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terça-feira, 13 de março de 2012

Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade



Análise da obra
É o primeiro grande romance da prosa modernista brasileira. Redigido entre 1916 e 1923, foi publicado em 1924.

Estrutura da obra

Composto de 163 episódios numerados, tem por personagem principal João Miramar. A montagem fragmentária do romance impossibilita uma leitura tradicional e linear da história.

Uma série de inventivos traços de estilo e um agudo senso crítico da sociedade da época fazem desse texto uma grande obra de vanguarda.

De fato, o estilo fragmentário e sintético do texto é revolucionário na nossa prosa, assim como seu caráter cinematográfico. Os episódios assemelham-se mais a seqüências de um filme do que a capítulos de romance. Há uma ênfase muito grande no elemento visual e muitas das descrições adotam uma linha geométrica e sintética, bastante próximas dos princípios cubistas, que visa a apresentar fragmentos justapostos da realidade, numa tentativa de captá-la na sua totalidade.

Enredo

O enredo da obra é simples: João Miramar relata, ou melhor sugere, sua história pessoal; e se inicia na infância do herói, sugerida pela linguagem propositadamente infantil dos primeiros capítulos. Ainda adolescente, e com grande inclinação para a boêmia, Miramar faz a sua primeira viagem à Europa, a bordo do navio Marta. O romance assume, a partir daí, a forma de um verdadeiro diário de viagem, que acentua o cosmopolitismo dos pontos turísticos da Europa. De volta ao Brasil, por causa do falecimento de sua mãe, João Miramar casa-se com Célia, sua prima, mantendo, ao mesmo tempo, um romance com a atriz Rocambola, o que vai provocar o seu posterior desquite.

No final do romance, o herói fica viúvo, é abandonado pela amante e vai à falência, em virtude da má aplicação de fundos na indústria cinematográfica.

Nos últimos fragmentos, nota-se o amadurecimento de João Miramar que, retrospectivamente, redige as Memórias que o leitor está lendo.

Ao longo de capítulos revolucionariamente curtos, repassa os principais fatos que marcaram sua existência. As impressões deixadas pela infância, pela viagem ao exterior; o retorno ao Brasil; a 1ª Guerra Mundial; o namoro com Célia; o casamento; o nascimento de sua única filha (Celiazinha); o caso extraconjugal; a falência; o divórcio motivado pelo insucesso financeiro; a morte da ex-esposa; a recuperação da guarda da filha e da fortuna.

A história do narrador é banal. Não tem nada de especial. Nem acontecimentos bombásticos que orientam para um final que exprima a vitória do verdadeiro amor, nem conseqüências necessárias resultantes de um determinismo psicosocial. Já aí vemos o quanto Oswald distancia-se de toda literatura que o precedeu tanto na escolha quanto no tratamento do tema.

Além destas, a outra grande inovação é o trabalho de Oswald com a linguagem. Ao longo da obra o que mais chama atenção não é a narrativa mas a maneira que o narrador emprega para sugerir sua trajetória pessoal. Contudo, esta é uma questão que será tratada em outro momento.

Tempo / Espaço / Personagens

Memórias Sentimentais de João Miramar é uma obra até certo ponto caótica. Em virtude disso, a análise de categorias como tempo, espaço e personagens é quase impossível.

A época o local em que os fatos ocorreram não tem importância. O que importa é a maneira pela qual o narrador filtrou aquelas experiências e, principalmente, a linguagem que emprega para contá-las ao leitor.

A obra parece seguir uma ordem vagamente cronológica.

Os espaços não existissem para além das sugestões, das emoções que provocaram no narrador. Por isso, ele não se dá ao trabalho de fazer descrições, remetendo o leitor aos locais onde os fatos ocorreram pela simples menção de seus nomes (São Paulo, Paris, etc.).

