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terça-feira, 22 de maio de 2012

A MORTE DE IVAN ILITCH, LÉON TOLSTÓI

"O homem pode viver cem anos na cidade sem perceber que já está morto há muito tempo" - Léon Tolstói

Escrita no final da vida do russo Leon Tolstói (1828-1910), “A morte de Ivan Ilitch” é considerada por muitos como a novela mais perfeita da literatura mundial.
A narrativa apresenta a trajetória da personagem-título até momento crucial de sua morte.
O autor russo em 85 páginas retratou de maneira extraordinária a alegoria da vaidade humana e refletiu sobre o apego às coisas mundanas e materiais, que induz o indivíduo a total alienação, condicionando-o á uma vida medíocre, numa época onde a sociedade clamava por consumismo.



A vida de Ivan Ilitch era das mais simples, das mais vulgares e, contudo, das mais terríveis. Juiz do Tribunal, falecia aos 45 anos”.

I -
Praskóvia Fiódorovna Golovina tem o profundo pesar de comunicar, a seus parentes e amigos, o falecimento do seu querido esposo, o juiz Ivan Ilitch Golovin, ocorrido a 4 de fevereiro de 1882. O féretro sairá sexta-feira, à uma hora da tarde”.
A obra inicia-se com o anúncio do falecimento de Ivan Ilitch, um juiz de Direito bem sucedido que se dedicou integralmente à sua profissão, embora consciente da ineficácia da justiça, defendia-a como infalível e perfeita.
Sua leitura unilateral dos códigos de Direito transforma-o num burocrata mecânico, numa pessoa calculista em busca de status quo focando-se, exclusivamente, nos autos e nas leis e portando-se com impessoalidade em relação aos destinos das pessoas.

Assim que os supostos amigos de Ivan tomaram conhecimento da sua morte, o que primeiramente, ocorreu a cada um, foi á possibilidade própria ou dos amigos nas promoções e transferência que ela iria provocar.
Seguramente ocuparei o lugar de Stabel ou Vinikov”, pensou Fiódor Vassílievitch. “Há um bocado de tempo que me foi prometido, e a promoção representa um aumento de oitocentos rublos anuais, sem contar ás custas.

Tenho que aproveitar a ocasião e conseguir a transferência do meu cunhado de Kaluga para aqui”, disse Piotr Ivánovitch de si para si. “Minha mulher ficará radiante. E não poderão mais me acusar de nada ter feito pelos parentes dela.”
Em seguida, passam calcular quanto seria a pensão da viúva e discutem sobre a obrigatoriedade de acompanharem o enterro.
Os mais ligados a ele eram Fiódor Vassílievitch e Piotr Ivánovitch. Piotr Ivánovitch fora seu colega na faculdade de direito e acreditava que tinha certas obrigações para com o finado. Tendo, no correr do jantar, informado à mulher o falecimento de Ivan Ilitch e ainda tecido algumas considerações sobre a possibilidade que se abria de o irmão dela ser transferido, Piotr Ivánovitch sacrificou a habitual sesta e, adequadamente trajado, bateu para a residência do morto.”
Até aquele que era considerado o melhor amigo do protagonista irá ao enterro não por vontade própria, mas sim, por obrigação social e, fica preocupado em perder o carteado com os amigos.

Na ponta dos pés, o camareiro Guerássim andava a volta do corpo de Ivan Ilitch, polvilhando o chão com uma certa substância, e, vendo tais manejos, Piotr Ivánovitch sentiu imediatamente um ligeiro cheiro de cadáver em decomposição. Quando da sua última visita a Ivan Ilitch, Piotr Ivánovitch vira aquele camareiro no escritório; desempenhava então as funções de enfermeiro e o doente demonstrava ter por ele uma especial estima. [...] Piotr Ivánovitch não cessava de fazer o sinal-da-cruz (...) Depois, quando achou que já se persignara suficientemente, parou de fazê-lo e entrou a examinar o defunto.
Piotr Ivánovitch ao tentar partir disfarçadamente, é interpelado pela viúva que pede para acompanhá-lo.

Schwarz lançou ao amigo um olhar misto de compaixão e malícia, que poderia ser traduzido por:
Lá se vai o nosso joguinho por água abaixo! Não reclame se arranjarmos outro parceiro. Se conseguir se livrar a tempo, poderemos talvez formar uma mesa de cinco...

A viúva confessa-lhe que o marido sofreu dores horríveis nos últimos dias, gritou sem parar e que esteve o tempo todo lúcido.

A ideia do sofrimento daquele homem que conhecera tão de perto, primeiro na alegre meninice, depois como companheiro de escola, mais tarde como colega de tribunal e parceiro de jogo, horrorizou subitamente Piotr Ivánovitch, apesar da desagradável certeza do seu fingimento e do daquela mulher.
“Aquilo acontecera a Ivan Ilitch e não a ele; não lhe teria acontecido, nem poderia acontecer, e pensar de outra maneira seria cair num desgraçado estado de espírito que se fazia premente evitar, como a fisionomia de Schwarz era o melhor exemplo”.
Depois de muitos preâmbulos, a viúva pergunta-lhe como precisaria agir para obter uma boa pensão do Tesouro pela morte do marido.

Começa, finalmente, a encomendação do corpo e Piotr Ivánovitch depara-se com os olhos vermelhos de chorar do filho de Ivan Ilitch que denunciavam a vulgaridade e o vício tão comuns nos meninos de treze ou catorze anos.
Na saída encontrou-se com Guerássim e perguntou-lhe como se sentia.
“- Fez-se a vontade de Deus. Todos nós teremos de passar por isso.”
Partiu rapidamente para a casa de Fiódor Vassílievitch e lá encontrou os amigos em plena jogatina.
II –
Ivan Ilitch era filho de um funcionário que serviu em vários ministérios e departamentos em Petersburgo, adquiriu estabilidade profissional e acabou aposentando-se com uma idade avançada e um miserável salário. Iliá Iefímovitch Golovin teve três filhos homens. Ivan Ilitch era o segundo.
“Não era frio e meticuloso como o irmão mais velho, nem destrambelhado como o mais novo; constituíra um meio-termo feliz: inteligente, ilustrado, agradável e decente.”
 Cursou a faculdade de direito. E, desde jovem apresentou-se extremamente responsável  no cumprimento do seu dever.
“(...) Sentira-se naturalmente atraído pelas pessoas que ocupavam posição elevada na sociedade. Passou incólume por todos os entusiasmos da infância e da mocidade; mas se entregou à sensualidade, à vaidade e, nos últimos anos do curso, ao liberalismo, embora sempre dentro de determinados limites, que seu apurado instinto apontava como corretos.”
Formado, Ivan Ilitch foi nomeado para um cargo em comissão, requisitado pelo governador e graças ao empenho de seu pai.

Na província, executava disciplinadamente sua função e nas horas vagas, teve alguns casos amorosos passageiros. Porém, sempre se portando com grande afetação ao chefe e à esposa do chefe.
Em sociedade, porém, mostrava-se brincalhão e espirituoso, sempre bem-humorado, alinhado e bon enfant, como costumavam dizer o governador e sua senhora, junto aos quais era tido como pessoa da família.”
Passados cinco anos, foi promovido a juiz de instrução e foi obrigado mudar-se para outro governo e abandonar as boas relações que fizera.

Em seu novo cargo, Ivan Ilitch demonstrou-se competência e geral consideração. Sentia-se superior nessa nova posição, porém “jamais abusou de tal autoridade, muito pelo contrário, procurava atenuá-la, mas a consciência do poder e a possibilidade de abrandá-lo constituíam para ele o principal interesse e a absorvente atração do seu novo encargo.”
Dedicava-se totalmente aos processos de instrução e foi dos primeiros a aplicar os dispositivos do novo Código de 1864, impregnado de ideias liberais.

