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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Educação e a incomunicabilidade dos Brasis




Nós brasileiros de classe média para cima somos vítimas de dois erros de percepção. O primeiro é de que o Brasil é como nós: relativamente instruído, informado, desejoso de progresso nos moldes dos países desenvolvidos, liberal e democrático. O segundo, um pouco derivado do primeiro, é de que nossa ação pode influenciar os destinos da nação através da pressão sobre a classe política e os formadores de opinião.

Para derrubar o primeiro erro, basta conversar mais prolongadamente com as pessoas que compõem a base e maioria de nossa pirâmide social para descobrir que nossas experiências e leituras de mundo são separadas por um enorme fosso. Para quem não quer fazer o trabalho de campo, basta ler A Cabeça do Brasileiro (Record; 280 páginas; 42 reais), do sociólogo Alberto Carlos Almeida, e notar quão diferente é o Brasil das duas pontas do espectro sociocultural. Entre os que têm estudo até a 8ª série, 58% acha certo o "jeitinho", contra 33% entre aqueles com ensino superior. Entre os analfabetos, 51% acredita que Deus decide o destino, contra 9% dos bacharéis. A tortura de presos pela polícia é tolerada por 51% dos analfabetos contra 14% dos diplomados. 76% daqueles que têm ensino até a 4ª série é contra a masturbação masculina, contra apenas 26% dos possuidores de ensino universitário. E por aí vai.

A idéia de que podemos influenciar decisivamente a ação política deriva de um elitismo de antanho e do desconhecimento do funcionamento do "mercado" político. Esse é um mercado movido a voto. A maioria elege. Todo político que queira ser eleito deve aderir ao chamado teorema do votante mediano: você precisa defender posições que agradem ao eleitor que está no meio do espectro político/ideológico. Quem "captura" o eleitor mediano tem grandes chances de ser palatável para a maioria do eleitorado e, portanto, sair vencedor. Quem defende uma posição extremada só captura a minoria dos votantes que compartilha daquela visão e tende, portanto, a perder eleições majoritárias ou ser minoritário em eleições proporcionais. No Brasil, as posições majoritárias são diferentes daquelas posições defendidas pelos setores mais ilustrados da população. Dois terços das pessoas com até 4 anos de escolaridade acreditam que os bancos devem ser controlados pelo governo, 45% defende a censura, 51% defende o "jeitinho", 85% acredita que cada um deve cuidar somente do que é seu e deixar que o governo cuide do que é público, 31% acredita que os políticos devem usar seus cargos em benefício próprio, "como se fosse sua propriedade", 77% não confia nem nos amigos. Segundo a amostra do livro, 34% da população tem até 4 anos de estudo e 57% tem até 8 anos. Segundo o IBGE, a escolaridade média do grupo parecido com o dos eleitores - aqueles de 15 anos de idade ou mais - é de 7 anos. Não é por acaso, portanto, que Renan Calheiros é eleito, faz o que faz e é absolvido por seus pares. O brasileiro médio, e portanto o político médio, é mais parecido com Renan e sua trupe do que gostaríamos de reconhecer.

Por isso o esforço de editoriais de jornais, correntes de e-mail ou apelos desesperados de sites é irrelevante ao processo decisório político. Para começar, 74% da população brasileira, segundo dados do INAF, não consegue ler e entender um simples texto. E, segundo, mesmo que o lesse, provavelmente não partilharia do espanto das classes letradas. Os políticos sabem que não perderão seus mandatos por usarem de "jeitinhos" ou trafegarem nas zonas cinzentas da moral política. E nós sabemos que, se perderem, serão substituídos por pessoas muito parecidas.

O corolário lógico dessa percepção é que, se as elites intelectuais quiserem modernizar o Brasil, elas precisam entender que, em um sistema democrático, seu trabalho passa necessariamente pelo convencimento dos "corações e mentes" da maioria de seus concidadãos - que não lêem jornal, não têm acesso à internet e pensam de maneira muito diferente. O que deveria estar ficando cada vez mais claro é que ou construímos um país para todos e pensando em todos ou não conseguiremos fazer nada. Numa democracia, minorias não geram mudanças.

Não há um caminho óbvio para gerar essa mudança. O fato de pessoas mais instruídas terem uma determinada posição não significa que essa posição tenha sido causada pela educação. Mas, dentre as alternativas possíveis, é a mais provável: como já foi observado em todo o mundo, o aumento de escolaridade traz uma série de conseqüências positivas para o desenvolvimento econômico - e político. No pior dos casos, pelo menos fará com que mais pessoas possam pelo menos ler e entender os pensamentos de terceiros, e participar do debate sobre a construção do Brasil que queremos.



Artigo de Gustavo Ioschpe
http://veja.abril.com.br/gustavo_ioschpe/index_200907.shtml

Dinheiro não compra educação de qualidade

Bob Krist/Corbis/Latinstock
CAMPEÃ
A Mongólia é o país que mais gasta com educação em proporção do PIB


É comum ouvirmos professores praguejando contra o neoliberalismo e a onipresença do dinheiro nos assuntos humanos. Falam sobre a importância de uma educação para a formação de valores, de cidadãos críticos etc. Só há uma notável exceção, que é quando o dinheiro em questão é aquele investido em educação e no pagamento dos próprios professores. Nesse caso, e apenas nesse caso, até os líderes dos sindicatos stalinistas defendem que a principal ferramenta para uma educação de melhor qualidade é o dinheiro. E o principal uso desse dinheiro deveria ser o aumento do salário dos professores. Se ganhassem mais, os atuais professores seriam mais motivados, o que faria com que a qualidade da educação melhorasse.

"Pesquisas indicam que a maioria dos professores está satisfeita em sua carreira e não pensa em abandoná-la. Quando o assunto é dinheiro, porém, eles se apresentam como desmotivados e descontentes, e apontam o vil metal como a única saída para o aprendizado dos alunos"

Argumento curioso, já que os professores são os primeiros a enfatizar a incrível dedicação, beirando o heroísmo, que adotam em seu dia-a-dia. Pesquisas indicam que a maioria dos professores está satisfeita em sua carreira e não pensa em abandoná-la. Quando o assunto é dinheiro, porém, eles se apresentam como desmotivados e descontentes, e apontam o vil metal como a única saída para o aprendizado dos alunos. A despeito dessa inconsistência, o argumento dos professores foi comprado pela sociedade. Em parte porque a proposição é perfeitamente lógica – melhor pagamento está normalmente associado a melhor qualidade de serviço – e em parte porque as lideranças da categoria vêm martelando o mesmo discurso há mais de vinte anos, praticamente sem opositores.

Esse discurso contaminou a sociedade e, por fim, as políticas para o setor. No começo da gestão FHC, criou-se o Fundef, que destinava 60% dos seus recursos a aumentar salários de professores. Depois de sua implementação, a qualidade da educação brasileira caiu. O governo Lula criou o Fundeb, mantendo a mesma destinação aos professores. A qualidade da educação continuou a cair. Se algum médico prescrevesse um remédio e, logo depois, a situação da saúde do paciente piorasse, este provavelmente rejeitaria o aumento da dosagem do mesmo remédio. Quando o assunto é a nossa educação, porém, o recado da realidade é constantemente ignorado em favor da teoria. Assim foi que, no começo do mês de julho, o Congresso decidiu injetar mais dinheiro na educação e mais salário aos professores. O Senado aprovou o fim da DRU para a área da educação, o que deve aumentar em 7 bilhões de reais ao ano o orçamento do MEC. No mesmo dia, aprovou também um piso salarial nacional de 950 reais para todos os funcionários da educação. Nota-se que os parlamentares tomaram essa medida pensando unicamente no aprendizado de nossos alunos: a mesma lei garante que o benefício seja estendido a funcionários aposentados e determina que o professor só pode passar dois terços de sua jornada em sala de aula.

Neco Varella
MAIS E MAIS
Professores fazem passeata por melhores salários no Rio Grande do Sul

Com exceção dessa parte dos aposentados e da diminuição do tempo de aula, o projeto tem lógica. Assim como era muito lógica a idéia de que, se as doenças se espalham pelo sangue, um bom tratamento à base de sanguessugas só pode melhorar a saúde. Assim como era lógica, óbvia!, a idéia de que a Terra é fixa e os astros a orbitam. Ou que um computador jamais conseguiria bater um bom enxadrista. Todas essas lógicas encontram apenas um pequeno obstáculo: não são verdade. A realidade encarregou-se de comprovar seu erro.