Cada personagem tem sua vida própria, mas sua interferência na narrativa só existe sob a perspectiva do narrador. Por isso, com exceção de algumas características muitos gerais, nenhuma delas (nem mesmo o narrador) foi delineada, descrita física e psicologicamente. Tem um nome, isto basta. Contudo, há um traço que une-as:- seu apego excessivo ao dinheiro. É a partir deste ponto que a narrativa foi construída com o intuito de desmascarar, de satirizar suas relações sociais (ou devemos dizer econômicas?)

Foco narrativo

O foco narrativo na obra é predominantemente de 1ª pessoa. João Miramar relata os principais momentos de sua trajetória.

"Entrei para a escola mista de D. Matilde." (Cap. 5)

"Não disse nada do que queria dizer a Madô." (Cap. 10)

"Molhei secas pestanas para o rincão corcunda que vira nascer meu pai." (Cap. 58)

Em alguns momentos, o narrador de 1ª pessoa cede espaço a outros narradores também de 1ª pessoa. Isto ocorre quando são transcritas cartas e bilhetes:

Carta administradora
"Ilmo. Sr. Dr.
Cordeais saudações

Junto com esta um jacá de 15 frango que é para a criancinha se não morrê.
Confirmo a minha de 11 próximo passado que aqui vai tudo em ordem e a lavoura vai bem já estou dando a segunda carpa.


Fiz contrato com os colonos espanhol que saiu da Fazenda Canadá assim mesmo perciso de algumas familhas a porca pintada deu cria sendo por tudo 9 leitão e o Migué Turco pediu demissão arrecolhi na ceva mais de três capadete que já estão no ponto a turbina não está foncionando bem esta semana amanhã o Salim vem concertal.

O descascador ficou muito bom por aqui vão todos bom da mesma forma com a graça de Deus que com D. Célia fique restabelecido da convalecença é o que eu lhe desejo."

O emprego da transcrição de cartas e bilhetes de outras pessoas é um recurso muito empregado na literatura desde o romantismo . A utilização deste artifício sempre foi feita dentro de um contexto, seguindo um padrão a fim de não prejudicar a unidade lógica da narrativa. Todavia, isto que não ocorre em "Memórias Sentimentais de João Miramar".

Há momentos, ainda, em que foco narrativo de 1ª pessoa deixa de existir. Isto acontece quando a narrativa cede espaço à poesia.

Recreio Pingue-Pongue
Miramar a vida é relativa
O acontecimento não teria sido
Se nascesses só
Sem a mãe que te deixou virtudes caladas
O acontecimento te ofertou
A filhinha de olhos claros
Abertos para os dias a vir
És o ele de uma cadeia infinita
Abraça o Dr. Mandarim
E soma ele o azul desta manhã
Louçã"


Miramar (o narrador) dirige-se à Miramar (o homem), proporcionando ao leitor a oportunidade de conhecer a síntese deste diálogo interior de natureza poética. O foco se desloca de 1ª para 3ª pessoa e novamente para 1ª pessoa (afinal o "eu lírico" é sempre de 1ª pessoa mesmo quando não expressados abertamente os sentimentos do autor).

Em alguns capítulos a narrativa é impessoal, como se o narrador fosse de 3ª pessoa. Através deste artifício o autor dá a impressão que a narrativa vai se construindo por si mesma sem a interferência do narrador de 1ª pessoa que predomina na obra.

Costeleta milanesa

"Mas na limpidez da manhã mendiga cornamusas vieram sob janelas de grandes sobrados.

Milão estendia os Alpes imóveis no orvalho."

Foco de 1ª pessoa centrada no narrador personagem, foco de 1ª pessoa centrada em outras personagens, foco movendo-se de 1ª para 3ª pessoa e desta novamente para 1ª por força do emprego da poesia, foco impessoal dando a impressão de 3ª pessoa, tudo isto compõe o mosaico criado por Oswald de Andrade. Através do constante deslocamento do foco narrativo, Oswald de Andrade dá origem a um verdadeiro desconcerto da obra (quiçá para demonstrar a intensidade do desconcerto do mundo burguês).