Na nova cidade, a vida de Ivan Ilitch também se organizou muito agradavelmente: a sociedade que se opunha discretamente ao governador era amável e coesa, seus vencimentos aumentaram, e se iniciou no uíste, mais uma fonte de prazer, pois era um jogador nato, sabendo enfrentar os riscos com bom humor, raciocinando com prontidão e esperteza as suas cartadas e, por tal, sempre bem feliz nos ganhos.”
Nesse período, conheceu sua futura esposa. Praskóvia Fiódorovna Michel, a moça mais atraente, inteligente e vivaz do círculo que frequentava.

Ivan Ilitch não tinha intenção de se casar, mas quando a moça se enamorou dele, formulou a si próprio a pergunta: “Por que, afinal, não me casar?”
Praskóvia Fiódorovna era um bom partido e embora, Ivan Ilitch poderia esperar por um casamento melhor, aquele, porém, já era bem satisfatório.
Não estava apaixonado, mas “o casamento lhe proporcionava particular satisfação e era visto como uma boa solução pelos seus amigos mais altamente colocados.”
Os preparativos do matrimônio e os primeiros dias da vida conjugal com os carinhos recíprocos, o mobiliário novo, a baixela nova e o enxoval nupcial, tudo decorreu a contento, e, quando a mulher engravidou, Ivan Ilitch chegou a pensar que o casamento não só não perturbava o ritmo de uma vida cômoda, divertida, sempre decente e aprovada pela sociedade, que ele considerava inerente à existência em geral, como até valorizava-o consideravelmente. Mas, aos primeiros meses da gravidez, algo novo, desagradável, penoso e inconveniente aconteceu de modo inesperado e sem jeito de ser evitado.”
Passado um tempo, Praskóvia Fiódorovna, aparentemente, sem motivo real, começou a demonstrar ciúmes e fazer-lhe exigências.

Ivan Ilitch, de início, ignorou a mudança de comportamento de sua esposa e continuou vivendo com despreocupada frivolidade.
Porém, a situação foi agravando, as discussões aumentando e Ivan Ilitch concluiu “que o convívio conjugal, pelo menos com a esposa que escolhera, nem sempre favorece os prazeres e as doçuras da existência, mas, pelo contrário, contribui para perturbar a harmonia e a dignidade dela, sendo, portanto, indispensável proteger-se contra tais infrações.”
Nascido o primeiro filho, o relacionamento do casal tornou-se mais insuportável.  
À proporção que a mulher se tornava mais irritadiça e exigente, ele ia transferindo o centro de gravidade da sua vida para o trabalho, querendo melhorá-lo cada dia e cada dia ficando mais ambicioso.”
Ivan Ilitch começou a se distanciar do seio familiar só mantendo as formalidades exteriores que a opinião pública exige. Enquanto isso, no trabalho era considerado um funcionário exemplar e acaba sendo nomeado promotor substituto.

A sensação de poder crescia-lhe a mente e levava-o cada vez mais entregar-se a vida pública.


Mesmo com a frivolidade de seu casamento nasceram mais filhos.

No espaço de sete anos, Ivan Ilitch foi transferido para outra província como promotor.
Em sua nova vida, os dissabores aumentaram: Praskóvia Fiódorovna não gostou da cidade; perderam dois filhos e embora, o cargo novo trouxesse melhor salário, os gastos também aumentaram.
Praskóvia Fiódorovria culpava o marido por todos os transtornos ocorridos:
Tal distanciamento poderia entristecer Ivan Ilitch, se não achasse que tudo deveria ser assim mesmo, e não somente o considerava normal (...). O seu objetivo consistia em se libertar cada vez mais das contrariedades domésticas e dar a elas uma aparência inofensiva e decente; e conseguiu-o passando cada vez menos tempo com os seus, e, quando era impraticável sair de casa, procurava resguardar a sua posição cercando-se de pessoas estranhas. O principal, porém, era haver a sua vida de funcionário.”

III –
Assim passou Ivan Ilitch dezessete anos de casado. Continuou revelando-se um funcionário exemplar e recusou várias remoções, almejando sempre um cargo que lhe desse maior visibilidade. Quando isso ocorreu, um amigo passou a sua frente e obteve o lugar. Ivan Ilitch inconformado desentendeu-se com o amigo e com os seus superiores, que, por hostilidade, novamente o preteriram nas designações seguintes.

As dívidas aumentaram, contraiu empréstimos, mas o que mais lhe causava sofrimento era que sua imagem fora esquecida na vida pública.
Naquele verão, no campo com a família, em casa do irmão da mulher, sentiu pela primeira vez tédio, melancolia e angústia.
Decidiu tomar providências. Foi a Petersburgo reivindicar que fossem castigados aqueles que não haviam reconhecido os seus méritos e tentar uma transferência para outro ministério que lhe desse prestígio e um salário de cinco mil rublos.
 Regressou ao campo alegre e bem disposto, como há muito tempo não lhe acontecia. Praskóvia Fiódorovna também se alegrou e entre os dois houve uma trégua. Ivan Ilitch contou-lhe como fora obsequiado em Petersburgo, como humilhara os seus antigos inimigos, que agora o adulavam e o invejavam, e como toda gente gostava dele na capital.”
O casal após a crise sofrida começou se harmonizar e passaram a arquitetar planos para a sua transferência e a instalação na nova cidade.  
Encontrou uma casa encantadora, exatamente como ele e a mulher sonharam. (...) Ivan Ilitch ocupou-se pessoalmente dos arranjos, escolheu o papel de parede, comprou os móveis que faltavam, de preferência antigos, que lhe pareciam tão distintos, e tudo ia atingindo aquele ideal que ambicionara.”
Esses afazeres o absorviam imensamente e o emprego tão prazeroso de outrora, perdia sua posição de interesse, embora muito gostasse da sua atividade profissional.

Durante as sessões do tribunal, frequentemente ficava com o pensamento longe, imaginando a casa pronta.
“De uma feita, ao trepar numa escadinha, a fim de mostrar ao operário, que não o estava compreendendo, como queria que o serviço fosse executado, dando um passo em falso, escorregou, mas, como era ágil e forte, conseguiu se aprumar e apenas bateu de lado na moldura da janela. Sentiu a pancada, mas depressa estava lépido.”
A casa de Ivan Ilitch era uma perfeita imitação, mas ele a achava absolutamente original. Ao buscar a família na estação, levava a felicidade dentro do peito, e ao trazê-la para a casa, sentiu um extraordinário prazer. Impressionado com a casa e apegado à decoração, Ivan Ilitch passa os seus dias pensando em como melhor ajustar os móveis nos diversos ambientes.

Naquela noite, quando Praskóvia Fiódorovna perguntou-lhe, entre outras coisas, como fora a queda que ele sofrera durante a reforma da casa. Ele, com desdém, representou como escorregara, como batera na moldura da janela e como assustara o operário.
Enquanto estavam ocupados com o arranjo da casa, o casal redescobriu a felicidade, mas, passada essa fase, sobrevieram o tédio e a sensação de vazio.
Ivan Ilitch consumia as manhãs no tribunal e, quando retornava para jantar, implicava com algum detalhe da casa. Perante esses inconvenientes, o protagonista passou acreditar que a felicidade imediata residia nos prazeres materiais, na relação do homem com os seus objetos e com suas relações sociais.
Ivan Ilitch possuía no mais alto grau a capacidade de isolar o lado funcional, não o confundindo jamais com a vida real.”

A alegria que Ivan Ilitch encontrava no trabalho era a alegria da ambição; as alegrias da vida social eram as da vaidade; mas as verdadeiras alegrias eram as proporcionadas pelo uíste. Confessava que, acontecesse o que acontecesse, fossem quais fossem os seus dissabores, a alegria que vinha como um raio de luz, tudo fazendo olvidar, era se sentar a uma mesa de uíste com quatro bons parceiros, seguros e silenciosos (com cinco é enfadonho, pois um tem de ficar de fora, mesmo que diga o contrário), jogar uma partida movimentada e inteligente (quando as cartas vêm boas), e depois cear com um bom copo de vinho. Após um jogo de uíste, especialmente quando ganhava um pouco (ganhar demais é deselegante), Ivan Ilitch ia para a cama com o melhor humor possível.”