A questão do financiamento da educação não é uma área para opiniões, mas para medições. Não é preciso conjeturar sobre o impacto dos salários sobre a qualidade do ensino – basta medi-lo. E há pencas de estudos empíricos que fazem exatamente isso: verificam o desempenho de centenas de milhares de alunos em testes padronizados, computam os salários de seus professores e o volume de investimentos de suas escolas, adicionam outras variáveis de interesse – nível de educação e financeiro dos pais dos alunos, experiência do professor, infra-estrutura da escola etc. –, jogam tudo em uma ferramenta de análise estatística e medem a importância de cada variável para o aprendizado do aluno. A maioria aponta não haver relação significativa entre salários de professores e desempenho dos alunos, nem entre volume de gastos por aluno e o seu aprendizado.

"Simplesmente não acredito que dando mais dinheiro aos professores e diretores que estão em nossas escolas hoje, sem exigir nenhuma contrapartida ou melhorar sua capacitação, nós teremos um ensino de melhor qualidade. O problema principal dos funcionários de nossas escolas não é de motivação: é de preparo"

Alguns dizem que o Brasil investe pouco em educação, como se essa fosse a razão de todos os nossos males. Não é verdade: nosso setor público investe entre 4% e 5% do PIB em educação, valor parecido com o investido pelos países ricos. O gasto é malfeito – vai muito para as universidades e muito pouco para o ensino básico –, mas não é pequeno. Outros argumentam que não podemos nos comparar com o que esses países fazem hoje. Precisaríamos gastar entre 7% e 8% do PIB para chegar aonde eles estão, pois é isso que os países gastam quando dão seus saltos educacionais. Desculpem a sem-cerimônia: é mentira. No período 1970-90, a Coréia do Sul gastou em média 3,5% do PIB em educação. A Irlanda, 5,6%. China, 2,3%. Hong Kong, 2,8%. Inglaterra, 4,9%. Até a Finlândia, com seu estado de bem-estar social, ficou em 5,7%. Para não ser injusto, é forçoso reconhecer que, nesse período, houve sim um grupo de países que gastou mais de 7% (os dados são da Unesco e estão disponíveis no fim desta coluna). São eles: Quênia, Namíbia, Seychelles, Barbados, Martinica, Suriname, Armênia, Azerbaijão, Jordânia, Mongólia (a campeã, com 12,9% – não é piada), Tadjiquistão, Uzbequistão, Noruega e Suécia. é desnecessário comentar.

Quero deixar claro que não acredito que o aumento de recursos para a nossa educação ou o aumento de salário dos professores vai causar um mal. Acredito inclusive que em alguns casos ele poderá fazer bem – se o MEC investir os seus recursos adicionais para melhorar a infra-estrutura de escolas que estão caindo aos pedaços e dotá-las de bibliotecas e laboratórios, por exemplo, há ampla evidência de que a repercussão sobre o desempenho dos alunos será positiva. Simplesmente não acredito que dando mais dinheiro aos professores e diretores que estão em nossas escolas hoje, sem exigir nenhuma contrapartida ou melhorar sua capacitação, nós teremos um ensino de melhor qualidade. O problema principal dos funcionários de nossas escolas não é de motivação: é de preparo. E falta de preparo não se resolve com salário, mas com mais e melhor treinamento. Alguns defendem a idéia de que um aumento de salário atrairia novas e melhores pessoas ao magistério.

Que não adianta aumentar o salário dos professores em 20% ou 30%: seria necessário dobrá-lo ou triplicá-lo, para torná-lo comparável ao salário das carreiras ditas nobres. Há dois problemas com a idéia: primeiro, não tem respaldo empírico. Segundo, mesmo que seja verdadeira, o orçamento de prefeituras e municípios simplesmente não comportaria um salto assim. Há uma lei que determina que estados e municípios devem gastar 25% de seu orçamento com educação. O país hoje gasta 70% dos recursos educacionais com salário de professor. Dobrar o salário do professor significaria ocupar 35% dos orçamentos com educação. Triplicar levaria a verba a 52%. Não há estado ou municipalidade que possa arcar com essa carga.

Olhando para a pesquisa em educação das últimas décadas e para a própria experiência brasileira, fica difícil acreditar que tenhamos uma educação virtuosa enquanto os bilhões de reais que gastarmos forem investidos em um sistema ineficiente, muitas vezes corrupto, e composto por pessoas que não têm o preparo necessário para exercer suas funções. A investigação sobre os efeitos dessas novas leis seria uma instigante questão acadêmica, não fosse o detalhe de que estamos falando de algo que afeta diretamente os mais de 50 milhões de alunos que povoam nossas escolas. E os seus 50 milhões de sonhos e projetos de vida que jamais verão a luz do dia, em parte pelo nosso fetiche por uma idéia que a realidade já comprovou ser falsa.

Educação Particular x Educação Pública



Artigo Gustavo Ioschpe
http://veja.abril.com.br/011008/p_091.shtml

Violência escolar: quem é a vítima?

"A maioria das nossas escolas está longe de ser essa refém da criminalidade que aparece nos jornais. As estatísticas colhidas pelo MEC pintam um quadro menos sombrio"

Valéria Gonçalvez/AE
A OUTRA VIOLÊNCIA
A vitimização de alunos por professores e administradores raramente é reconhecida, mas ela existe

A agressão de estudantes a colegas, funcionários da escola e sua infra-estrutura é um tema popular na mídia e uma grande preocupação do público. Contudo, a análise de estatísticas de criminalidade sugere que o problema da violência escolar é enormemente exagerado. Ademais, há um lado da violência escolar que recebe relativamente pouca atenção. A vitimização de alunos por professores, administradores e outros funcionários da escola, freqüentemente sob a rubrica de medidas disciplinares, é raramente reconhecida por seu potencial para contribuir para o mau comportamento, a alienação e a agressão por parte dos alunos." Esse trecho me veio à mente ao ler a celeuma causada por incidentes ocorridos em São Paulo, no início de novembro, em que professores e funcionários foram agredidos e uma escola foi depredada. Mas o trecho não se refere a esses episódios. É a introdução de um paper escrito nos Estados Unidos, em 1998, pelos pesquisadores I. Hyman e D. Perone, sobre a questão da violência escolar naquele país.



É surpreendente a semelhança entre a realidade do Brasil de 2008 e a dos EUA de dez anos atrás. Pois também aqui no Brasil nós só temos olhos para um lado da violência escolar: aquela dos alunos contra os professores e funcionários. E as condenações são rápidas e abrangentes. Na Folha de S.Paulo, a colunista Barbara Gancia se referiu assim à questão da violência nas escolas: "É melhor declarar a falência do ensino público e lacrar de vez os portões de todas as escolas do Estado de SP (...). Eles (os alunos baderneiros) não são melhores nem piores do que os adolescentes que vieram antes deles. Apenas imitam o comportamento que vêem ao seu redor, tomando para si o mesmo código de sobrevivência que vigora em todas as comunidades carentes em que a lei não se faz presente. (...) Esperar que, diante da autoridade do professor, eles se transformem em cordeirinhos é não enxergar que temos em mãos uma geração que se perdeu".

É desnecessário dizer que os jovens que infringem a lei e os códigos de civilidade devem ser punidos. Lugar de infrator não é no banco da escola, mas em centros de reclusão. É óbvio também que há jovens desajustados, e que a convivência com um entorno de violência e degradação social favorece a criminalidade. É igualmente certo que todos os professores e funcionários do estado devem ser protegidos da violência pela polícia – em seu local de trabalho e fora dele, como qualquer cidadão.

Assim como devemos condenar o infrator, porém, é preciso entender o meio que o gerou. Não porque isso o exima de culpa, mas para que se possam criar políticas públicas que diminuam a probabilidade de que mais jovens enveredem pelo mesmo caminho. E a realidade que o Brasil não quer ver é que a maior vítima de agressão no nosso sistema escolar é o aluno.