Linguagem

A linguagem empregada nesta obra é telegráfica. O autor não narra, mas sugere através de capítulos curtos uma história com começo meio e fim. Contudo, cada capítulo é uma unidade que até pode ser lida independente das demais. O sentido de cada parte não se perde fora do contexto geral da obra.

Mas, isto não quer dizer que a prosa de Oswald de Andrade seja fácil. Ao contrário, cada um dos capítulos, apesar de extremamente curto, é uma charada, um enigma a ser desvendado. Oswald não facilita o trabalho do leitor.

Seu estilo opõe-se de um lado aos exageros científico-detalhistas da escola Realista e à passionalidade-emotiva da narrativa da escola Romântica. Em cada um dos capítulos o trabalho essencial do autor foi com a linguagem. Não se deixou envolver nem pela ciência nem pela emoção, filtrou a ambas procurando dar uma nova conformação a literatura.

No início, a linguagem fragmentada lembra muito a maneira de falar das crianças. Miramar (o narrador), relata sua infância.

O Pensieroso
"Jardim desencanto
O dever e processões com pálios
E cônegos
Lá fora
E um circo vago e sem mistérios
Urbanos apitando noites cheias
Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.
- O anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser a mãe de Deus.
Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido avermelhava.
- Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não tem pernas, são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que nas pernas, amém."


A narrativa é ágil, funcional, quase um fluxo de consciência. O narrador intencionalmente não pretende fixar-se neste ou naquele detalhe que retrata ao leitor, antes mistura-os intencionalmente para sugerir sua falta de capacidade de concentração (exatamente como uma criança). Prova disto é o último parágrafo, em que as idéias referidas anteriormente adentram na oração desfigurando-a, mudando seu sentido.

A ausência de pontuação reforça a tese de que o narrador relata sua infância como se fosse uma criança.

A medida que a obra prossegue e o narrador vai crescendo, a narrativa também vai se modificando. Começa o trabalho mais detalhado com a linguagem.

Veleiro

"A tarde tardava, estendia-se nas cadeiras, ocultava-se no tombadilho quieto, cucava té uma escala de piano acordar o navio.

Madame Rocambola mulatava um maxixe no dancing do mar.

Esquecia-me olhando o céu e a estrela diurna que vinha me contar salgada do banho como estudara num colégio interno. Recordava-me dos noivados dormitórios de primas.

Uma tarde beijei-a na língua."

No capítulo acima fica evidente que a preocupação do narrador já é outra, diferente daquela existente no início. Aumenta a intensidade do substantivo "tarde" com um verbo criado a partir dele mesmo "tardava". Cria o verbo "mulatava" para designar a ação da personagem de unir o nacional (maxixe) e o estrangeiro (dancing). A narrativa já não é um fluxo de consciência, mas o produto de um trabalho poético em que não se abre mão do emprego da metáfora ("...a estrela diurna vinha me contar salgada do banho..").

Em alguns momentos a poesia vai tomar integralmente o texto.

Indiferença
"Montmartre
E os moinhos do frio
As escadas atiram almas ao jazz de pernas nuas

Meus olhos vão buscando lembranças
Como gravatas achadas

Nostalgias brasileiras
São moscas na sopa de meus itinerários
São Paulo de bondes amarelos
E romantismos sob árvores noctâmbulas

Os portos de meu país são bananas negras
Sob palmeiras
Os poetas de meu país são negros
Sob bananeiras
As bananeiras de meu país
São palmas claras
Braços de abraços desterrados que assobiam
E saias engomadas
O ring das riquezas

Brutalidade jardim
Aclimatação

Rue de La paix
Meus olhos vão buscando gravatas
Como lembranças achadas."


Miramar (o narrador) é sem dúvida alguma um poeta modernista dialogando com a literatura romântica à medida que refere-se à sua viagem ao exterior . Não podemos deixar de notar a evolução que vai ocorrendo lentamente na arte do narrador. Da infância para a mocidade, desta para a maturidade (tomada de consciência de sua própria cultura).

Mas, não é só de poesia que o narrador serve-se para sugerir sua história. Há momentos em que a linguagem é referencial.