IV –
Ivan Ilitch sentia, às vezes, certa sensação incomoda no lado esquerdo do ventre. Esse incômodo, embora não se manifestasse com dor, converteu-se num permanente peso, que gerava em Ivan Ilitch um contínuo mau humor e as brigas entre o casal reiniciaram.

Praskóvia Fiódorovna passou a desejar que ele morresse, mas, como a morte iria privá-la do salário do marido, mais crescia a sua raiva.
Durante uma discussão, Ivan Ilitch confessara que se sentia realmente irritadiço, mas que isso só podia atribuir a uma doença, ela lhe disse que, se estava doente, devia se tratar e exigiu que fosse consultar um médico famoso.
À indiferença do médico com o seu ar doutoral lembrava a sua prepotência diante dos tribunais. Ali onde se encontra um homem a ser cuidado (um homem que sofre e que necessita de cuidados), só se enxergava uma doença a ser eliminada exatamente como ele procedia em seus os processos.
Depois de vários interrogatórios e exames a preocupação de Ivan Ilitch era se a doença era grave, mas isso, não parecia importar-se ao médico que se preocupava tão somente em concluir o diagnóstico. Exatamente como Ivan Ilitch fizera mil vezes, e com o mesmo brilhantismo, em relação a um acusado.
Mas Ivan Ilitch, pela conclusão científica, inferiu que as coisas andavam mal para seu lado, embora isso fosse indiferente para o médico e talvez para todo mundo.”
Ivan Ilitch saiu vagarosamente do consultório, tinha a impressão de que as palavras do médico escondiam a gravidade do seu estado.

Chegando a casa, tenta desabafar com a esposa, mas ela não lhe dá atenção.
Ivan Ilitch continuou a obedecer fielmente às prescrições do médico e, nos primeiros tempos, encontrou consolo nisso. A dor não diminuía, mas Ivan Ilitch fazia o possível para se persuadir de que ele estava melhorando.
Nessa época, o protagonista adquiriu grande instabilidade emocional, qualquer inconveniente, levava-o, ao desespero.
No mês seguinte, Ivan Ilitch foi consultar outra celebridade. A consulta só lhe fez crescer as dúvidas e o medo.
Depois, visitou um clínico excelente, um médico homeopata e até buscou cura milagrosa. Entretanto, a dor aumentava, o gosto na boca ficava mais esquisito e as forças lhe fugiam.
Ivan Ilitch vivia irritadiço com as pessoas, pois acreditava que elas não se importavam com seu estado de saúde, além de implicarem com seu silêncio e distanciamento.
Praskóvia Fiódorovna declarava a todos e ao próprio Ivan Ilitch que ele era o único culpado da moléstia e que esta não passava de mais um dos inumeráveis problemas que causava a ela.
No tribunal, Ivan Ilitch também notava, ou julgava notar, uma estranha atitude em relação à sua pessoa: ora tinha a impressão de que o olhavam como alguém que, em breve, deixará uma vaga; ora os colegas caçoavam afetuosamente da sua hipocondria, como se a pavorosa, atroz e incrível coisa que se desenvolvia dentro dele, sugando-o sem tréguas e arrastando-o irresistivelmente não sabia para onde, não passasse de um divertido tema para graçolas.”

E sozinho tinha de viver assim à beira do abismo, sem ninguém que o compreendesse e tivesse pena dele.”

Afundando num sofrimento desesperado, Ivan Ilitch se dá conta da insignificância de sua vida e da fragilidade de suas conquistas.


V-
Dias antes do Ano Novo, Ivan Ilitch dirigiu-se ao seu quarto e ficou se observando no espelho, depois, em um retrato que tirara com a mulher e comparou-o com o que o espelho lhe revelava.
Relembrou tudo quanto os médicos lhe haviam dito sobre o deslocamento renal. E, num esforço de imaginação, procurou agarrar o órgão rebelde, prendê-lo, fixá-lo.

De tão pouco se precisava para consegui-lo”, pensava.
Tentou esquecer-se do problema.

Lembrou-se do remédio, correu a torná-lo e deitou-se depois de costas, à espera do efeito, que era atenuar a dor.
Basta que eu o tome com regularidade e não faça imprudências. Já estou me sentindo melhor, muito melhor.”
”De repente, sentiu ânsias de vômito. “Nada! Nada! Trata-se é da vida e... da morte.

Sim, a vida era uma coisa minha e agora ela se esvai, se esvai, sem que possa impedir.
É isso, só isso? Por que me iludir? Não é patente a todos, menos a mim, que eu estou morrendo e que é apenas uma questão de semanas, de dias, talvez agora mesmo? Havia luz na minha frente, mas agora só há trevas. Eu estava no mundo e vou abandoná-lo! Para onde irei? (...) Eu deixarei de existir, mas o que haverá depois? Nada. Então, onde estarei quando não mais existir? Será realmente a morte? Não, não quero morrer!”
(...)
“Por quê? Tanto faz, e perscrutava a escuridão com os olhos arregalados. “A morte. Sim, a morte. E nenhum deles sabe nem quer saber e não tem dó de mim. Divertem-se!” (Atravessando a porta fechada, chegava á voz distante de uma canção e do seu acompanhamento) Para eles tanto faz, mas também irão morrer. Bestalhões! Primeiro vou eu, eles depois, mas passarão pelo mesmo que passei. E, agora, estão alegres... Animais! A raiva sufocou-o, um peso imenso comprimia seu peito. Não é possível que todos os homens estivessem condenados a sofrer um medo assim.”



Nessa noite, quando Praskóvia Fiódorovna dirigiu-se ao seu quarto e beijou-lhe na testa, ele a odiou com todas as forças da alma e refreou o ímpeto de empurrá-la.

VI –
Ivan Ilitch sabia que estava morrendo, mas não aceitava a ideia, como não a compreendia mesmo — uma absoluta incapacidade de compreendê-la.

Lembrou-se do exemplo de silogismo que aprendera no compêndio de lógica de Kiesewetter:
Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal” — sempre lhe parecera exato em relação a Caio, jamais em relação a ele. Que Caio, o homem abstrato, fosse mortal, era perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era um ser completo e absolutamente distinto de todos os demais. (...) “Caio é de fato mortal e, portanto, é justo que morra, mas quanto a mim, o pequeno Vánia, Ivan Ilitch, com todos os meus sentimentos e minhas ideias, o caso é inteiramente Outro. É impossível que eu tenha de morrer. Seria demasiado horrível.”
Dessa maneira, tomar consciência da sua própria finitude tornou-se uma experiência reveladora a Ivan Ilitch. Procurava centrar-se em ideias positivas e decidiu voltar aos tribunais, lugar que sempre lhe proporcionou prazer. Mas, de repente, no meio de um julgamento, surgia á dor do lado, indiferente ao processo em curso e recomeçava a sua teimosa ação.

Ás vezes entrava na sala de visitas que ele próprio decorara e que sofrera a queda e fiscalizava se tudo estava em perfeita ordem. Acudia-lhe a ideia de dar outro arranjo à sala, mas a mulher ou a filha se antecipava; não concordavam e achavam discutindo.



Certo dia, quando estava sozinho remexendo alguns objetos, a mulher repreendeu-o:
“Deixe isso para os criados. Você pode se machucar novamente”.
E, Ivan Ilitch se questionava:
“Será que, perto daquela cortina, eu perdi realmente a vida como num assalto a uma fortaleza? Será mesmo? Como é terrível e estúpido! Não pode ser. Não pode ser, mas é.”

VII -
No terceiro mês da doença, todas as pessoas que conviviam com Ivan Ilitch só se preocupavam em saber quando abriria uma vaga no tribunal; quando descansariam os vivos da angústia que causava a sua presença; e quando ele mesmo iria se livrar dos seus padecimentos.



Ivan Ilitch passou depender da ajuda de pessoas para sua higiene, locomoção, medicamentos e necessidades fisiológicas e encontra em Guerássim, um humilde camponês, a revelação da benevolência humana.