A maioria das nossas escolas está longe de ser essa refém da criminalidade que aparece nos jornais. As estatísticas oficiais, colhidas pelo MEC junto aos professores de todo o país, pintam um quadro menos sombrio. Informativo do Inep a respeito mostrou que 4,2% dos professores tinham visto alunos com armas brancas e 2,9% com armas de fogo na escola; 5,4% deles foram ameaçados por um aluno e 0,7% agredidos fisicamente por um aluno. Repita-se: a agressão a qualquer professor, carteiro ou técnico de futebol é intolerável e deve ser punida. Mas onde está a epidemia de violência que aparece nas manchetes? Esta vem de dados produzidos pelos sindicatos de professores. Há duas semanas, por exemplo, uma pesquisa do Udemo indicou que 86% das escolas de São Paulo haviam sofrido algum tipo de violência em 2007. O que é o Udemo? Qual a metodologia da pesquisa? Os dados são confiáveis? Uma simples passada de olhos sugeriria muita cautela. Afinal, a instituição é o sindicato de especialistas de educação do magistério oficial do estado de São Paulo. Não há explicação sobre a metodologia da pesquisa em seu site, apenas a menção de que, das 5 300 escolas consultadas, só 683 mandaram respostas. "Os demais diretores não responderam por motivos vários, entre os quais, provavelmente, o excesso de trabalho." Um levantamento imparcial, vê-se.

Infelizmente, não há nenhum levantamento que permita quantificar os incidentes de violência vividos pelos alunos nas escolas brasileiras, tanto por parte de professores e funcionários quanto por parte de colegas. As agressões sofridas por alunos só se tornam notícia quando atingem um grau dantesco. Como o do menino Felipe Gonçalves da Conceição, 12 anos, que fraturou os punhos e o pé esquerdo durante aula de educação física e, mesmo assim, foi obrigado a voltar para a aula e impedido de ligar para os pais. Esses casos, porém, são os que menos importam. Até porque, espera-se, ocorrem muito raramente. A pior agressão sofrida pelos alunos é a intelectual: aquela de um sistema de ensino que não está muito preocupado com seu aprendizado, que despreza sua inteligência, que mói seus sonhos, que os condena ao subemprego e à pobreza, que culpa alunos e pais pelo fracasso da escola. Em pesquisa recente com alunos da 4ª série de escolas públicas, 90% atribuíram a si mesmos a responsabilidade pelo fato de algum dia virem a sofrer uma reprovação.

Temos uma escola que tira dezenas de horas e dias e anos da vida dessas crianças e desses jovens com aulas chatas, de didática atrasada. Quando alguém tem a ousadia de dizer isso, os professores respondem em uníssono: "Só quem está no dia-a-dia da escola é que pode falar sobre o que acontece lá, saber as verdadeiras dificuldades". É uma maneira conveniente de afastar todos os membros da sociedade do debate da educação, que é um ponto vital não apenas para educadores, mas para todo o país. Mas, até quando se observa a realidade dentro das escolas, o relato é o mesmo, se não pior. Estudo recente da Unesco, chamado "Repensando a escola", enviou pesquisadores/observadores a 225 escolas de dez estados. A pesquisa revelou coisas interessantes. Alunos da 4ª série tinham dificuldade em preencher, nos questionários, o campo que perguntava seu sexo, pois não sabiam o que era "masculino" e achavam que "feminino" identificava os garotos. É uma escola que insiste na disciplina e coíbe a criatividade e a curiosidade do aluno. Oitenta e oito por cento dos alunos responderam que a definição de bom aluno é "aquele que obedece à professora". "Fazer muitas perguntas" ficou com apenas 8% dos votos. É uma escola em que a pregação ideológica substitui a preocupação com o saber e em que o viés político contamina até os níveis mais altos da administração escolar.

Uniforme (de Guerra) para ir a escola

A característica do bom diretor é "ser democrático na tomada de decisões" para 90% dos próprios diretores. "Conhecer e aplicar as regras de administração escolar" só levou 64% das preferências. Os professores se têm em alto conceito, ao contrário da sua impressão sobre os alunos. Quando um estudante é reprovado, por exemplo, os professores atribuem a culpa a ele (39%) e aos pais dele (24%). Os próprios professores só são culpados segundo 2% da categoria. Quando um aluno não faz o dever de casa, 77% dos professores apontam a preguiça como culpada. Trinta por cento dos alunos pesquisados dizem ter medo dos professores e 13% afirmam sofrer humilhações. Diz o relatório da pesquisa: "Na maioria das salas de aula observadas, ou dos professores observados, não parecia haver preocupação com o planejamento, e este, quando havia, era pouco estimulante, limitando-se quase que exclusivamente a seguir o livro didático, tornando as aulas enfadonhas e de pouco interesse.

As aulas são monótonas, sem alegria, sem novidades, sem recursos". O recurso "didático" mais freqüentemente observado era a cópia pura e simples de matéria do quadro-negro. Isso não é dar aula, muito menos educar. Se temos um sistema educacional que trata os alunos como mimeógrafos, que atribui a dificuldade dos estudantes à sua preguiça ou pobreza e que se recusa a fazer uma auto-análise, não é de surpreender que os alunos se revoltem com essa instituição e a tratem com o mesmo desprezo com o qual são tratados por ela.


Artigo  de Gustavo Ioschpe
http://veja.abril.com.br/031208/p_124.shtml

Falência educacional: complô ou lógica?



"Quem coloca seus filhos em escolas particulares (12% do total das matrículas da educação básica) comete um grave equívoco: acredita que essas escolas são boas apenas porque são melhores do que as escolas públicas. Assim, despreocupa-se da educação dos filhos e da qualidade da escola pública"

Quando se fala em educação no Brasil, algo não faz sentido. Todos exaltam o benefício da educação e apontam-na como a solução de nossos problemas. Todos parecem engajados em sua melhoria. Apesar desse consenso e da boa vontade, nossas escolas patinam, e sua qualidade só tem decaído. Para explicar essa curiosa dissonância, era comum ouvir, dez anos atrás, a ideia de que nosso fracasso na área se devia à falta de "vontade política" de nossos governantes, ou ainda ao complô das elites pela alienação do proletariado, ou, finalmente, às imposições do Fundo Monetário Internacional (FMI), que supostamente exigia o corte de gastos na educação em seus acordos com o país.

De lá para cá, os dotados de "vontade política" chegaram ao poder, as elites de antanho deram lugar à república dos sindicalistas e o Brasil já não precisa mais da tutela do FMI, ao qual não deve nada. Mas a melhora esperada não veio. O resultado do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2005 é mais baixo que o de 1995. Apesar disso, o discurso da área educacional continua o mesmo. Será que eles estão certos, e que há um complô tão poderoso a favor da nossa ignorância que nem os próprios atores da nossa tragédia percebem a sua insignificância? Estariam as "forças ocultas" de Jânio Quadros rondando novamente os palácios, de onde talvez jamais tenham saído? Ou será que nosso atraso é mais compreensível à luz de uma análise racional dos envolvidos na área, presumindo-se que eles agem de maneira lógica e maldosa? Creio que a segunda hipótese é a mais provável: nossa inércia é compreensível se entendemos a economia política dos grupos envolvidos.

Comecemos pelos alunos. Eles aprendem muito pouco, e são os maiores interessados em seu próprio sucesso acadêmico. Por que não protestam? Há, em primeiro lugar, a questão etária: não é possível imaginar que crianças de 10 ou 12 anos se mobilizem em passeata pública por um ensino de melhor qualidade. Quando os alunos se dão conta das deficiências do seu ensino, costuma já ser tarde demais, e a própria carência educacional dificulta a reclamação: é improvável que um semiletrado escreva um artigo cativante ou uma carta pungente ao seu congressista. Em segundo lugar, os alunos são condicionados pelo seu sistema de ensino a acreditar que o culpado pelo insucesso do aluno é ele mesmo. Nessa missão, seus mestres são extremamente efetivos: em pesquisa recente da Unesco, 82% dos alunos ouvidos dizem que, se o aluno não passa de ano, a culpa é sua, muito mais que da escola (mencionada por apenas 5%) ou dos professores (3,7%). Para piorar, os próprios pais culpam o filho pelo insucesso na escola: pesquisa publicada no livro A Escola Vista por Dentro indica que 63% dos pais da escola municipal e 54% dos da estadual culpam o filho por sua repetência. Cercados por esse mar de desconfiança e assolados pelo próprio desconhecimento, os alunos protestam mais com os pés que com a cabeça: quando entendem que a escola lhes consome muito tempo sem dar muito em troca, abandonam-na.

Juca Varella/Folha Imagem
O FMI SE FOI
E as elites saíram do poder, agora ocupado por governantes com "vontade política", mas a esperada melhora da educação não veio

O próximo grupo de interessados pela educação é o dos pais dos alunos. Por que eles aceitam bovinamente uma péssima educação para seus filhos? Aqui devemos dividir esse universo em dois: há o grupo de classe média e alta, que coloca os filhos em escola particular, e o restante da população, que usa a escola pública.