 

Terremoto

"O Pantico estava na Bélgica em pleno perigo de ser fuzilado ou morrer de fome.

Mas depois de copos espumantes de leite eu acreditava de geografia aberta sobre a mesa que a situação dos alemães não era brilhante. Em vinte dias eles apenas tinham entrado em Bruxelas e tomado Liège, a cidade, conservando-se nas mãos dos heróis belgas a linha de fortes quase completa. E na fronteira intacta da França deviam reunir-se com certeza nessa hora dois milhões de soldados.

Molestados pelo flanco em Antuérpia, sem poder esquecer o exército francês vitorioso na Alsácia Lorena e a avalanche russa que ameaçava Thorn e Danzig, era de prever-se o esmagamento desses bárbaros em algumas semanas. E se a Itália entrasse contra a Áustria nos primeiros dias de Setembro, como era certo, a guerra podia terminar por nocaute científico nesse mesmo mês."

Conquanto Oswald empregue algumas metáforas (p.e."... de geografia aberta sobre a mesa" = mapa) a linguagem deste capítulo difere das demais. É predominantemente referencial. Há uma adequação entre a seriedade do tema tratado (a guerra) e a linguagem empregada pelo narrador, deixando transparecer que num momento (ou tema) como aquele a poesia cede ou deve ceder espaço à prosa.

A ironia é muito presente na obra. É empregada para demolir a sociedade burguesa, revelando seu verdadeiro valor moral, que para Oswald é monetário.

"...E Rolah trazia ao céu do cinema um destino de letra de câmbio." (Cap. 32)

A Letra de Câmbio é um título de crédito inventado na Idade Média para possibilitar as transações à longa distância. Empregando-as, os negociantes evitavam o transporte de somas elevadas em dinheiro, diminuindo o risco de serem aliviados por salteadores. A Letra de Câmbio desempenhou e ainda desempenha um papel importante nas relações econômicas capitalistas. Ao referir-se a ela, Oswald evidencia o caráter essencialmente econômico das relações sociais burguesas.

Em dois momentos, o casamento (principal instituição burguesa da época) é ferido mortalmente pela pena do autor:

"...o casamento é um contrato indissolúvel." (Cap. 42)

"...separação precavida de bens." (Cap. 62)

Em alguns momentos o trabalho do narrador cede espaço para o registro fiel da oralidade na escrita tal como praticada por outras pessoas.

Reserva
" 21 de Abril
Seu Dr.


Peguei hoje na pena para vos Felicitar os nossos antes Passado sendo um dia de grande gala, para nós no nosso Grande Brasil sendo o dia do nobre Brasileiro Tiradentes que foi executado na forca, mais tudo passa vamos tratar do nosso futuro que é melhor os passado eram bobos, por aqui todos Bom grassas a Deus o mesmo a todos que aí estão..."

Existem passagens em que a linguagem empregada por Oswald é ambígua:

"...conspurcada vindos em bonde dos tabeliães protestantes." (Cap. 145)

"...bestenamorada dum mineiro de minas." (Cap. 154)

No primeiro fragmento fica-se sem saber se os tabeliães professam a religião protestante ou se protestaram (cobraram através de Cartório) o narrador. No segundo, se mineiro é o natural de Minas Gerais, filho de cidadãos daquele Estado ou se é o operário que trabalho em mina.

Em todos os fragmentos citados é evidente que a sintaxe empregada na obra segue um padrão diferente do usual. Os elementos da frase são embaralhados, a classificação das palavras intencionalmente destruída. Com isto, Oswald coloca em xeque a própria capacidade do leitor ler a obra a partir da língua que domina. Memórias Sentimentais de João Miramar não é apenas uma obra escrita sob influência cubista é uma obra cubista em todos os sentidos.

Como atesta Antonio Candido, Memórias Sentimentais de João Miramar é a primeira grande experiência de prosa modernista no Brasil, e só por isso sempre merecerá destaque na História da Literatura Brasileira.

Recursos expressivos

Ao longo da obra Oswald abusa de recursos de linguagem, muitas vezes misturando-os com um poder de síntese invejável.