“Um dia, quando se levantou do vaso, não teve forças para suspender as calças, deixou-se cair numa poltrona e ficou horrorizado olhando para as coxas nuas, bambas, descarnadas, cujos músculos desenhavam-se nitidamente sob a pele. Foi nesse instante que entrou Guerássim, num passo ligeiro e firme, com suas grossas botas, que espalhavam ao redor um cheiro bom de alcatrão e uma frescura de inverno. Trazia um avental listrado, uma camisa muito branca, de algodão, e as mangas arregaçadas mostravam um par de braços jovens e sólidos. Aproximou-se da cadeira furada na qual se encaixava o vaso, sem olhar para o amo enfermo, a fim de não ofendê-lo com a alegria de viver que ostentava no rosto.”

O que mais incomodava Ivan Ilitch era a dissimulação de todos sobre o seu estado de saúde. Muitas vezes teve vontade de desmascará-los. Acreditava que ninguém tinha piedade dele, porque ninguém tentava sequer compreender a sua situação. Somente Guerássim compreendia-o e compadecia-se.


VIII -
Numa manhã Ivan Ilitch pede ao criado que lhe passe o seu relógio. Eram oito e meia.

Ivan Ilitch gemia, não tanto da dor, por mais insuportável que fosse, mas de aflição.
“E sempre a mesma coisa, a mesma, por dias e noites intermináveis. Se ao menos viesse mais depressa... Mais depressa o quê? A morte, a treva? Não, não! Tudo, menos a morte!”

Apesar de suas dores físicas serem terríveis, doía ainda mais a sua consciência moral. Ivan Ilitch desesperado tenta encontrar finalidade em sua vida para ter sentido de lutar contra a morte.
Depois de duas horas, chega o médico.

Ivan Ilitch olha o médico, como a perguntar:
Será crível que você não tenha vergonha de mentir?” Mas o médico não quer saber de tal pergunta e Ivan Ilitch se queixa:
— Tão mal como ontem. A dor não cessa. Se fosse possível fazer alguma coisa para atenuá-la...
Nesse momento, entra no quarto sua esposa. Ivan Ilitch odeia-a com todas as fibras do coração. E o seu contato provoca nele um assomo de raiva que lhe aumenta o sofrimento.
Ela contou que Ivan Ilirch obrigava Guerássim a ficar mantendo-lhe as pernas suspensas. O médico teve um sorriso de afável superioridade, que parecia traduzir: “Que vamos fazer! Os doentes têm a mania de inventar uma infinidade de asneiras. Mas devemos desculpá-los”.
Às onze e meia chegou o famoso especialista depois de várias perguntas, despediu-se com ar grave, mas não desencorajador. Porém, pouco durou a confiança inspirada pelas palavras do especialista, pois, logo em seguida, Ivan Ilitch começou a gemer. Aplicaram-lhe uma injeção de morfina e ele tombou num estado de torpor.
Mais tarde, Praskóvia reapareceu feliz por ter feito uma reserva num camarote do teatro. Dizia seria muito mais agradável ficar ao lado dele; e que não se esquecesse de seguir, na sua ausência, as prescrições do médico, mas que tinha de acompanhar Helena, Lisanka e Pietrichtchov (o juiz de instrução, pretendente da filha) e que não ficaria bonito deixá-los ir sozinhos.
Os filhos vieram se despedir e quando Fiódor Pietrichtchov entrou “era atroz ver agora o olhar dele, assustado e compadecido. Parecia a Ivan Ilitch que, além de Guerássim, o menino era a única pessoa que o compreendia e tinha pena dele.”
 

IX -
Ivan Ilitch “chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade dos homens, a crueldade de Deus, que o abandonava.”

“Por que me reduziste a isto? Por que me trouxeste ao mundo? Com que fim me martirizas tanto?”
Não esperava resposta, e mais chorava porque não havia nem podia haver resposta. A dor fez-se mais aguda, mas não se mexeu, nem chamou ninguém.
Ouvia uma voz dentro dele:
“Está bem, continua! “O que é que tu queres?”, foi a primeira coisa que ouviu, claramente. “O que é que tu queres? O que é que tu queres?”, repetiu. E respondeu: “O que eu quero é viver. Viver sem sofrer.”



E novamente prestou atenção e tão concentradamente que nem a dor o desviava.
“Viver? Como?”, perguntou a voz interior. “Ora, viver como sempre vivi. Bem, agradavelmente”, respondeu. “Como viveste antes, bem e agradavelmente?”, tornou a voz.
E ele começou a repassar na imaginação os melhores momentos da sua vida. Mas — coisa estranha! — tais momentos não lhe pareciam agora tão agradáveis como cuidava que fossem, salvo as primeiras recordações da infância.
Na meninice, sim, havia certas coisas verdadeiramente prazenteiras, que gostaria que se repetissem se pudesse viver outra vez. Mas aquele menino estava morto, era como a reminiscência de uma outra pessoa.
Quando entrou a repassar o período que gerara o atual Ivan Ilitch, tudo o que lhe parecera ser alegria se desmoronava ante seus olhos, reduzindo-se a algo desprezível e vil.
E quanto mais longe da infância e mais perto do presente, tanto mais as alegrias que vivera lhe pareciam insignificantes e vazias. A começar pela faculdade de direito. Nela conhecera alguns momentos realmente bons: o contentamento, a amizade, as esperanças. Nos últimos anos, porém, tais momentos já se tornavam raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego, junto ao governador, gozara alguns belos momentos: amara uma mulher. Em seguida tudo se embrulhou e bem poucas eram as coisas boas. Para adiante, ainda menos. E, quanto mais avançava, mais escassas se faziam elas. Veio o casamento, um mero acidente e, com ele, a desilusão, o mau hálito da esposa, a sensualidade e a hipocrisia. E a monótona vida burocrática, as aperturas de dinheiro, e assim um ano, dois, dez, vinte, perfeitamente idênticos. E, à medida que a existência corria, tornava-se mais oca, mais tola. “É como se eu estivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isso. Perante a opinião pública, eu subia, mas, na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim — a sepultura me espera.
Mas o que significa isso, afinal? Por quê? Impossível! A vida não pode ser assim tão sem sentido e nojenta! Mas, se ela foi tão nojenta e sem sentido, por que devo eu morrer e morrer sofrendo? Alguma coisa, positivamente, está errada!”
Talvez eu não tenha vivido como deveria”, acudiu-lhe de súbito. “Mas de que sorte, se eu sempre procedi como era preciso?” — e imediatamente afastou a única hipótese possível para o enigma da vida e da morte.

“E o que queres agora? Viver? Viver de que maneira? Viver como viveste no tribunal, quando o oficial de justiça anunciava: — Está aberta a sessão!”... “Está aberta a sessão!”, repetiu. “O julgamento vai começar. Mas eu não sou culpado!”, exclamou, indignado. “Por quê?”

