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quinta-feira, 10 de maio de 2012

Anjo Negro ( Nelson Rodrigues )

v      Anjo Negro, peça teatral de Nelson Rodrigues, foi escrita em 1946. O autor ao perceber o preconceito de que o negro é alvo na sociedade brasileira e a existência de preconceito no negro em relação a outro da mesma cor, resolveu escrevê-la. Naquela época, o Brasil encontrava-se em um período de grandes modificações na organização do estado brasileiro, saindo de um período de bastante restrição ideológica e entrando num período onde reinava a esperança em um país desenvolvido e livre. Tem-se uma modificação evidente, um período conturbado na esfera social, modificações na maneira de governar.

v      Um outra razão de Nelson Rodrigues escrever Anjo Negro foi porque achava um absurdo o negro ser representando no teatro apenas como o “moleque gaiato” das comédias de costumes ou por tipos folclorizados. Por isso, criou um personagem – Ismael – de classe média, inteligente, mas também com paixões e ódios, ou seja, “um homem, com dignidade dramática”, enredado em situações proféticas e míticas. O autor, em várias ocasiões, afirma ter escrito o personagem para seu amigo Abdias representar, pois, segundo ele, era o “único negro do Brasil”.

v      O protagonista de Anjo negro, Ismael, é audacioso, Nelson não faz concessões. Sem paternalismo, concebe um personagem na contramão dos personagens negros que geralmente se conhece: não é moleque, malandro ou empregado subalterno, trata-se aqui de um homem cheio de ressentimentos e paixões, mas também de orgulho e sensibilidade, um vencedor, bem-sucedido, arquiteto do seu destino.

v      A questão racial é tratada de forma radical. Numa sociedade dominada pelo branco, a única estratégia possível de inserção é a adoção da ética branca, dominadora e autoritária. Repudiando sua cor e origem, Ismael desfruta dos privilégios do branco: dinheiro, status, prestígio e uma mulher também branca.

v      A peça é apresentada em três atos. Em sua primeira encenação o cenário apresentou-se sem nenhum caráter realista: um pequeno caixão de seda branca ocupava o andar térreo da casa onde dez senhoras pretas se postaram em semicírculo e formaram um coro, como no teatro grego. No segundo andar, duas camas, uma delas quebrada, ajudavam a compor o cenário. No primeiro andar, Ismael, o negro que representa o anjo, vestia um terno branco, engomadíssimo, e calçava sapatos de verniz. No andar de cima, Virgínia, sua esposa, branca, trajava luto. “A casa não tem teto, para que a noite possa entrar e possuir os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro” (p.125). É nesse cenário que se inscreve o drama, que também reproduziu cenas da infância do autor em Aldeia Campestre, Rio de Janeiro, onde morou. Quando criança, Nelson não perdia velórios. O drama humano o instigava: ora curioso por capturar o desespero de mães que choravam a perda dos filhos, ora curioso para perceber a sinceridade ou não das viúvas que choravam a morte dos maridos.

v      O espaço onde, concentradamente, desenrola-se Anjo Negro é, pois, um espaço marcadamente diferenciado. A entrada de pessoas no lar é completamente restrita e coordenada pelo dono, o negro, o anjo negro, Ismael. Brancos não podiam se aproximar.Na trama de Anjo Negro, pulula a violência, nas suas mais diversas formas, das mais variadas naturezas, em constantes situações. As personagens são violentas entre si, sofrem a violência, vivem-na. Há vinganças recíprocas e intermináveis. Há ódio dissimulado no amor. Amor dissimulado no ódio. Ou somente um desejo, que gera violência. A história de Anjo Negro apresenta-se, assim, como uma rede truncada de muita violência.

v      Apesar de ser formalmente bem mais semelhante à tragédia clássica, é difícil organizar Anjo Negro dentro dos padrões trágicos. Ismael também é movido por amor, e esse exagero de amor o faz incorrer em erros ainda mais graves, como o assassinato da filha; mas seu maior erro é o preconceito com sua cor. Se tratar-se Virgínia como heroína, teríamos uma estrutura semelhante à de seu marido; seu erro seria o mesmo, é o preconceito da cor, mas depois do casamento, ele se torna repugnante a ela que, por ódio, mata seus filhos. Mas eles não cometem seus erros sem ter consciência de que os estão cometendo, é eticamente inadequado discriminar alguém por sua cor e eles sabem disso; contudo é difícil considerá-los personagens maus, por que a sociedade em que estão inseridos é fortemente racista o que quase os impele para o erro. Então volta-se a ter o dilaceramento entre o individual e o social. O indivíduo, no caso Ismael, sabe que tem a mesma capacidade que os brancos, mas a sociedade não acredita nisso. Ismael se embate nesse conflito e para provar que é capaz, se forma em medicina, mas para se valorizar não busca a valorização de sua cor, mas a negação dela; ele passa a sentir branco e agir como tal discriminando os negros; desta forma ele nega o individual para dar lugar ao social.