METONÍMIA - "... de geografia aberta sobre a mesa..." (Cap. 79) = mapa

ONOMATOPÉIA - "...No silêncio tique-taque..." (Cap. 8) (Antítese:- silêncio/barulho)

"Dez horas da noite, o relógio farto batia dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão! dão!

HIPÉRBATO - "... mapas do secreto Mundo." (Cap. 9) ao invés de "...mapas do Mundo secreto."

ALITERAÇÃO - "...punha patetismos pretos..." (Cap. 22)

PARADOXO - "...Companhia Industrial e Segurista de Imóveis Móveis..." (Cap. 119)

PROSOPOPÉIA - "... Depois casas baixas desanimaram a planície cansada." (Cap. 113)

SINESTESIA - "...de janelas cerradas e acesos silêncios." (Cap. 153)

O emprego de trocadilhos é comum na obra:- "... sátiras à sociedade de sátiros..." (Cap. 72)

A exemplo de outros escritores, Oswald também realiza diálogos intertextuais, fazendo referência aos seguintes autores, personagens e obras:- O primo Basílio (Eça de Queiroz) Cap. 100

-Herodes (Bíblia) Cap. 98

-Lord Byron (poeta romântico) Cap. 155

-Virgílio (poeta latino) Cap. 163

Faz referência à vanguarda artística européia (Picasso, Satie e João Cocteau - Cap. 51, Isadora Duncan - Cap. 47).

Também é marcante o emprego de vocábulos e expressões em línguas estrangeiras:- Inglês Francês Espanhol Italiano: dancing habitué encuentro de ustedes si sinhore / It is very beautiful! Mademoiselle / board-house tour du monde / Albany Street goudron-citron / Latim / Res non verba!

A obra registra também uma variante do português resultante da influência da migração árabe:- "- Aqui nong teng acordo. Teng pagamento! (Cap. 148)

Há um momento que Oswald recorre as todas as línguas e língua nenhuma:- "...Os Estados Unidos é cotuba. All right. Knock Out! I and my sisters speak french. Moi et ma soer nos savons paletre bien le Français. Eu e a minha ermam sabemos falal o francês..." (Cap. 68)

Ao destruir e reconstruir diversas línguas em busca de novos significados e formas de expressão, Oswald deve ter escandalizado seus contemporâneos. Ainda hoje a leitura de passagens como estas causam um certo espanto, embora o recurso já tenha sido universalizado por Umberto Eco (em o Nome da Rosa o personagem Salvatore fala uma língua que mistura latim, italiano, francês, espanhol, etc..., ou seja, fala todas as línguas e nenhuma ).

Ao longo da obra Oswald cria diversos neologismos. Dentre eles destacamos um para dar uma idéia da riquesa da criatividade do autor: - ORINÓIS (Cap. 138) = OURO (metal precioso) + URINOL (recipiente empregado para colher urina).

Através deste neologismo, criado a partir de duas palavras de campos semânticos distintos mas que guardam uma interseção gráfica (UR), Oswald redefine o valor do urinol e do ouro, zombando da burguesia que emprega ambos. Além disso, "OURINÓL" é um neologismo difícil de classificar, pois traz em si a idéia de um substantivo e ao mesmo tempo de um adjetivo (dourado). Consideremo-lo, para efeito deste trabalho como um substantivo.

O maior recurso expressivo empregado pelo autor é a criação de vocábulos.

Verbos Substantivos Adjetivos: Vagamundear, cornamusas, calva, gramática note-americava, neopropriedades comerciaturos, tombadilhavam, reisreais, jantar, fazendeira, cosmoramava, automobilizados, fazendeiral, tardava, ourinóis, paisajal, mulatava, caradura, respeitabundos, sentinelando, bestenamorada, espinafrado, gondolamos, institutal, turcavam, pince-nez, arqueólogo, guardanapando, mulatal, boulevardearam, perdoadora, verticalavam, pianal, pullmavam, quilometrais, quilometraram, charutal, frigorificavam, bolsentas, eldoradava, genealogias, fascícolas, morenava, gramofônica, fox-trotar, alfandegueiros, transatlanticarem, apelidais, beiramarávamos, figueiradal, bandeiranacionalizavam, calomelânica, britanizávamos, criadais, fordei, fortunais, grandilocou, ramazevedos, esperançava, matadoural, taxizara, carbogramado, cilindravam, marideiro, parisiavam, lanteijoulante, seminudava.