E parou de chorar. Com o rosto voltado para a parede, pôs-se a martelar a mesma coisa: Por quê? Para que tal horror? Mas, por mais que repisasse a questão, não encontrava solução. E quando lhe vinha á ideia de que não vivera como deveria, o que amiudamente acontecia, lembrava-se logo da correção da sua vida e repelia o insólito pensamento.
Mais uma quinzena se escoou. Ivan Ilitch já não deixava o divã. Não queria ficar na cama. E quase todo o tempo, com o rosto voltado para a parede, sofria solitário os mesmos insolúveis tormentos, martirizava-se com o mesmo insolúvel problema:
“O que é isso? Será, realmente, a morte?” E a voz interior lhe respondia: “Sim, é a morte”. “Mas para que tanto sofrimento?” E a voz tornava a responder: “Para nada. Além disso não há nada”.
Desde que adoeceu, a vida de Ivan Ilitch dividira-se em dois estados de espírito, opostos e alternados: ora desespero e expectativa de uma morte absurda e atroz, da qual nada o salvaria, ora esperança e acurada observação dos seus órgãos, que se recusavam a funcionar regularmente.
Recordando o que fora á três meses com o que era agora, vinha a certeza de que se afastava de qualquer possibilidade de salvação e vivia somente das recordações do passado. Diante dele, um após outro, surgiam os acontecimentos antigos.
“Talvez houvesse uma explicação, se pudesse admitir que eu não vivi como deveria. Mas é absolutamente inadmissível”, e se lembrava da honestidade, da correção, da decência de sua vida.”
Duas semanas o estado de saúde de Ivan Ilitch agravou-se.
“Quando a esposa adentrou-se em seu quarto ele voltou-se e disse:
— Pelo amor de Jesus Cristo, deixe-me morrer em paz!
Nesse momento, entrou sua filha e como ela indagasse como ele ia, respondeu com secura que bem depressa todos ficariam livres dele.
— Que culpa é a nossa? — disse Lisa à mãe. — Não fomos nós que inventamos a doença! Tenho pena de papai, mas por que razão ele nos atormenta assim?”
O médico chegou, comunicou a Praskóvia Fiódorovna que as coisas iam mal e que só lhe restava o recurso do ópio para abrandar as dores, que seriam tremendas.
Resultavam-lhe as recordações, o bom amigo Guerássim e o questionamento se os seus deveres profissionais, sua vida regrada, a ordem familiar e todos os interesses mundanos e oficiais, não passassem de grandes mentiras.
“Mas, se assim é, estou eu saindo da vida com a plena consciência de ter destruído tudo o que me foi concedido e, se a perda é irreparável, que irei fazer?”, pensou.
No dia seguinte, Ivan Ilitch expulsou todos do quarto e entrou a se debater no divã.
Praskóvia Fiódorovna chamou o padre. Após a comunhão, mostrou-se aliviado por uns instantes, reacendeu-se nele a pequena chama da esperança e começou a gritar intimamente: “Viver! Eu quero viver!”

X -
A partir daquele momento, começaram os gritos, que se prolongaram por três dias.

“Debatia-se como um condenado à morte nas mãos do carrasco, sabendo que não poderia escapar. E a cada segundo percebia que, não obstante seus desesperados esforços, mais se aproximava daquilo que o atemorizava. Sentiu que a sua agonia era devida à penetração no saco negro e ainda mais pelo fato de não poder escorregar logo para dentro dele. E o que o impedia de entrar era a convicção de que a sua existência tinha sido boa. E tal justificativa o retinha, impedia de ir para a frente, e o torturava mais que tudo.
Súbito, uma força desconhecida vibrou no lado do seu peito um violento golpe, que lhe cortou a respiração, e ele entrou no saco e, lá bem no fundo, viu brilhar uma luz. Experimentou, então, o que antes já experimentara num trem — quando pensava que estava andando para a frente, e o trem recuava, bruscamente verificara a verdadeira direção da marcha.
Poucas horas antes de Ivan Ilitch falecer, seu filho entrou no quarto sem fazer ruído e acercou-se do leito.
O moribundo não parava de berrar desesperadamente agitando os braços.
Sua mão encontrou a cabeça do filho e o menino agarrou-a, apertou-a contra os lábios e desatou a chorar. Justamente aí, Ivan Ilitch caía no fundo do saco, divisava a luz e percebia que a sua vida não fora o que deveria ter sido, mas ainda podia ser reparada. Perguntou a si mesmo:
“O que é aquilo?” E ficou silencioso, atento. Sentiu, então, que alguém lhe beijava a mão. Abriu os olhos, viu o filho e teve pena dele. A mulher se aproximou. Olhou-a. Ela também o olhava, com a boca aberta, numa expressão de desespero, as lágrimas escorrendo pelo nariz e pelas faces. Teve pena dela também.
“Sim, estou a atormentá-los”, pensou. “Eles lamentarão, mas estarão melhor quando eu tiver morrido.” Quis dizer o que sentia, porém não teve força. “Aliás, para que falar? Devo é agir”, pensou. Com um olhar à mulher, indicou o filho e falou: Leve-o daqui... Tenho pena dele... E de você também... Tentou acrescentar: “Perdoe-me”, mas disse: — Passe bem — e, não tendo mais força para corrigir o lapso, esboçou um gesto com a mão, sabendo que Aquele a quem se entregava devia compreendê-lo.
E, de repente, percebeu com nitidez que aquilo que o atormentara e o oprimia se ia dissipando, escoando para fora do seu corpo por todos os lados ao mesmo tempo.
“Ivan Ilitch tem piedade deles, não deve mais fazê-los sofrer. É preciso libertá-los e libertar ele próprio de tais tormentos. Como é bom, como é simples”, pensou. “E a dor?”, perguntou em seu íntimo. “Que fim levou? Onde estás, minha dor?” E prestou atenção. “Ah, ei-la! E daí? É deixá-la doer. E a morte? Onde está?” Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. “Onde ela está? Que morte?” Não tinha mais medo, porque também a Morte desaparecera de sua frente. Em lugar dela, via luz. “Então é isso!”, exclamou de repente em voz alta. “Que alegria!”
Foi tudo isso obra de um instante, e a significação desse instante não se modificou mais. Para os que o cercavam, porém, a sua agonia ainda durou duas horas. Seu peito estertorava, o corpo, esquelético, estremecia. Pouco a pouco os estertores e tremores foram rareando.
— Acabou! — disse alguém perto dele.
Ele ouviu a palavra e repetiu-a na alma. “Acabou a morte. A Morte já não mais existe!”, ainda pensou.
Aspirou profundamente, deteve-se a meio, inteiriçou-se e morreu.
A morte de Ivan Ilitch só se concretizou porque ele concluiu que sua morte era mais benéfica que sua vida. O momento de “iluminação” que vê no fundo do saco escuro (da banalidade de sua vida) se dá ao ver o sofrimento de seu filho mais novo e de sua esposa.
Ao pronunciar que "A morte se foi" refere-se ao fim da reflexão sobre sua existência inútil que, nessa obra é representava pela morte. Então, Ivan Ilitch está pronto para aceitá-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

“A Morte de Ivan Ilitch” representa o período existencialista de Tolstói e apresenta uma nítida correspondência entre seu autor e sua personagem Ivan Ilitch.

Escrita na fase de maturidade do autor, quando Tolstói abdicou de todo apego materialista e buscou espelhar-se no prazer da vida bucólica dos camponeses, rejeitando seus vícios de adolescência.
A vida da personagem Ivan Ilitch trilhou por caminho similar. Depois de escalar riquezas, fama e poder vê-se diante da morte, onde faz um levantamento sobre sua vida, desde a infância até seu momento derradeiro, concluindo que tudo o que viveu foi ilusão e falsidades. Enquanto buscou consideração em seu trabalho, encontrou desvalorização e esquecimento e, ao tentar conquistar prestígio no meio que frequentava, só encontrou jogo de interesses. Inclusive àqueles que ele julgava ser querido, tratou-o com descaso e desamor.
Ivan Ilitch perante esse saldo negativo, conclui que sua vida fora desprovida de valores dignos e, dessa forma, a dificuldade que agora sente para lidar com a morte, está relacionada diretamente com a incapacidade que teve para lidar com a vida.
A exposição da superficialidade da existência humana; a reavaliação de comportamentos e escolhas; a degradação em que um homem pode chegar; o desmascaramento social; a impotência humana perante o destino de cada um são temas caríssimos conquistados por Tolstói nesta obra-prima.

fonte: http://valiteratura.blogspot.com.br/2010/12/morte-de-ivan-ilitch-leon-tolstoi.html

terça-feira, 17 de abril de 2012

Menino de Engenho, de José Lins do Rego


Essa obra de José Lins do Rego, nasceu da intenção de escrever a biografia de seu avô materno um patriarca do Nordeste. Mas o romancista soterrou o biógrafo, e a narrativa recaiu sobre a personagem Carlinhos, que, mesmo fictícia, vivencia cenas da infância do autor no mundo do canavial. Estruturada em 40 capítulos, relativamente curtos, é um dos ícones da literatura brasileira. Eis o motivo central dessa edição.


Análise da obra

Narrado em 1ª pessoa por Carlos Melo (personagem), que aponta suas tensões sociais envolvidas em um ambiente de tristeza e decadência, é o primeiro livro do ciclo da cana-de-açúcar. Publicado em 1932, Menino do Engenho é a estréia em romance de José Lins do Rego e já traz os valores que o consagraram na Literatura Brasileira.