Quem coloca seus filhos em escolas particulares (12% do total das matrículas da educação básica) comete um grave equívoco: acredita que essas escolas são boas apenas porque são melhores que as escolas públicas. Assim, despreocupa-se da educação dos filhos e da qualidade da escola pública. O problema é que a escola particular é também muito ruim – basta ver os resultados dos alunos de alto nível socioeconômico em testes internacionais como o Pisa, em que nossos alunos ricos têm desempenho pior que o dos alunos mais pobres dos países desenvolvidos. E o segundo problema é que, como a escola pública forma, via de regra, os professores da escola particular, enquanto não melhorarmos todo o sistema, não teremos educação de qualidade para ninguém. Mas os pais das escolas particulares não entendem isso; afastam-se da questão educacional por acreditar que essa problemática não os afeta.

Esperar-se-ia, porém, que os pais de alunos da escola pública (os outros 88% das matrículas) estivessem profundamente descontentes com a educação dos filhos e bradando por sua melhoria. Mas não estão: as pesquisas apontam que, pelo contrário, estão satisfeitos com a escola das crianças. Essa visão não é causada por preguiça ou desinteresse, mas por despreparo. Pesquisa do Inep mostrou que quase 60% dos pais do ensino público não completaram nem o ensino fundamental, 73% têm renda inferior a três salários mínimos, três quartos nunca ou raramente leem jornal. Pesquisas qualitativas mostram que esse pai compara a escola da sua época – em que faltava vaga, não havia merenda nem transporte – com a escola do filho. Vendo todas as benesses materiais que o filho recebe, associa-as a uma educação de boa qualidade. Reclama quando o professor falta à aula, mas é só. Se o pai acha a escola boa e o filho vai mal, então é natural que o pai culpe o filho e exima a escola, perpetuando o sistema roto.

Depois dos pais, temos os diretores escolares. Destes, segundo o MEC, 60% são indicados pelo Poder Executivo de sua cidade ou estado. Menos de 10% são concursados, outros 19,5% são eleitos. É provável que a maioria, indicada por políticos, não esteja disposta a bancar grandes revoluções em suas escolas, que poderiam levar à sua destituição – especialmente se prescrevessem aos seus professores as medidas impopulares que estão associadas ao melhor desempenho acadêmico, como uso constante de dever de casa, avaliação de alunos, redução do absenteísmo docente, uso intensivo de material didático e utilização do tempo de aula para tarefas expositivas, e não cópia do quadro-negro ou realização de exercícios. A maioria dos diretores é composta de ex-professores, o que reforça o corporativismo, e não há no Brasil instituições de ensino que preparem uma pessoa para o ofício de diretor escolar, de forma que mesmo os diretores bem-intencionados são frequentemente despreparados.

Vejamos o professor. Por que ele não produz uma educação de melhor qualidade? Em primeiro lugar, porque não consegue. O professor brasileiro tem uma péssima formação e não é preparado para encarar uma sala de aula do Brasil real, especialmente em áreas de vulnerabilidade social. Em segundo lugar, porque é tomado por um viés ideológico que torna o sucesso acadêmico insignificante. Em pesquisa da Unesco, só 8,9% dos professores indicaram "proporcionar conhecimentos básicos" como uma das finalidades importantes da educação. "Formar cidadãos conscientes" ficou com 72,2% das preferências. Confrontados com o seu fracasso, então, nossos professores têm duas respostas-padrão: ou culpam o aluno e seus pais, ou culpam a visão neoliberal e reducionista de quem reclama da escola que forma analfabetos, porque a educação "é muito mais do que isso".

Finalmente, chegamos à última peça dessa engrenagem, aquela que é paga e eleita para administrar o sistema e zelar pelo bem comum: os políticos. Se o político for desonesto, a educação será um ótimo lugar para tirar dinheiro: não só concentra uma parte grande do orçamento (no mínimo 25%) como ainda é cheia de transferências do governo federal. Tem uma grande vantagem: se o sujeito rouba da saúde e faltam remédios ou médicos, a população chia; se rouba dos transportes e faltam ônibus, os eleitores reclamam; se rouba da educação e os alunos não aprendem, ninguém se importa. Mas, mesmo que o político seja honesto e comprometido com o progresso da sua região, é confrontado com uma decisão indigesta: se ele quiser mesmo reformar seu sistema educacional, terá de parar de investir em merenda ou em prédios e investir na formação de diretores e professores, terá de cobrar o seu desempenho, terá de mobilizar pais e alunos, terá de remanejar professores e funcionários incompetentes. Tudo isso causa des-conforto. Se a experiência de estados reformistas na área, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais ou Sergipe, servir de exemplo, o descontentamento descambará em greve. Os professores são uma das categorias profissionais mais numerosas e vocais em suas reclamações. Os beneficiários dessas reformas mal sabem que têm um problema e, portanto, não reconhecerão a melhoria. Se tiverem de deixar de trabalhar para cuidar dos filhos sem aula por causa da greve, perigam ser contrários às reformas. O lógico, nesse caso, para os políticos, é fazer o quê? Exatamente: nada. Assim vamos ficando, ano a ano, mais ignorantes e despreparados.

Gustavo Ioschpe

Artigo retirado de: http://veja.abril.com.br/gustavo_ioschpe/index_180209.shtml

Para combater a desigualdade, o caminho é a educação básica, não a reserva de vagas em universidades

O critério racial fere a isonomia. Que os militantes da causa negra não se iludam: projeto das cotas não passa de cortina de fumaça

 
O ERRO DAS FEDERAIS - Primeiro eles avacalham as próprias instituições, depois reclamam quando os outros querem fazer demagogia com elas
O ERRO DAS FEDERAIS - Primeiro eles avacalham as próprias instituições, depois reclamam quando os outros querem fazer demagogia com elas (André Dusek/AE)
 
Não fosse o componente racial no projeto de lei aprovado pelo Congresso - que destina 50% das vagas das universidades federais a alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas, a ser distribuídas respeitando a divisão racial de cada estado -, eu poderia dar-lhe o benefício da dúvida. Com o componente racial, sou contra
 
A família do meu pai chegou ao Brasil, com uma mão na frente e outra atrás, no começo do século XX. A da minha mãe aportou aqui fugindo do nazismo. Em ambos os casos, portanto, muito depois da abolição da escravidão. Caso a lei das cotas raciais e econômicas nas universidades federais seja sancionada, fico imaginando o que eu - e milhões de brasileiros com histórico parecido - diria ao meu filho se ele fosse excluído de uma vaga em universidade federal em benefício de um negro ou indígena com pior desempenho acadêmico. Não haveria o que dizer. Pessoalmente, acredito que o critério racial fere a isonomia, que é a base da democracia, e tisna o republicanismo com sectarismo. Racismo sempre é ruim, tanto o movido por ódios quanto o por intenções nobres. Espero que os militantes da causa negra não se iludam: esse projeto não é uma grande vitória, mas uma cortina de fumaça. Em primeiro lugar, porque o racismo brasileiro não é causado por políticas governamentais que precisam ser revertidas, como era o caso americano, mas sim por atitudes de foro íntimo de uma parte dos nossos concidadãos. A concessão de cotas não mudará esse preconceito e corre-se o risco de exacerbá-lo. E, segundo e mais importante, porque o efeito dessa lei não passa de migalha. Reportagem da Folha de S.Paulo calculou que o número de vagas reservadas nas universidades federais aumentaria em 70 000 com as cotas. A maneira de tirar milhões de negros da privação é melhorando a qualidade do ensino básico.

Não fosse o componente racial no projeto de lei aprovado pelo Congresso - que destina 50% das vagas das universidades federais a alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas, a ser distribuídas respeitando a divisão racial de cada estado -, eu poderia dar-lhe o benefício da dúvida. Com o componente racial, sou contra.

Há bons argumentos favoráveis e bons argumentos contrários à concessão de cotas a alunos da rede pública de ensino, sem discriminação por raça. Os favoráveis: a medida aumenta o acesso de alunos de baixa renda à universidade, promovendo equidade social. Também pode fazer com que pais da classe média baixa tirem seus filhos de escolas particulares e os matriculem em escolas públicas. A pesquisa sugere que esse público de maior renda e instrução deverá gerar melhoria de qualidade na escola pública. Os argumentos contrários: além de ferir a meritocracia, o que conceitualmente é lamentável para uma instituição de ensino, a chegada de alunos despreparados às universidades federais poderia ameaçar sua qualidade, acabando com boa parte da pouca pesquisa que o país produz.