Ideologia

A obra apresenta uma crítica ao casamento como instituição burguesa (união por interesse).

"Separação precavida de bens" (Cap. 62)

O motivo da separação do casal João Miramar/Célia é falência financeira dele: "A margem disso o caso financeiro negreja no horizonte. O Senhor adquiriu rapidamente uma reputação de dilapidador." (Cap. 142)

O interesse do pai pela filha só ocorre após a morte da mulher: "Foi à ele que corri na aflita busca de minha Celiazinha, feita milionária e só pelo Deus das revisões do processo." (Cap. 157)

Através do livro, Oswald ressalta e satiriza o caráter patrimonial das relações sociais burguesas: "E Rolah trazia ao céu do cinema um destino de letra de câmbio." (Cap. 32)

Em duas oportunidades Oswald registra a utilização de dinheiro público para viagens de artistas ao exterior: "Dalbert de subsídio e trombone ia partir para a conquista da Europa." (Cap. 26)

"João Jordão que não era artista nem nada parecida magro e uma tarde arranjou subsídio governamental para estudar pintura em Paris." (Cap. 22)

A linguagem também reflete uma escolha ideológica. Oswad quebra a forma usual de narrar, rompendo definitivamente com as escolas literárias que o antecederam, e com uma determinada concepção da língua portuguesa (abusa de neologismo, cria verbos, adjetivos, etc.).

Memórias Sentimentais de João Miramar é uma narrativa que se recusa a construir-se como tal. Assim, através deste verdadeiro mosaico que é a obra, Oswald de Andrade não pretende somente explodir as bases da literatura da época, mas também e principalmente implodir a sociedade burguesa e seus valores morais.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os poemas-piada de Oswald de Andrade

oswald
Senhor
Que eu não fique nunca
Como esse velho inglês
Aí do lado
Que dorme numa cadeira
À espera de visitas que não vêm



Entre os poemas sintéticos e polêmicos de Oswald de Andrade está este: AMOR/ HUMOR.
Composto apenas por duas palavras, o título "Amor" definido como "humor", pode provocar estado de graça ou provocar o mau-humor. O poema é curtíssimo e parece apenas uma brincadeira com palavras, uma simples rima. Mas essa rima pode ser vista como complexa, à medida que o autor não pretende definir o amor de forma retórica ou mesmo expressar seus sentimentos, como os românticos.

Oswald é anti-romântico e anti-retórico, pois sabe que o amor, assim como tantos outros acontecimentos da vida, não pode ser definido em um poema. Porém, com a rima apresenta uma visão dessacralizada do amor, que não é habitual nem sisuda, o amor pode ser visto como sentimento dependente também das variações de humor. A felicidade, a euforia, a alegria como idealismos amorosos, mas até a perda de um amor poderá também ser vista com bom humor, sem necessidade de se morrer por ele, como queriam os poetas românticos.

Portanto, apesar da maneira aparentemente descompromissada com que o poema-piada aborda o tema, podemos verificar que ele nos leva a reflexões mais amplas e não apenas ao riso.


Amor
Humor

Canto de regresso à pátria
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.


A descoberta
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.



O capoeira
— Qué apanhá sordado?
— O quê?
— Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada.


O gramático
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou.


Vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados


Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro


Oferta
Quem sabe
Se algum dia
Traria
O elevador
Até aqui
O teu amor


Erro de português
Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

FIM E COMEÇO
A noite caiu sem licença da Câmara
Se a noite não caísse
Que seria dos lampiões?

