paulo Honório decide que precisa casar para ter um herdeiro que viesse a tomar conta de São Bernardo. Certo dia, em Viçosa, na casa do juiz, conhece uma jovem loira e bonita, acompanhada de uma senhora, d. Glória. Impressionado, quer buscar informações sobre a jovem, mas desiste, temeroso de passar por ridículo. Algum tempo depois, contudo, ao retornar de uma viagem à capital, encontra no trem, por acaso, a mesma d. Glória e fica sabendo que a jovem, sua sobrinha, é professora primária em Viçosa e se chama Madalena, de cuja beleza, aliás, sem ligar o nome à pessoa, Paulo Honório já ouvira falar. Aos poucos, no íntimo, seu projeto de casamento com Madalena vai amadurecendo. Pretextando que Luís Padilha não servia mais para professor em virtude de suas idéias políticas, convida Madalena para ser professora em São Bernardo. Em vista da recusa, Paulo Honório confessa que o motivo do convite era, na realidade, outro e declara sua disposição de casar com ela. Apesar de não se surpreender, Madalena mostra-se indecisa durante algum tempo mas, afinal, aceita a proposta e o casamento realiza-se em seguida na capela da fazenda, onde d. Glória também passa a residir.
OS CIÚMES
Cerca de dois anos depois do casamento, Madalena tem um filho. No dia em que se comemoram os dois anos de casamento, Paulo Honório encontra Luís Padilha colhendo flores no jardim a pedido de Madalena. Uma idéia estranha se infiltra em seu cérebro, mas desaparece em seguida. No jantar - com a presença do jornalista Azevedo Gondim, do advogado João Nogueira e do padre Silvestre - todos discutem a situação política do país, ficando evidente que Luís Padilha e Madalena são partidários de mudanças. Começa por isso a tortura cruel da dúvida sobre a fidelidade Madalena.
O SUICÍDIO DE MADALENA
Um dia, já no limite da loucura, Paulo Honório encontra no pomar uma folha de papel com o rascunho do que julga ser uma carta de Madalena a algum homem. Enfurecido, a agride e pensa em matá-la. Madalena mostra-se serena e como que desligada do mundo, o que o intriga, principalmente por ela pedir-lhe que, no caso de vir a morrer de repente, tratasse bem de d. Glória e distribuísse seus objetos de uso pessoal entre pessoas conhecidas. Na noite seguinte, Madalena se suicida e Paulo Honório encontra uma longa carta a ele dirigida na qual faltava uma folha: exatamente aquela que encontrara perdida no pomar.
Isabel Ribeiro e Othon Bastos, no papel de Madalena e Paulo Honório, na adaptação cinematográfica
A DERROCADA
Passado não muito tempo, d. Glória e seu Ribeiro, o idoso contabilista que se afeiçoara a Madalena, deixam a fazenda. A Revolução de 30 explode. Padre Silvestre e Luís Padilha, este acompanhado de uma dezena de caboclos de São Bernardo, aderem. Paulo Honório sente que os ventos haviam mudado de direção. A profunda crise econômica que se abate sobre o país atinge também São Bernardo, e Paulo Honório começa a enfrentar dificuldades em vista da queda dos preços dos produtos agrícolas, da alta do dólar e do corte do crédito. Para agravar ainda mais esta situação, os vizinhos, animados com a queda do governo e a transferência do juiz, dr. Magalhães, para outra comarca, decidem ir à forra e levam à justiça a questão das divisas. Desanimado, Paulo Honório perde o interesse pelo trabalho e o mato começa a tomar conta da fazenda.
ASPECTOS QUE MERECEM ATENÇÃO
1)Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa em que um "eu protagonista" procura recompor a sua existência, recapitulando-a para si e para os seus leitores. Algo similar ao processo de recuperação do passado de Bentinho, em Dom Casmurro.
2)A narrativa apresenta trinta e seis capítulos curtos. Nos dois primeiros, Paulo Honório registra, no passado próximo, as suas dificuldades para escrever o relato. Nos capítulos seguintes, o narrador mergulha no passado mais distante, obedecendo à ordem cronológica da infância à vida adulta. Esta ordem linear só é quebrada no capítulo 19, quando o dono da São Bernardo, usando o tempo presente, sente-se melancolicamente acossado pelos fantasmas de um mundo que já acabou.
Paulo Honório no cinema
3)Paulo Honório exerce um duplo papel no romance. Há o fazendeiro ambicioso que constrói a mais importante propriedade rural da região e há o escritor que tenta entender as razões de seu fracasso existencial.
4)A questão técnica do romance: Paulo Honório acha que não teria condições de escrevê-lo, devido à sua rudeza e às suas poucas letras. Tenta resolver o problema através da divisão do trabalho: padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; o advogado João Nogueira com as questões gramaticais e o jornalista Azevedo Gondim com a composição literária. Mas só o jornalista aceita a tarefa. O seu estilo pernóstico e complicado desagrada profundamente a Paulo Honório, que decide ele mesmo escrever o relato, utilizando uma linguagem coloquial e aparentemente anti-literária. Surge então a linguagem de São Bernardo: frases curtas, objetivas, quase brutas, despidas de metáforas e com escassa adjetivação. Nessa opção por um estilo despojado, revela-se - em Graciliano Ramos - a busca da simplicidade expressiva, marca registrada da geração modernista de 22, que os romancistas de 30 vão levar adiante em suas obras.
5)Há um desnível brutal entre o refinamento técnico da narração e os medíocres dotes culturais e artísticos de Paulo Honório. A narração só não se torna inverossímil porque os eventos e as vivências do rude fazendeiro são tão dramáticos (e significativos para os leitores) que sobrepujam a inconcebível sofisticação do texto.
6)A vitória capitalista de Paulo Honório já tem um componente da nova ordem socioeconômica: a coisificação dos seres. Para o senhor de São Bernardo, as pessoas valem enquanto objetos na sua escalada. Quase tudo se transforma em mercadoria.
7)A derrocada final de Paulo Honório - com a angustiante consciência de seu fracasso - constitui uma das mais belas páginas de toda a nossa literatura. Esta agonia do protagonista parece resultar de uma complexa teia de fatores:
• a ascensão vertiginosa, que o impediu de olhar mais para os seres humanos;
• o espírito capitalista que o levou a transformar tudo em capital e lucro;
• a alma patriarcal, rústica e bárbara, incapaz de transigir e, portanto, de compreender Madalena;
• o próprio bloqueio afetivo, do qual é vítima, e que parece resultar de sua necessidade de sobrevivência num universo hostil, desde os tempos ásperos da infância até a maturidade.
Temática regionalista em Cândido Portinari. Enterro da menina morta
8)Ainda sobre a derrota de Paulo Honório é necessário lembrar que:
• ela é deflagrada pelo suicídio de Madalena;
• ela é homóloga à Revolução de 30, que significa o triunfo das forças modernizadoras sobre a antiga estrutura agrária;
• por não pertencer totalmente nem à velha ordem patriarcal nem à nova ordem capitalista, Paulo Honório não aceita nem rejeita a Revolução; simplesmente não a compreende;
• a fuga generalizada da fazenda leva-a à decadência, mas é visível que, apesar de todas as dificuldades econômicas - advindas da crise dos anos trinta - Paulo Honório poderia recuperá-la. Só que ele não vê nisso mais nenhum sentido.