O tempo dirá se os efeitos negativos vencerão os positivos. É uma questão mais empírica do que opiniática. Se essa lei for mais um prego no caixão das universidades federais, é importante notar que o eventual óbito terá sido caso de suicídio assistido, não assassinato. Agora reitores e professores protestam contra essa lei específica, mas as sementes do mal foram plantadas por eles. Porque nas últimas décadas as universidades federais se protegeram tanto, amealharam tanto dinheiro dando tão pouco em troca à sociedade, que hoje não têm mais autoridade para esperar que essa sociedade as proteja.

A marcha da insensatez começou com o artigo 207 da Constituição, que declara a “indissociabilidade entre ensino e pesquisa” nas universidades. Já seria estranho ter uma lei qualquer defendendo que o separável é, em realidade, inseparável, mas consagrar isso na Constituição do país é estapafúrdio. O resultado prático dessa lei é que 90% dos professores das federais são remunerados como se fossem pesquisadores em tempo integral, o que a grande maioria não é. Se quase todos são tratados assim sem que precisem produzir pesquisa, obviamente há pouco incentivo para que se faça pesquisa de ponta. A maioria dessas instituições é pouco produtiva. No ranking mundial de universidades do Times londrino, não há nenhuma universidade federal entre as 400 melhores do mundo. Ainda há grandes professores e pesquisadores, mas as universidades federais exigem que toda a rede seja tratada de forma homogênea, gerando dupla injustiça: não valoriza os que merecem e sobrevaloriza os que nada ou pouco produzem. Esses últimos ainda fazem greves, como a de agora. Essa estrutura torna o custo das universidades federais estratosférico: seu aluno custa quase seis vezes mais do que o aluno do ensino fundamental, o mais caro entre todos os países medidos.

 Finalmente, as federais resistiram e continuam resistindo a planos de expansão de vagas. Fazer universidades novas em zonas desprestigiadas pode, mas aumentar agressivamente o número de alunos nas universidades “nobres”, isso não. Assim, o orçamento do Ministério da Educação destina 23,7 bilhões de reais às federais e elas matriculam apenas 763 000 alunos, menos de 15% das matrículas totais do setor. Se a instituição das cotas tiver efeito adverso sobre a qualidade das federais, é provável que haja mais um êxodo de matrículas para o setor privado, fomentando o desenvolvimento de instituições de ponta nesse setor. Daqui a um tempo, não será surpreendente se alguém sugerir extinguir as federais e transferir todo o seu orçamento para boas universidades privadas ou estaduais. Todas as leis e manobras que deveriam garantir a opulência e complacência das universidades federais terão causado sua implosão.

Na escola, havia um colega que não conseguia acompanhar o ritmo na maioria das matérias e era vítima de gozação da turma. Um dia, ao receber mais uma provocação de outro colega que tampouco era grande aluno, ele se revoltou: “Tu, não! Vai descolorir o boletim antes de abrir a boca”. O Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, que dá uma nota de zero a 10 para a qualidade de todas as escolas públicas do Brasil, mostra que o boletim do país é um mar de notas vermelhas.
O Ministério da Educação, ao divulgar os resultados, enfatiza o (pequeno) progresso e o fato de 77% dos municípios terem atingido a meta. A verdade é que não há razão para contentamento. A média cai de 5,0 no 5º ano para 3,7 ao fim do ensino médio. Quanto mais tempo nosso aluno permanece na escola, pior é o seu desempenho. As metas do Ministério da Educação são ridículas, mais uma herança maldita do preclaro Haddad. Estipulam que, em 2021, o Brasil tenha o mesmo desempenho dos países da OCDE... em 2006! Isso não é meta, é uma confissão de derrota. Até 2021 esses países terão evoluído muito, e os problemas de competitividade do Brasil, causados pelo nosso apagão escolar, continuarão terríveis.

Como sabem os leitores desta coluna, só acredito que teremos mudanças significativas quando a população cobrar educação de qualidade. Políticos só atacarão o problema da educação com o devido empenho quando o mau resultado lhes custar votos. O Ideb 2011 pode ser um instrumento valioso nesse processo, porque pela primeira vez temos uma série histórica que permite avaliar o desempenho de redes municipais em um mandato inteiro de prefeitos, justamente em ano eleitoral. Para dar minha pequena colaboração, as tabelas aqui reproduzidas mostram, entre as cidades com mais de 100 000 habitantes, quais as redes municipais que mais melhoraram e as que mais pioraram no país, e também aquelas que obtiveram os melhores e os piores resultados absolutos. Em twitter.com/gioschpe você encontra os dados completos do Ideb por município, por estado e pelo país, desde 2005. Espero que ajude na hora de votar para prefeito.

Gustavo Ioschpe
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/para-combater-a-desigualdade-o-caminho-e-a-educacao-basica

A utopia sufoca a educação de qualidade


Um dos males que assolam nossa educação é a esperança vã de pensadores e legisladores de que uma escola que mal consegue ensinar o básico resolva todos os problemas sociais e éticos do país. Eles criaram um sistema com um currículo imenso, sistemas de livros didáticos em que o objetivo até das disciplinas científicas é formar um cidadão consciente e tolerante. Responsabilizaram a escola pela formação de condutas que vão desde a preservação do meio ambiente até os cuidados com a saúde; instituíram cotas raciais e forçaram as escolas a receber alunos com necessidades especiais. A agenda maximalista seria uma maneira de sanar desigualdades e corrigir injustiças. O Brasil deveria questionar essa agenda.

Primeira pergunta: nossas escolas conseguem dar conta desse recado? A resposta é, definitivamente, não. Estão aí todas as avaliações nacionais e internacionais mostrando que a única igualdade que nosso sistema educacional conseguiu atingir é ser igualmente péssimo. Copiamos o ponto final de programas adotados nos países europeus sem termos passado pelo desenvolvimento histórico que lhes dá sustentação.



Segunda pergunta: esse desejo expansionista faz bem ou mal ao nosso sistema educacional? Será um caso em que mirar no inatingível ajuda a ampliar o alcançável ou, pelo contrário, a sobrecarga faz com que a carroça se mova ainda mais devagar? Acredito que seja o último. Por várias razões. A primeira é simplesmente que essas demandas todas tornam impossível que o sistema tenha um foco. Perseguir todas as ideias que aparecem — mesmo que sejam todas nobres e excelentes — é um erro. Infelizmente, a maioria dos nossos intelectuais e legisladores não tem experiência administrativa, e acredita ser possível resolver qualquer problema criando uma lei. No confronto entre intenções e realidade, a última sempre vence. A segunda razão para preocupação é que, com uma agenda tão extensa e bicéfala — formar o cidadão virtuoso e o aluno de raciocínio afiado e com conhecimentos sólidos –, sempre é possível dizer que uma parte não está sendo cumprida porque a prioridade é a outra: o aluno é analfabeto, mas solidário, entende? (Com a vantagem de que não há nenhum índice para medir solidariedade.) E, finalmente, porque quando as intenções ultrapassam a capacidade de execução do sistema o que ocorre é que o agente — cada professor ou diretor — vira um legislador, cabendo a ele o papel de decidir quais partes das inatingíveis demandas vai cumprir. Uma medida que deveria estimular a cidadania tem o efeito oposto: incentiva o desrespeito à lei, que é a base fundamental da vida em sociedade.