Relicário
No baile da corte
Foi o conde d’Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí


3 DE MAIO
Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi.

DITIRAMBO
Meu amor me ensinou a ser simples
Como um largo de igreja
Onde não há nem um sino
Nem um lápis
Nem uma sensualidade...
 



 

terça-feira, 22 de março de 2011

Oswald de Andrade (1890-1954)





“Viajei, fiquei pobre, fiquei rico, casei, enviuvei, casei, divorciei, viajei, casei... já disse que sou conjugal, gremial e ordeiro. O que não me impediu de ter brigado diversas vezes à portuguesa e tomado parte em algumas batalhas campais.”

José Oswald de Sousa Andrade nasceu em São Paulo em 1890. Presenciar a virada do século, aos 10 anos, foi marcante, como relembra o poeta já adulto: "Havíamos dobrado a esquina de um século. Entrávamos em 1900... " . São Paulo despertava para a industrialização e a tecnologia. Abria-se um novo mundo urbano, que Oswald logo assimilaria fascinado: o bonde elétrico, o rádio, o cinema, a propaganda com sua linguagem-síntese...
 

Oswald tinha 22 anos quando fez a primeira de várias viagens à Europa (1912), onde entrou em contato com os movimentos de vanguarda. Mas só depois de dez anos empregaria as técnicas desses movimentos. De qualquer forma, divulgou o Futurismo e o Cubismo. O terceiro casamento, com Tarsila do Amaral, em 1926, forjou o casal responsável pelo lançamento da Antropofagia. Mário os chamava de "Tarsiwald"... Com Tarsila voltou à Europa algumas vezes. A crise de 29 abalou as finanças do escritor.

Oswald de Andrade por Tarsila do Amaral


Vem a separação de Tarsila e uma nova relação: Patrícia Galvão (Pagu), escritora comunista. Oswald passou a participar de reuniões operárias e ingressou no Partido Comunista. Casou-se mais uma vez, depois de separado de Pagu, até que, já com 54 anos, conheceu Maria Antonieta d'Alkmin. Permaneceram juntos até a morte do poeta, em 1954.

Nenhum outro escritor do Modernismo ficou mais conhecido pelo espírito irreverente e combativo do que Oswald de Andrade. Sua atuação intelectual é considerada fundamental na cultura brasileira do início do século. A obra literária de Oswald apresenta exemplarmente as características do Modernismo da primeira fase.

Em Pau-Brasil, põe em prática as propostas do manifesto do mesmo nome. Na primeira parte do livro, "História do Brasil", Oswald recupera documentos da nossa literatura de informação, dando-lhe um vigor poético surpreendente.

erro de português
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
o português.


                                                                         pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

(Fragmentos do livro de poesias Pau-Brasil, de Oswald de Andrade)

Na segunda parte de Pau-Brasil - "Poemas da colonização" -, o escritor revê alguns momentos de nossa época colonial. O que mais chama a atenção nesses poemas é o poder de síntese do autor. No Pau-Brasil há ainda a descrição da paisagem brasileira, de cenas do cotidiano, além de poemas metalingüísticos.

Oswald de Andrade por Tarsila do Amaral



A poesia de Oswald é precursora de um movimento que vai marcar a cultura brasileira na década de 60: o Concretismo. Suas idéias, recuperadas também na década de 60, reaparecem com roupagem nova no Tropicalismo.

Memórias sentimentais de João Miramar chama a atenção pela linguagem e pela montagem inédita. O romance apresenta uma técnica de composição revolucionária, se comparado aos romances tradicionais: são 163 episódios numerados e intitulados, que constituem capítulos-relâmpago - tudo muito influenciado pela linguagem do cinema - ou, mais precisamente, como se os fragmentos estivessem dispostos num álbum, tal qual fotos que mantêm relação entre si. Cada episódio narra, com ironia e humor, um fragmento da vida de Miramar. "Recorte, colagem, montagem", resume o crítico Décio Pignatari.