Durante a década de 30 do século XX, virou moda uma produção que se preocupava em apresentar a realidade nordestina e os seus problemas, numa linguagem nova, introduzida pelos participantes da Semana de Arte Moderna de 22. José Lins do Rego seria o melhor representante dessa vertente, se certas qualidades suas não atenuassem fortemente o tom crítico esperado na época.

A intenção do autor ao elaborar a obra Menino de Engenho, era escrever a biografia de seu avô, o coronel José Paulino, que considerava uma figura das mais representativas da realidade patriarcal nordestina. Seria também a autobiografia das cenas de sua infância, que ainda estavam marcadas em sua mente. Mas o que se constata é que o biógrafo foi superado pela imaginação criadora do romancista: a realidade bruta é recriada através da criatividade do gênero nordestino.

É a história típica, natural e sem retoques de uma criança, Carlos, órfão de pai e mãe, que, aos oito anos de idade, vem viver com o avô, o maior proprietário de terras da região - coronel José Paulino.

Carlos é criado sem a repressão familiar e mesmo sem os cuidados e atenções que lhe seriam necessários diante das experiências da vida. Vê o mundo, aprende o bem e o mal e chega a uma provável precocidade acerca dos hábitos que lhe eram "proibidos", mas inevitáveis de serem adquiridos.

Pela ausência de orientação, toma-se viciado, corrompido, aos 12 anos de idade. Além dos problemas íntimos do menino, desorientado para a vida e para o sexo, temos a análise do mundo em que vivia, visto por Carlos, que é o narrador-personagem.

Carlos vê o avô como um verdadeiro Deus, uma figura de grandiosidade inatingível. O engenho é o mundo, um império, de onde o coronel José Paulino dirige e guia os destinos de todos. E, em conseqüência, Carlos considera-se, e é considerado pelos servos, escravos e agregados, o “coronelzinho” cujas vontades têm que ser rigorosamente realizadas.

Descreve com emoção a vida dos escravos, a senzala, o sofrimento e os castigos do “tronco”. Uma cena a ser destacada é a “enchente” do rio, vista com admiração e susto por Carlos, constituindo uma descrição de grandiosidade bíblica.

Também vêm à tona as superstições e crendices comuns entre as camadas populares, como a do “lobisomem”.

O romance tem como cenário a região limítrofe entre Pernambuco e Paraíba, o que pode ser deduzido pelas descrições da paisagem e da vida dos engenhos de açúcar.

Os bandidos e cangaceiros, comuns na região, são mostrados como única forma de reação social de um povo oprimido.





Personagens

Carlinhos - É o narrador do romance. Órfão aos quatro anos, tornou-se um menino melancólico, solitário e bastante introspectivo. De sexualidade exacerbada, mantém, aos doze anos, a sua primeira relação sexual, contraindo “doença-do-mundo” - a popular gonorréia.

Coronel Zé Paulino - É o todo-poderoso senhor de engenho - o patriarca absoluto da região. Era uma espécie de prefeito - administrava pessoalmente, dando ordens e fazendo a justiça que ditava a sua consciência de homem bom e generoso.

Tia Maria - Irmã da mãe de Carlinhos (Clarisse), torna-se para este a sua segunda mãe. Querida e estimada por todos pela sua bondade e simpatia, era chamada carinhosamente de Maria Menina.

Velha Totonha - É uma figura admirável e fabulosa. Representa bem o folclore ambulante dos contadores de histórias.

Antônio Silvino - Representa bem o cangaceiro sempre temido e respeitado pelo povo, em virtude de seu senso de justiça, tirando dos ricos e protegendo os fracos. Compõe bem a paisagem nordestina.

Tio Juca - Não chega a representar um papel de destaque no romance. Por ser filho do senhor de engenho, fazia e desfazia (sobretudo sexo com as mulatas), mas não era punido. De certa forma, representa o papel de pai de Carlinhos.

Lula de Holanda - Embora ocupe pouco espaço, o Coronel Lula é uma personagem relevante, pois representa o senhor de engenho decadente que teima em manter a fachada aristocrática.

Sinhazinha - Embora não fosse a dona da casa (era cunhada do Coronel), mandava e desmandava no governo da casa-grande. Era odiada por todos por seu rigor e carranquice, e pode ser identificada com as madrastas ruins dos contos populares.

Negras - Restos do tempo de escravidão, destacam-se a negra Generosa, dona da cozinha, a vovó Galdina, que vivia entrevada numa cama.



Enredo

O romance, narrado em primeira pessoa, apresenta uma estrutura memorialista, em quarenta capítulos. O tempo flui cronologicamente: o narrador (Carlinhos) tem quatro anos quando a narrativa começa e doze, quando termina o livro.

A mãe do narrador (Clarisse) está morta, assassinada pelo pai no quarto de dormir. “Por quê?” Ninguém sabia compreender”. O menino, apesar de pequeno, sente o impacto da morte da mãe e a solidão que esta lhe deixa. “Então comecei a chorar baixinho para os travesseiros, um choro abafado de quem tivesse medo de chorar”.

O pai então é levado para o presídio. Era uma pessoa nervosa, um temperamento excitado, “para quem a vida só tivera o seu lado amargo”. Num momento de desequilíbrio, matara a esposa com quem sempre discutia. O narrador o recorda com saudade e ternura. O narrador lembra também, com ternura e carinho, a mãe tão precocemente ceifada pelo destino. Recorda as suas carícias, a sua bondade, a sua brandura. “Os criados amavam-na”. Era filha de senhor de engenho, mas “falava para todos com um tom de voz de quem pedisse um favor”.

Um mundo novo espera o narrador. “Três dias depois da tragédia, levaram-me para o engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele”. Conduzido pelo tio Juca, que viera buscá-lo, encanta-se com tudo que vê: tudo é novidade naquele mundo novo. A imagem que sempre fizera do engenho era a “de um conto de fadas, de um reino fabuloso”. À primeira vista, a realidade ia comprovando fantasia.

No engenho, é levado para receber a bênção do avô e da preta velha Tia Galdina e ganha uma nova mãe – a tia Maria. No dia seguinte, com o mergulho nas águas frias do poço, o narrador está batizado para a nova vida que vai começar. Aos poucos, o narrador vai penetrando no mundo novo do engenho. Levam-no para ver o engenho e ele fica deslumbrado com o seu mecanismo. Tio Juca vai-lhe explicando todos os detalhes.

Os primos chegam para passar as férias na fazenda e o narrador se solta de vez – “já estava senhor de minha vida nova”; passeios, banhos proibidos, brincadeiras, sol o dia todo e as recomendações de Tia Maria. Ao lado da fada boa e terna que era tia Maria, vivia no engenho uma velha de nome Sinhazinha que “tomava conta da casa do meu avô com um despotismo sem entranhas”. “Esta velha seria o tormento da minha meninice”. Todos a temiam e fugiam dela. “As negras odiavam-na. Os meus primos corriam dela como de um castigo”.

A prima Lili – “magrinha e branca”; “parecia mais de cera, de tão pálida. Tinha a minha idade e uns olhos azuis e uns cabelos louros até o pescoço”. “Na verdade a prima Lili parecia mais um anjo do que gente”. E tal sucedeu com a pobrezinha: um dia, amanheceu vomitando preto e morreu, para desconsolo do narrador, que se afeiçoara muito a ela. Com a morte de Lili, o desvelo e os cuidados de tia Maria com o narrador se acentuam. Era tempo das primeiras letras, mas nada entra na sua cabeça, pois só pensava na liberdade nas patuscadas no mundo lá fora. Ainda recorda do flagelo das secas: as aves de arribação.

O cangaceiro Antônio Silvino faz uma visita de cortesia ao engenho Santa Rosa. Há uma grande expectativa sobretudo por parte dos meninos. O famoso cangaceiro chega e é recebido pelo senhor de engenho. A partir, entretanto, o narrador demonstra o seu desencanto: “Para mim tinha perdido um bocado de prestígio. Eu fazia outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura de herói”. É que o mito se tornou real, descendo do seu pedestal. Organiza-se um passeio ao sítio do Seu Lucino, nas proximidades do engenho. No caminho, gente que voltava da feira com seus quilos de carne. A caravana chega ao sítio e são recebidos com a boa hospitalidade sertaneja. À tardinha, voltam todos para casa, quando os moleques começam a falar de mal-assombrados.