Terceira pergunta: mesmo que todas essas nobres intenções fossem exequíveis, sua execução cumpriria as aspirações de seus mentores, construindo um país menos desigual? Eu diria que não apenas não cumpriria esses objetivos como iria na direção oposta. Deixe-me dar um exemplo com essas novas matérias inseridas no currículo do ensino médio — música, sociologia e filosofia. A lógica que norteou a decisão é que não seria justo que os alunos pobres fossem privados dos privilégios intelec-tuais de seus colegas ricos. O que não é justo, a meu ver, é que a adição dessas disciplinas torna ainda mais difícil para os pobres se equiparar aos alunos mais ricos nas matérias que realmente vão ser decisivas em sua vida. A desigualdade entre os dois grupos tende a aumentar. A triste realidade é que, por viverem em ambientes mais letrados e com pais mais instruídos, alunos de famílias ricas precisam de menos horas de instrução para se alfabetizar. É pouco provável que um aluno rico saia da 1ª série sem estar alfabetizado, enquanto é muito provável que o aluno pobre chegue ao 3º ano nessa condição. O aluno rico pode, portanto, se dar ao luxo de ter aula de música. Para nivelar o jogo, o aluno pobre deveria estar usando essas horas para se recuperar do atraso, especialmente nas habilidades basilares: português, matemática e ciências. É o domínio dessas habilidades que lhe será cobrado quando ingressar na vida profissional. Se esses pensadores querem a escola como niveladora de diferenças, se a diferença que mais impacta a qualidade de vida das pessoas é a de renda, e se a fonte principal de renda é o trabalho, então precisamos de um sistema educacional que coloque ricos e pobres em igualdade de condições para concorrer no mercado de trabalho. O que, por sua vez, presume uma educação desigual entre pobres e ricos, fazendo com que a escola dê aos primeiros as competências intelectuais que os últimos já trazem de casa. Estou argumentando baseado em uma lógica supostamente de esquerda (digo supostamente porque, nesse caso, é transparente que as boas intenções dos revolucionários de poltrona só aprofundam as desigualdades que eles pretendem diminuir).

O mercado de trabalho valoriza mais as habilidades cognitivas e emocionais não porque os nossos empregadores sejam mesquinhos, mas porque, em um mercado competitivo, precisam remunerar seus trabalhadores de acordo com sua produtividade. Essa é a lógica inquebrantável do sistema de livre-iniciativa. Não adianta pedir ao gerente de recursos humanos que seja “solidário” na hora da contratação e leve em conta que os candidatos à vaga vêm de origens sociais diferentes, porque, se o recrutador selecionar o funcionário menos competente, o mais certo é que em breve ambos estejam solidariamente no olho da rua. Não conheço nenhum estudo que demonstre o impacto de uma educação filosoficamente inclusiva sobre o bem-estar das pessoas. Mas há vários estudos empíricos sobre a desigualdade no Brasil. O que eles informam é assustador: o fator número 1 na explicação das desigualdades de renda é, de longe, a desigualdade educacional (disponíveis em twitter.com/gioschpe). Ao criarmos uma escola sobrecarregada com a missão de não apenas formar o brasileiro do futuro mas corrigir as desigualdades de 500 anos de história, nós nos asseguramos de que ela se tornará um fracasso. A escola não pode fracassar, pois é a alavanca de salvação do Brasil.

O tipo de escola pública que queremos é uma discussão em última instância política, e não técnica. É legítimo, embora estúpido, que a maioria dos brasileiros prefira uma educação que fracasse em ensinar a tabuada mas ensine bem a fazer um pagode. Acrescento apenas uma indispensável condição: que a população seja informada, de modo claro e honesto, sobre as consequências de suas escolhas. Quais as perdas e os ganhos de cada caminho. O que é, aí sim, antidemocrático e desonesto é criar a ilusão de que não precisamos fazer escolhas, de que podemos tudo e de que conseguiremos obter tudo ao mesmo tempo, agora. Infelizmente, é exatamente isso que vem sendo tentado. Nossas lideranças se valem do abissal desconhecimento da maioria da população sobre o que é uma educação de excelência para vender-lhe a possibilidade do paraíso terreno em que professores despreparados podem formar o novo homem e o profissional de sucesso. Essa utopia, como todas as outras, acaba em decepção e atraso. Essa pretensa revolução, como todas as outras, termina beneficiando apenas os burocratas que a implementam.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Precisamos de educação diferente de acordo com a classe social

 
 
NASCE UMA LEI - A sugestão que fiz em VEJA recebeu grande acolhimento e deu origem a dois projetos de lei, de autoria dos deputados Edmar Arruda e Ronaldo Caiado, que já chegaram à Comissão de Educação da Câmara, na qual serão relatados por Lelo Coimbra
NASCE UMA LEI - A sugestão que fiz em VEJA recebeu grande acolhimento e deu origem a dois projetos de lei, de autoria dos deputados Edmar Arruda e Ronaldo Caiado, que já chegaram à Comissão de Educação da Câmara, na qual serão relatados por Lelo Coimbra (Eraldo Peres/AP)
 
No fim do artigo do mês passado, lancei aos nossos congressistas uma sugestão: que façam uma lei determinando que toda escola pública coloque uma placa de boa visibilidade na entrada principal com o seu Ideb. A lógica é simples. Em primeiro lugar, todo cidadão tem o direito de saber a qualidade da escola que seu filho frequenta. Hoje, esse dado está "escondido" em um site do Ministério da Educação. É irrazoável achar que um pai que nem sabe o que é o Ideb vá encontrar esse site. Já que o dado existe e é de grande relevância para a vida do aluno e de sua família, não vejo nenhuma razão pela qual ele não seja divulgado para valer. Em segundo lugar, acredito que essa divulgação pode colaborar para quebrar a inércia da sociedade brasileira em relação às nossas escolas. Essa inércia está ancorada em uma mentira: a de que elas são boas. Os pais de nossos alunos, tanto das instituições públicas quanto das particulares, acham (em sua maioria) que a escola de seus filhos é muito melhor do que ela realmente é (em outra oportunidade falarei sobre as escolas particulares). Não é possível esperar uma mobilização da sociedade em prol da educação enquanto houver esse engano. Ninguém se indigna nem se mobiliza para combater algo que lhe parece estar bem. E não acho que seja possível a aprovação de qualquer reforma importante enquanto a sociedade não respaldar projetos de mudança, que hoje são sempre enterrados pelas pressões corporativistas.
A sugestão desencadeou dois movimentos rápidos, enérgicos e antagônicos. Por um lado, houve grande acolhimento da ideia entre os reformistas. Ela deu origem a dois projetos de lei no Congresso, dos deputados Edmar Arruda e Ronaldo Caiado, que já chegaram à Comissão de Educação da Câmara, na qual serão relatados por Lelo Coimbra. Já foi aprovada como lei municipal em Teresina, em projeto de Ronney Lustosa, e tramita como lei estadual no Piauí e em Mato Grosso. Está em discussão em outras cidades, entre elas São Paulo, onde o vereador Floriano Pesaro e o secretário de Educação, Alexandre Schneider, desenvolvem o projeto de lei. Depois que lancei a ideia nas páginas de Veja, vários veículos de mídia já a apoiaram: a Folha de S.Paulo, o Grupo RBS, o Grupo ORM e o jornal O Globo. Nizan Guanaes cedeu o talento do seu Grupo ABC para trabalhar na formatação gráfica e na normatização da placa.

Ao mesmo tempo, a proposta vem sofrendo resistências. As críticas são interessantes: escancaram uma visão amplamente difundida sobre os nossos problemas educacionais que não podemos mais ignorar ou tentar contornar. Precisam ser endereçadas. São compartilhadas por gente em governos, na academia, por jornalistas e ongueiros. É uma mistificação inclusiva, que acolhe pessoas de todas as idades, geografias, níveis de renda e intelectual.

Anderson Schneider
A MISTIFICAÇÃO de que, para o aluno pobre, o objetivo principal é estar na escola e de que aprender é um bônus precisa ser combatida
A MISTIFICAÇÃO de que, para o aluno pobre, o objetivo principal é estar na escola e de que aprender é um bônus precisa ser combatida

Disporia essa visão em três grupos, que postulam o seguinte: 1. para o aluno pobre, o objetivo principal é estar na escola; se aprender, é um bônus; 2. a finalidade da escola deve ser o bem-estar do professor; 3. é impossível esperar que o aluno pobre, que mora na periferia e vem de família desestruturada, aprenda o mesmo que o de classe média ou alta. Claro, ninguém diz isso abertamente, mas é o corolário do seu pensamento. Vejamos exemplos.

Grupo 1: o secretário da Educação do Rio Grande do Sul, José Clovis de Azevedo, declarou, em evento oficial em que falou como palestrante, a respeito de uma escola que tem o mais baixo Ideb de uma cidade da Grande Porto Alegre, que "o importante dessa escola não é o Ideb, mas o fato de ser uma escola inclusiva", pois recebe alunos de áreas de baixa renda etc. Essa é apenas uma manifestação mais tosca e descarada de um sentimento que você já deve ter encontrado em uma roda de conversa quando, por exemplo, alguém defende a escola de tempo integral porque tira a criança da rua ou do contato com seus amigos e familiares. É como se os pobres fossem bárbaros e a função da escola fosse civilizar a bugrada. O próprio MEC utiliza o conceito de "qualidade social" da educação, em contraposição a "qualidade total", esta última representada pelo apren-dizado dos alunos. Não conheço nenhuma definição acurada e objetiva do que seria essa "qualidade social", então utilizo a de um site da UFBA: "A Qualidade Social da Educação Escolar, para o contexto capitalista global em que se encontram nossas escolas, diz respeito ao seu desempenho enquanto colaboradora na construção de uma sociedade mais inclusiva, solidária e justa".