O material narrativo segue esta ordem: infância de Miramar, adolescência e viagem à Europa a bordo do navio Marta; regresso ao Brasil, motivado pela morte da mãe; casamento com Célia, e um romance paralelo com a atriz Rocambola; nascimento da filha; divórcio e morte de Célia; falência de Miramar.

Em 1937 publicou-se O rei da vela, peça que focaliza a sociedade brasileira dos anos 30. Pelo seu caráter pouco convencional, só foi levada a cena trinta anos depois, integrando o movimento tropicalista.
Obra
Poesia: Pau-Brasil (1925); Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade (1927); Cântico dos cânticos para flauta e violão (1945); O escaravelho de ouro (1945).
Romance: Os condenados (trilogia) (1922-34); Memórias sentimentais de João Miramar (l924); Serafim Ponte Grande (1933); Marco Zero - a revolução melancólica (1943).
Teatro: O homem e o cavalo (1934); A mona (1937); O rei da vela (1933).
Além disso, publicou os manifestos que já conhecemos: Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924); Manifesto Antropófago (1928). Escreveu ainda artigos e ensaios.

Raízes futuristas

Se não parece cabível presumir antes é de rejeitar a hipótese de uma influência direta do Ulysses sobre o Miramar, é perfeitamente compreensível que se possam vislumbrar certas afinidades técnicas entre ambos. Por trás de um e de outro atua­ram os manifestos, a poesia e a prosa de combate dos futu­ristas. Oswald relata (Um Homem sem Profissão): "Dos dois manifestos que anunciavam as transformações do mundo, eu conheci em Paris o menos importante, o do futurista Marinetti. Carlos Marx me escapara completamente" (p. 124). "Uma aragem de modernismo vinda através da divulgação na Europa do "Manifesto Futurista", de Marinetti, chegara até mim" (pág. 134). Mário da Silva Brito completa a informação: "Regres­sando da Europa, em 1912, Oswald de Andrade fazia-se o pri­meiro importador do "futurismo", de que tivera apenas notícia no Velho Mundo. O Manifesto Futurista, de Marinetti, anun­ciando o compromisso da literatura com a nova civilização técnica, pregando o combate ao academismo, guerreando as quinquilharias e os museus e exaltando o culto às "palavras em liberdade", foi-lhe revelado em Paris"

Prosa cinematográfica

O tempo requeria uma nova poesia e uma nova prosa, comensuradas ao cinema. Com razão observou Antônio Cân­dido, escrevendo sobre Os Condenados, que Oswald fora o lan­çador da técnica cinematográfica em nosso romance, caracte­rizada pela "descontinuidade cênica", pela "tentativa de simultaneidade, que obcecou o modernismo e que, entre nós, teve no Sr. Mário de Andrade o seu teórico (A Escrava que não ê Isaura) e um dos seus poetas"51. Esta técnica é uma constante na obra de Oswald. Do Marco Zero diria Roger Bastide que sua construção obedeceu a uma "ordem simultaneísta", sorte de "romance espacial"52. 51 Antônio Cândido, ob. cit. na nota 8, p. 15. No Escrava, de 1924, ensaio de estética modernista dedicado a Oswald de Andrade, Mário prefere falar em "polifonia poética" para exprimir a simultaneidade. Aliás, a correlação já está nos Manifestos Futuristas: recorde-se o pri­meiro item do Manifesto da Pintura Futurista, transcrito páginas atrás.

 Vanguarda e Antropofagia

A Vanguarda Antropofágica analisa a atuação de uma das correntes mais dinâmicas do Modernismo: aquela representada pela Revista de Antropofagia (l928-1929), animada por Oswald de Andrade e que circulou em duas fases, sob a direção de importantes escritores modernistas (Raul Bopp, Antônio de Alcântara Machado, Jaime Adour da Câmara).
A Antropofagia radicaliza atitudes estéticas e ideológicas esboçados pelo movimento de 22, ou melhor, realiza um balanço crítico contundente dos saldos deixados pela rebeldia literária da Semana. O processo paródico e a técnica da montagem são usados para profanar os mitos da cultura oficial e, em determinado momento, também os expoentes do nosso Modernismo.