O narrador leva a sua primeira surra pelas mãos da velha Sinhazinha. Ficou desolado o dia todo, e à noite, foi dormir pensando na vingança: “Queria vê-la despedaçada entre dois cavalos como a madrasta da História de Trancoso.”

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A cheia do Paraíba chegou devastadora, matando gente e animais, destruindo plantações e casas. A gente do engenho refugia-se na casa do velho Amâncio, fugido da fúria das águas. A enchente tinha sido arrasadora e as águas chegaram a penetrar na casa grande. Os prejuízos eram enormes .

As primeiras letras, enfim, vieram com a bela Judite, mulher do Dr. Figueiredo. Com ela, começam a surgir os primeiros lampejos do amor. “Sonhava com ela de noite, e não gostava dos domingos porque ia ficar longe de seus beijos e abraços”.

Depois mandaram-no para uma escola onde tinha todas as regalias, em meio da miséria geral, por ser o “neto do Coronel Zé Paulino”. Paralelamente às letras, começa a iniciação sexual, apesar da pouca idade. Com Zé Guedes, moleque que o levava e buscava na escola, aprendeu “muita coisa ruim”. Com o primo Silvino e outros andou fazendo muita “porcaria” com as cabras e vacas da fazenda.

Nas visitas e incertas do Coronel José Paulino à sua propriedade, está patente todo o seu poder de senhor de engenho, de patriarca absoluto daquelas terras.

A religião no engenho se restringia aos limites do quarto de santos com suas estampas e imagens. O Coronel Zé Paulino não era um devoto, e mesmo a tia Maria, sempre preocupada com rezas e orações, não era de freqüentar igreja e comungar. Na semana santa, especialmente na Sexta-Feira da Paixão, havia um recolhimento natural em obediência à tradição.

O cabra Chico Pereira está amarrado ao tronco para receber a punição pelo malfeito: A vítima, a mulata Maria Pia, jogara-lhe a culpa, e o senhor patriarcal, inflexível, ordenara que o moleque assumisse. Convidada a jurar sobre o livro sagrado, a mulata confessa.

Uma traquinagem de criança e um ato de heroísmo – eis a síntese deste capítulo. O primo Silvino, querendo provocar um desastre, coloca uma pedra enorme na linha de trem para vê-lo tombar. O narrador imagina a cena terrível com gente morta e ferida e, num gesto heróico, atira-se diante do trem e rola a pedra dos trilhos.

Pelo engenho, corria o boato de que um lobisomem estava aparecendo na Mata do Rolo. “Diziam que ele comia fígado de menino e que tomava banho com sangue de criança de peito”. Seria José Cutia? Além do lobisomem, outros duendes da superstição popular povoaram a infância do narrador: o zumbi, as caiporas, as burras-de-padre etc.

A velha Totonha com suas histórias fabulosas encantam o narrador. Quando passava pelo engenho era um festa. Suas histórias, sempre de reis e rainhas comoviam. Ela sabia como ninguém contar uma história. Mas “o que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritivos (...) Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba Azul era um senhor de engenho de Pernambuco.

“A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pregada à casa-grande, com suas negras parindo, as boas amas-de-leite e os bons cabra do eito e as boas cabras do cifo”. Apesar de terem sido aforriados, muitos ficaram no engenho. Aí estava a velha Galdina, doente e alquebrada, Generosa, que mandava na cozinha da casa-grande e a demoníaca Maria Gorda.

Tal como um monarca, o senhor de engenho, sentado no seu trono, ia ouvindo as queixas e pedidos dos seus súditos.

Mais um passeio. Agora é ao engenho do Oiteiro. Saem cedo e vão de carro-de-boi. Destaca-se aqui a habilidade do carreiro Miguel Targino na condução dos bois. Por onde passa a comitiva é recebida com festejos e cortesia. Destaca-se em cada lugar a hospitalidade e gentileza do povo simples e humilde. Tia Maria, a senhora do Santa Rosa, retribui a tudo com simpatia.

A morte trágica da mãe o marcou profundamente e, apesar das brincadeiras e traquinagens com os moleques, era um menino melancólico que buscava sempre a solidão.

Contadores de histórias — os mestres de ofício dos quais o narrador se tornou amigo. É através deles que ele fica conhecendo o Capitão Quincas Vieira, irmão mais novo do Coronel Zé Paulino, que morreu brigando.

Um antigo sonho do narrador se realiza: ganhou um lindo Carneiro para montaria. Chamava-se Jasmim. Entretinha-se com ele boa parte do tempo e, com isso, os canários ganharam a liberdade. Nos seus passeios com Jasmim, na solidão do entardecer, a melancolia de sempre, “arrastava-me aos pensamentos de melancólico”.

Da história triste do Santa Fé e seu senhor decadente - O Coronel Lula de Holanda, surgiu um dos grandes romances de José Lins: Fogo Morto. O Santa Fé é um engenho em decadência, símbolo de um mundo que está prestes a ruir. Em vão, o Coronel tenta manter a fachada com seu cabriolé. Um pouco mais e o Santa Fé estará de fogo morto.

A doença tira a liberdade do narrador por um bom espaço de tempo. Era o puxado, “uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peito chiando, como se houvesse pintos sofrendo dentro de mim”. Amargou, por causa do puxado, muitos dias de solidão e de cama.

O narrador penetra no quarto do tio Juca e na sua intimidade: “uma coleção de mulheres fluas, de postais em todas as posições da obscenidade”.

A descrição de um incêndio de largas proporções faz brotar de todos os cantos a solidariedade do sertanejo. Mais uma vez sobressai aqui a figura do avô, com sua autoridade e com seus gritos de ordem para conter o fogo que ia devastando o canavial.

Um exército de homens miseráveis e esfarrapados trabalham no eito: “estavam na limpa do partido da várzea”. “Às vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos cabras”. Muitos desfilam pelo capítulo — uns com suas virtudes, outros com seus defeitos. Em todos, um ponto comum: a vida de servidão, a miséria, a degradação.

Após a ceia, o Coronel Zé Paulino gostava de contar seus casos de escravos a senhores de engenho, antes e depois da abolição. As ruindades do Major Ursulino com os negros sempre se destacam nas suas histórias. Gostava também de relembrar a visita de Dom Pedro ao Pilar e tinha grande orgulho de sua casta branca e nobre.

O amor desperta forte no coração do narrador que possuía então oito anos. Era Maria Clara, uma prima civilizada do Recife, que estava ali com a família para passar férias. A paixão é violenta: os passeios, o beijo, as lágrimas da partida.

A loucura solitária e miserável do pai remete o narrador a doentes (como o Cabeção e o doido) e a maus presságios que o deprimem. O seu puxado atormenta-o e os cuidados o aprisionam: “a minha vida ia ficando como a dos meus canários prisioneiros”. Por outro lado, a sexualidade precoce encontra na negra Luísa uma comparsa das “minhas depravações antecipadas”; “só pensava nos meus retiros lúbricos com o meu anjo mau, nas masturbações gostosas com a negra Luísa.”

O casamento da tia Maria foi digno da opulência e grandeza do senhor de Engenho do Santa Rosa. Atraiu gente de toda a redondeza e do Recife. É com tristeza que tudo é descrito pelo narrador que perde a sua segunda mãe: “E pela estrada molhada das chuvas de fim de junho, lá se fora a segunda mãe que eu perdia”. Até mesmo o Jasmim, o carneiro montaria, fora-se nessa, servindo de almoço e jantar, juntamente com outros, aos inúmeros convidados.

“— Você, no mês que entra, vai para o colégio”. Arranjavam-se os preparativos, e, com o casamento de tia Maria, “vivia a desejar o dia da minha partida”. Já estava grandinho (cerca de doze anos) e não sabia quase nada. Sabia ruindades, puxava demais pelo meu sexo, era um menino prodígio da porcaria.