A minha visão de educação é de que a inclusão social se dará justamente por meio do aprendizado dos conteúdos e das competências de que esse jovem precisará para ter uma vida produtiva em sociedade: todas as pesquisas indicam que gente mais (e bem) instruída recebe maiores salários, e é através desse ganho de renda que as populações marginalizadas se integrarão aos setores não marginalizados da sociedade e romperão o ciclo secular de pobreza e exclusão. Acho criminoso contrapor essa "qualidade social" ao aprendizado ou usá-la como substituição deste, porque sob nenhuma condição o ignorante e despreparado poderá triunfar no mundo real. Muitos educadores acham que seu papel é suprir as carências - de afeto, higiene, valores de vida etc. - manifestadas pelos alunos. Podem não conseguir alfabetizá-los ou ensinar-lhes a tabuada, mas "a educação é muito mais que isso", e há uma grande vantagem: o "muito mais que isso" não é mensurável e ninguém pode dizer se a escola está fracassando ou tendo êxito nessa sua autocriada missão.

Outra secretária, Rosa Neide, de Mato Grosso, é boa representante do grupo 2. Ao comentar a proposta de lei em palestra recente, Rosa afirmou ser contrária a ela, pois sua aprovação traria grande dificuldade à secretaria, que se veria atolada de pedidos de alunos de escolas ruins querendo ir para escolas boas, e também causaria grande estigma aos professores das escolas ruins. É uma visão ecoada por muita gente boa que, sempre que ouve alguma medida da área educacional, se pergunta como isso impactaria seus profissionais. Parte das pessoas que pensam assim o faz por cálculo político: quer ficar "bem na foto" com os "coitados" professores, ou pelo menos não tomar as bordoadas destinadas àqueles que não se submetem à sua cartilha. Parte o faz por reflexo espontâneo: a discussão sobre o tema no Brasil foi de tal maneira dominada, nas últimas décadas, pelas corporações de seus profissionais que eles se tornaram nossa preocupação número 1.

Ouvimos a todo instante sobre a necessidade de "valorizar o magistério" e "recuperar a dignidade do professor", que é um adulto, que escolheu a profissão que quis trilhar e é pago para exercê-la. Apesar de o aluno ser uma criança e de ser obrigado por lei a cursar a escola, nunca vi ninguém falando na valorização do alunado ou na recuperação de sua dignidade. Por isso, faz-se necessário dizer o óbvio: a educação existe para o aluno. O bom professor (assim como o diretor e os demais funcionários) é uma ferramenta - importantíssima - para o aprendizado. Mas ele é um meio, não um fim em si. Se o professor estiver satisfeito e motivado e o aluno ainda assim não aprender, a escola fracassou. O lócus das nossas preocupações deve ser, em primeiro lugar, o aluno. Em segundo, o aluno. E em terceiro, aí sim... o aluno.

Philippe Lopez/AFP
O EXEMPLO ASIÁTICO - A China mostra que a ideia de que não pode haver educação de alto nível em cenário de pobreza é balela. No último Pisa, a província chinesa de Xangai, que tem nível de renda per capita muito parecido com o brasileiro, deu um show
O EXEMPLO ASIÁTICO - A China mostra que a ideia de que não pode haver educação de alto nível em cenário de pobreza é balela. No último Pisa, a província chinesa de Xangai, que tem nível de renda per capita muito parecido com o brasileiro, deu um show

Mas sem dúvida a oposição mais comum vem dos membros do grupo 3, que usam a seguinte palavra mágica: contextualizar. Escreve Pilar Lacerda, secretária da Educação Básica do MEC: "Divulgar o Ideb é necessário. Mas o contexto onde está a escola faz muita diferença nos resultados. Por isso é perigoso (sic) uma comparação ‘fria’ dos resultados". Quer dizer: não é possível avaliar a escola de alunos pobres e ricos da mesma maneira. Não se pode esperar que pobres aprendam o mesmo que ricos, por causa da influência do meio sobre o aprendizado. De forma que colocar uma placa com o aprendizado em uma escola sem atentar para o contexto social em que ela está inserida seria dar uma falsa impressão da verdadeira qualidade daquela escola e do esforço de seus profissionais. Essa visão é caudatária de um mal que acomete grande parte dos nossos compatriotas: o de achar que o esforço importa mais que o resultado. Ela pode dar algum conforto para os tropeços que alguém sofre em sua vida pessoal, mas na vida pública de um país, especialmente quando lidamos com gente com dificuldades, acho que devemos ser radicais: o esforço é absolutamente irrelevante, só o que importa é o resultado. Nesse caso, o aprendizado dos alunos. Tanto para o aluno quanto para o país. Porque aquele aluno, quando sair da escola e for buscar um emprego, não vai poder dizer: "Eu não sei a tabuada, não falo inglês nem sei o que é o pretérito imperfeito, mas o senhor deveria me contratar, porque eu nasci numa favela, meu pai me abandonou quando eu tinha 2 anos".

Da mesma forma, se exportarmos um produto mais caro e de menor qualidade que seus concorrentes, não poderemos esperar que o consumidor final decida comprar o nosso produto por ele conter uma etiqueta que diga: "Atenção, produto fabricado em país que só aboliu a escravidão em 1888 e foi vitimado por secular colonialismo predatório". O que importa é aquilo que o aluno aprende. É mais difícil fazer com que esse aluno, nesse contexto, aprenda o mesmo que outro de boa família? Sem dúvida! Mas o que precisamos fazer é encarar o problema e encontrar maneiras de resolvê-lo. O problema dessas escolas não é como os seus resultados ruins são divulgados, se serão servidos frios, quentes ou mornos: o problema são os resultados! E, quando começamos a querer escamotear a realidade, a aceitar desculpas, quem sofre é o aluno. Dados do questionário do professor da penúltima Prova Brasil tabulados pelo economista Ernesto Faria para a revista Educação mostram que mais de 80% dos mestres dizem que o baixo aprendizado "é decorrente do meio em que o aluno vive". Mais de 85% dos professores também apontam "o desinteresse e a falta de esforço do aluno" como razões para o insucesso da escola.

A China mostra que a ideia de que não pode haver educação de alto nível em cenário de pobreza é balela: no último Pisa, o teste de educação mais conceituado do mundo, sua província de Xangai, que tem nível de renda per capita muito parecido com o brasileiro (11 118 dólares versus 10 816 dólares no Brasil), apareceu em primeiro lugar em todas as disciplinas estudadas, enquanto o Brasil não ficou nem entre os cinquenta melhores. Relatório recente da OCDE (disponível em twitter.com/gioschpe) mostra que nosso país também fica na rabeira na recuperação de seus alunos pobres: aqui, só 22% dos alunos de baixa renda têm performance alta, enquanto na média dos países da OCDE esse número é de 31%, e na China é de 75%. Nosso problema não é termos alunos pobres: é que nosso sistema educacional não sabe como ensiná-los, e está mais preocupado em encontrar meios de continuar não enxergando essa deficiência do que em solucioná-la.

Por isso eu digo: precisamos, sim, de ensino e padrões diferentes para ricos e pobres. Mas é o contrário do preconizado pela maioria: precisamos que a escola dos pobres ensine mais do que a dos ricos. É difícil? Muito. Mas deve ser a nossa meta. Porque, se não for, não estaremos dando igualdade de oportunidades a pessoas que já nascem com tantos déficits em sua vida. E, se o Brasil como um todo não melhorar seu nível educacional, jamais chegará ao Primeiro Mundo. Esse é o non sequitur desse pensamento dos "contextualizadores": seria necessário nos tornarmos um país de gente rica para que pudéssemos dar educação de qualidade a todos. Mas a verdade é que o salto da educação precisa vir antes: sem educação de qualidade, não teremos desenvolvimento sustentado. Podemos nos enganar com um crescimento econômico puxado pela alta de valor das commodities, mas em algum momento teremos de encarar a realidade: um país não pode ser melhor, mais rico e mais bem preparado do que as pessoas que o compõem.

Gustavo Ioschpe
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/precisamos-de-educacao-diferente-de-acordo-com-a-classe-social

 

'Nossa escola não é feita para dar certo'

Isso se por "dar certo" entendermos a formação de uma pessoa com as habilidades mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu potencial

 
Empresas - tocadas como escolas iriam à falência
Empresas - tocadas como escolas iriam à falência (Iconica/ Getty Images)
 
Imagine que você trabalha em uma empresa em que os funcionários não ganham de acordo com sua competência, mas sim segundo seu tempo de casa e nível de estudo. Não há promoções, mas também só há demissão em casos de violação grotesca. Mesmo faltando repetidamente ao serviço, não alcançando sua meta ano após ano e maltratando seu cliente, você continua no posto até se aposentar. Imagine que não exista, em sua região, universidade que prepare bem para o seu emprego, de forma que você já chega ao trabalho não sabendo muito. Pior: tem gente que trabalha em área diferente daquela em que foi formada; o cara de vendas se formou em letras. Imagine que essa empresa só tenha dois cargos (funcionário e chefe) e que quase metade dos chefes tenha chegado ao cargo por indicação de um conhecido dos donos (o restante é majoritariamente eleito para a posição pelos funcionários). Imagine que os donos são muitos, que eles não costumam frequentar a empresa e que a herdaram como parte de um conglomerado, do qual a sua empresa é uma das que agregam menos valor aos donos. Imagine agora que o serviço prestado pela sua empresa é complexo e dirigido a crianças e jovens. Imagine também que essas crianças e seus pais não saibam julgar a qualidade do serviço, mas achem que está tudo bem, desde que você o empacote em uma embalagem bonita e dê aos clientes alguns brindes (uns livros, umas roupas, de repente até um laptop aos mais sortudos). A empresa consegue dar todos esses brindes; a maioria dos clientes está, portanto, satisfeita. Imagine que os clientes e seus familiares não precisem pagar diretamente pelo serviço: o pagamento vem da empresa-mãe (a que congrega todos os negócios do grupo) e é baseado na compra de outros produtos e serviços oferecidos por outras empresas do grupo.

Agora pense nesse ambiente de trabalho e responda às seguintes perguntas. Se você trabalhasse nele, estaria motivado a dar o seu melhor ou pegaria leve, esperando o contracheque no fim do mês? Como você acha que seus outros colegas de empresa se comportariam? Se lhe dessem um aumento salarial, você se esforçaria mais? Se você fosse uma pessoa carreirista, permaneceria nessa empresa? Aliás, você teria entrado nela? No caso dos chefes indicados pelos amigos dos donos, você acha que eles estariam mais preocupados em agradar aos clientes ou aos donos e seus amigos? No caso dos chefes eleitos por você e seus colegas, acha que eles comprariam briga com você para defender os interesses dos clientes ou virariam seus aliados? Presumindo que os clientes permanecessem satisfeitos e que continuassem pagando indiretamente pelo serviço, você acha que os donos se interessariam em reformar a empresa para que ela servisse melhor sua clientela, desse mais resultados? Ou será que suas prioridades seriam manter a coisa no estado em que se encontra e devotar suas energias para os outros braços do conglomerado, os que dão mais retorno?

Não sei qual o grau de sua fé na humanidade nem suas crenças na natureza humana, mas eu tendo a achar que a empresa acima seria uma balbúrdia, com profissionais desmotivados e trabalhando abaixo de sua capacidade, clientes mal atendidos, conchavos entre funcionários e chefes, donos desinteressados e pouco envolvidos. Eu acho que melhorar o salário dos funcionários não mudaria o problema. Vou além: enquanto essa estrutura de incentivos não fosse alterada, qualquer investimento numa empresa assim seria um desperdício de tempo e dinheiro. Aliás, não é uma opinião, até porque esse cenário não é hipotético nem trata de empresas. O quadro descrito retrata a maioria das escolas públicas brasileiras. Os funcionários são os professores, os chefes são os diretores de escola, os donos são a classe política, os clientes são os alunos. O resto não carece de alterações para chegar à realidade.

Aposto que você sabe que nossa educação é péssima e que esse problema é fatal para nossas possibilidades de desenvolvimento. Aposto também que você acha que esse problema não o afeta, especialmente se você põe seu filho em escola particular. Aposto que gasta mais tempo na seção de esportes do seu jornal do que naquela que cuida de educação. Se é que o seu jornal tem uma seção devotada ao assunto, já que 90% da cobertura do tema se limita a notícias sobre greves, ameaças de greve e outras reclamações salariais. E, até porque o assunto é apenas esse — dinheiro —, você acha (acha não: você tem certeza, depois de vinte ou trinta anos de leituras sobre o assunto) que o principal problema da educação brasileira é o salário dos professores. Aposto também que, dois parágrafos antes, você respondeu que aumentar o salário dos funcionários não resolveria nada, e aposto também que você gosta dos brindes (se você for mais pobre, merenda; se mais rico, lousa eletrônica ou currículo bilíngue) que a escola do seu filho dá.

Antes que os patrulheiros se arvorem, não estou querendo comparar a escola a uma empresa. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Apenas propus um exercício mental. O que espero que esse exercício tenha deixado claro é o seguinte: não é que a educação brasileira fracassa misteriosamente apesar dos melhores esforços de todos os envolvidos. Ela fracassa porque esse arranjo institucional requer a irracionalidade de todos os envolvidos, do prefeito ao professor. Nossa escola não é feita para dar certo — se por "dar certo" entendermos a formação de uma pessoa com as habilidades mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu potencial.

Washington Alves/AE
O professor apaixonado - supera deficiências
O professor apaixonado - supera deficiências

Não faz sentido para um professor brasileiro comprar a briga: com má formação, precisaria de um esforço hercúleo para obter grandes resultados. Mas esses resultados não lhe trariam reconhecimento, promoções, prêmios ou aumentos. Não faz sentido para o aluno brasileiro se esforçar: a aula que ele recebe é extremamente chata, a maioria dos professores não está muito preocupada com o seu aprendizado, e ele sabe que, se fizer um esforço mínimo, vai continuar sendo aprovado, mesmo sem aprender bulhufas. Não faz sentido para o diretor de escola se insurgir contra essa situação e querer mudar radicalmente o status quo. Se a sua nomeação depende de eleição dos professores, ele não vai querer exigir de seus eleitores mais trabalho e dedicação, até por não ter nada a lhes oferecer em troca. Se o diretor tiver indicação política, então, Deus o livre de qualquer incômodo: o importante é dar vida fácil a todos, carregar nos "brindes" e deixar os eleitores do seu padrinho político felizes. Não faz sentido para os pais dos alunos protestar contra o atual estado de coisas, porque a maioria deles está satisfeita com a educação que o filho recebe (em pesquisa recente do Inep, a nota média dada pelos pais de alunos da escola pública à qualidade da educação do filho foi 8,6!). E a maioria está satisfeita porque não tem condições intelectuais de avaliar o que é uma boa educação, pois é semiletrada, e nem sabe que existem avaliações oficiais sobre a qualidade do ensino do filho. Finalmente, não faz sentido para o político trabalhar para melhorar a qualidade do ensino: não há pressão por parte de alunos nem de seus pais, e há uma enorme resistência a qualquer mudança por parte dos sindicatos de professores e funcionários. Politicamente, só há custos, sem benefícios. Nenhum político racional mexe nesse vespeiro.

Há, é claro, as exceções. O professor apaixonado pelo que faz, que dá duro independentemente do salário, da carreira desanimadora, dos alunos desmotivados e dos colegas que o pressionam para se aquietar. O diretor comprometido, que se orgulha de fazer uma grande escola e seleciona profissionais que comprem essa batalha. Os alunos e seus pais que querem melhorar de vida e sabem que precisam de educação de qualidade, que lutam contra a pasmaceira. E os políticos comprometidos com a próxima geração, e não com a próxima eleição. Mas esses são minoria, e o sistema está contra eles. Enquanto a lógica do sistema não for alterada, todas as ações pontuais para melhorá-lo — da lousa eletrônica ao salário mais alto — provavelmente irão para o ralo. Acredito que o quadro só mudará quando a população passar a ver a educação brasileira como ela realmente é. Somente aí poderemos esperar a pressão popular por uma educação de qualidade, que gerará incentivo para que políticos cobrem desempenho dos funcionários do sistema. Ou seja, o problema é seu. Está esperando o que para fazer alguma coisa?


Gustavo Ioschpe

http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/nossa-escola-nao-e-feita-para-dar-certo