Lá fora, a chuva caía fazendo crescer as plantações: “os pés de milho crescendo, a cana acamando na várzea, o gado gordo e as vacas parindo”.

Uma briga entre dois negros se encerra com a morte de um deles que deixou mulher e cinco filhos órfãos. Levam preso o assassino, mas a alma do morto continuou pairando pelo engenho sob a forma de assombração.

“Tinha uns doze anos quando conheci uma mulher, como homem”. E, com ela, apanhou doença-do-mundo a qual ia operando nele uma transformação: o menino de calça curta ia ficando na curva do tempo e dali, precocemente, ia brotando um rapazinho de sexualidade exacerbada. “Recorriam ao colégio como a uma casa de correção”.

Enfim chega a época de o depravado menino ir para o colégio. “Uma outra vida ia começar para mim ". Tudo ia ficando para trás com o trem em movimento.

Carlinhos “levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o corpo”. Era o oposto de Sérgio, em O Ateneu, que “entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade.”

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Sagarana: São Marcos e A volta do Marido Pródigo.


Resumo de Sagarana - Guimarães Rosa

Livro Sagarana, de Guimarães Rosa



Sagarana é a primeira obra de Guimarães Rosa a sair em livro, traz nove contos, nos quais o universo do sertão, com seus vaqueiros e jagunços, surge no estilo marcante que o escritor iria aprofundar em textos posteriores.

O livro de estréia de João Guimarães Rosa foi publicado em sua versão final em 1946. Os contos começaram a ser escritos em 1937, sendo escolhido neste ano para concorrer ao prêmio literário “Graça Aranha”, patrocinado pela Livraria José Olympio. Apesar de ser bastante comentado pela crítica, ficou em segundo lugar e não foi escolhido para ser publicado.

Para o lançamento definitivo de Sagarana, a obra foi reduzida de 500 para 300 páginas, sendo composta de nove contos / novelas. Nesse processo, o autor filtrou o que havia de melhor no texto, utilizando em seu peculiar processo de invenção de palavras o hibridismo – que consiste na formação de palavras pela junção de radicais de línguas diferentes. O título do livro é composto dessa forma. Saga, radical de origem germânica, quer dizer “canto heróico”; rana, na língua indígena, significa “espécie de”.

Entre os contos que escreve em Sagarana, merece destaque especial “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. Tido pela crítica como um dos mais importantes contos de nossa literatura, condensa os vários temas presentes no livro: o sertão, o povo, a jagunçagem, a religiosidade e o amor.

O livro que se destaca por expor de forma nítida toda a inventividade do autor no trato com a linguagem literária. Percebe-se nele o aproveitamento do colorido de expressões típicas do povo como “Estou como ovo depois de dúzia”, “Suspiro de vaca não arranca estaca”, “não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma”, entre tantas outras.

A obra de Guimarães Rosa apresenta um regionalismo de novo significado: a fusão entre o real e o mágico, de forma a radicalizar os processos mentais e verbais inerentes ao contexto fornecedor de matéria-prima, traz à tona o caráter universal. O folclórico, o pitoresco e o documental cedem lugar a uma maneira nova de repensar as dimensões da cultura, flagrada em suas articulações no mundo da linguagem.

De cunho regionalista, Saragana surpreendeu a crítica e levou o escritor ao renome, em virtude da originalidade de sua linguagem e de suas técnicas narrativas, que apontavam uma mudança substancial na velha tradição regionalista.

Voltada para as forças virtuais da linguagem, a escritura de Guimarães Rosa procede abolindo intencionalmente as barreiras entre narrativa e lírica, revitalizando recursos da expressão poética: células rítmicas, aliterações, onomatopéias, rimas internas, elipses, cortes e deslocamentos sintáticos, vocabulário insólito, com arcaísmos e neologismos, associações raras, metáforas, anáforas, metonímias, fusão de estilos.

Imerso na musicalidade da fala sertaneja, o autor procurou fixá-la na melopéia de um fraseio no qual soam cadências populares e medievais.

As estórias desembocam sempre numa alegoria, e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido ou "moral", à maneira das fábulas. As epígrafes, que encabeçam cada conto, condensam sugestivamente a narrativa e são tomadas da tradição mineira, dos provérbios e cantigas do sertão.

A obra começa com uma epígrafe, extraída de uma quadra de desafio, que sintetiza os elementos centrais da obra - Minas Gerais, sertão, bois, vaqueiros e jagunços, o bem e o mal:
"Lá em cima daquela serra, passa boi, passa boiada, passa gente ruim e boa, passa a minha namorada".

Elementos Estruturais

Os narradores de Sagarana têm o estilo marcante criado por Guimarães Rosa, cuja principal característica é a oralidade. No entanto, esse traço ainda não está tão acentuado como em obras posteriores, como Grande Sertão: Veredas e Primeiras Estórias, entre outras. Considerando que a oralidade acentuada é um dos principais obstáculos para a leitura de Guimarães Rosa, o livro Sagarana é uma excelente opção para iniciar-se na obra do autor.

Em relação ao foco narrativo, com exceção dos contos “Minha Gente” e “São Marcos” – que são narrados em primeira pessoa –, os demais possuem narradores em terceira pessoa. Quanto ao tempo e ao espaço de Sagarana, pouco há o que ser dito. Sobre o primeiro elemento, vale destacar a linearidade da narrativa, que se desenvolve na maior parte sob o tempo psicológico dos personagens.  O espaço é quase sempre Minas Gerais. Mais especificamente, o interior do estado. Vale uma atenção maior para o nome dos povoados e vilarejos dos contos. Os estados de Goiás e do Rio de Janeiro são mencionados no livro, mas têm pouca relevância na narrativa.
Segue abaixo um resumo e análise de cada um dos 9 contos do livro Sagarana, de Guimarães Rosa.

Resumo de Sagarana - A volta do Marido Pródigo



Enredo
Lalino, um mulato muito vivo, ajudante numa constru ção de estrada, não gosta do trabalho. Abandona sua mulher e o meio rural para procurar na capital a felicidade com que sonha: bonitas mulheres à vontade, iguais às que vira em revistas. Depois de algum tempo, cansa-se e fica com saudades: volta. Mas sua mulher, Maria Rita, agora vive com outro. Lalino quer ganhar de volta a consideração do povo e a mulher. Oferece-se uma oportunidade: cooperar como cabo eleitoral do Major, com vistas a ganhar as eleições próximas. Graças a uma série de artimanhas que, no primeiro momento, parecem ser desastrosas para a política do Major, mas que na verdade são intrigas muito hábeis contra o adversário político, Lalino garante o sucesso eleitoral do patrão. Reconcilia-se com a mulher, Maria Rita, que nunca o deixara de amar.

Personagens
1. Lalino Salãthiel: todos o chamam de Laio. Mulato vivo, malandro, contador de histórias. Garante que conhece a capital, Rio de Janeiro, mas nunca foi lá. Certa vez, foi realmente conhecê-la.
2. Maria Rita: mulher de Lalino; trata-o com especial carinho.
3. Marra: encarregado dos serviços; depois que a obra acabou, mudou-se do arraial.
4. Ramiro: espanhol que ficou com Ritinha, a mulher de Lalino.
5. Waldemar: Chefe da Companhia.
6. Major Anacleto: chefe político do distrito, homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar.
7. Tio Laudônio: irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Era conselheiro do Major.
8. Benigno: inimigo político do Major Anacleto.
9. Estêvão: capanga respeitado do Major Anacleto. Jamais ria. Tinha pontaria invejável: atirava no umbigo para que a bala varasse cinco vezes o intestino e seccionasse a medula, lá atrás.

Cenário
Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais.

Análise
A narrativa aproxima-se das novelas picarescas e é um retrato bem-humorado das oscilações interesseiras das convicções políticas do interior.
Novamente temos um burrinho, animal que, como os bois e cavalos, é presença obrigatória nos contos de Sagarana, que a crítica define como um verdadeiro "tratado de bovinologia". Esses animais são humanizados e alegorizam a própria condição humana.