v      Essa estrutura formal provoca um estranhamento grande, pois não se formam duas forças de igual valor moral; uma é o funcionamento normal e equivocado da sociedade; outro é a valorização de uma cor tão boa quanto todas as outras. O destaque que Ismael recebe também reforça esse estranhamento, mostra o quanto ele é capaz, mas mesmo assim discriminado por ser negro. A presença do coro de mulheres negras que amaldiçoam o negro que casou com a branca também mostra que há discriminação pelos dois lados, as duas cores tentam desvalorizar a outra a fim de valorizar a sua, isso fica evidente quando o coro afirma que Virgínia tem o útero fraco.

v      Todavia, Nelson Rodrigues usa muitos aspectos formais clássicos, como o uso do coro, com a função de trazer para o palco a opinião do senso comum sobre a situação apresentada; nesta peça ele é feito por um grupo de senhoras negras, como já visto, que rezam no velório dos filhos do casal. Também tem-se a perfeita unidade de espaço, só existe a casa de Ismael e Virgínia, não há mundo exterior. O tempo já é mais extenso, tem-se o nascimento e crescimento de Ana Maria, que não é totalmente apresentado, isso faz com que se perca também a unidade de ação; obviamente, sem que isso prejudique a qualidade da peça.

v      A condição de Ismael enquanto homem superior é bastante delicada, ele é um excelente médico o que lhe garante grande prestígio social, também é esforçado, venceu por meio de seus próprios esforços às adversidades que a vida lhe trouxe, mas renegou a família e faz de sua esposa uma prisioneira, além de ser cruel com todos à sua volta. Também não tem uma posição de liderança, ele só se impõe à esposa. Mas o seu erro também foi o motivo que lhe trouxe prestígio. Ele erra por ter vergonha de sua cor, mas ele também se esforça e vence na vida por isso mesmo. Ele quer compensar sua cor com qualidades que quase só os brancos têm neste momento histórico. Ele tem a trajetória do herói trágico, durante a peça, passa da fortuna ao infortúnio. Na morte do filho, no primeiro ato, ele é um homem de prestígio apesar de marcado pela tristeza da perda de todos os filhos. Já no final acabam só ele e a esposa partindo para uma morte em vida, após os dois terem matado seus filhos; ela, os meninos e ele, a menina.

v      Virgínia, sua esposa, assassina por afogamento, um a um os filhos que trazem em si a marca da mestiçagem e odeia a filha, fruto do adultério com o cunhado Elias. Ela não quer que haja descendência do negro, seu marido. Ismael é testemunha dos crimes da mulher e acreditava que esses crimes os uniam ainda mais. Isso fica claro quando, próximo ao final da peça, Ismael diz a Virgínia saber ser ela a assassina dos filhos e que, mesmo assim, nada fez para impedir o ato. Ambos recusavam a mestiçagem, os traços negros na pele. Tal qual na tragédia grega, a maldição atinge a descendência. A mãe de Ismael o teria amaldiçoado por este repudiar a própria cor e ele a culpa por ser negro, problema que tentou disfarçar tornando-se um médico competente e rico. Acreditava que, alcançado status, poderia encobrir o fato de ter a pele negra.

v      Ismael, por sua vez, rejeita sua cor. A inveja que sentia de seu irmão branco, de criação, Elias, leva-o a cegar Elias, ainda na infância, através de uma engendrada troca de remédios. É também pelas mãos de Ismael que Elias morre, num ato de vingança pela traição sofrida, uma vez que Elias cedeu à sedução de Virginia. A singularidade Ismael contrasta com a grande galeria de homens e mulheres rodriguianos, onde, em determinado momento da ação, os personagens retiram as máscaras e se apresentam, inesperadamente, na mais completa nudez psíquica. O que faz uma pessoa renegar a própria cor? Este é o questionamento rodrigueano expresso pela voz de Elias.

v      Decidido a "se tornar branco", Ismael executa, com êxito e sem remorso, sua estratégia. Com formação superior, era um "médico de mão cheia, de muita competência, o melhor de todos"; casou-se com uma mulher branca e muita linda e renegou a mãe negra, causadora de sua desgraça.Vestia-se sempre de branco, impecável. Quando a peça começa,Virgínia e Ismael estão casados, tiveram três filhos negros, mas todos foram mortos por ela. Tendo sido violentada por Ismael, obrigada a se casar com ele e encarcerada dentro de casa, Virgínia aguarda o momento da vingança definitiva, gerar um filho branco. Enquanto transcorre o velório do terceiro filho, chega à casa Elias, o irmão de criação de Ismael, branco e cego, trazendo a maldição da mãe negra. Seduzido por Virgínia, Elias é em seguida morto por Ismael. Ela engravida e dá a luz uma menina branca. Ismael, durante meses, se debruça sobre o berço para que a menina não esqueça sua cor e, completando seu plano, um dia pinga ácido nos olhos dela, cegando-a. Assim, Ana Maria jamais saberia que o pai é negro. Pai e filha desenvolvem uma paixão desmedida. Ela acredita que o pai é branco e que todos os outros homens são negros e perversos.

v      Dezessete anos depois, Ismael constrói um mausoléu para viver com a filha, onde nenhum desejo de branco pudesse alcançá-la, mas Virgínia enlouquece vendo-se substituída pela filha e consegue convencer Ismael a abandonar Ana Maria sozinha no túmulo de vidro. Juntos continuam, Virgínia e Ismael, a gerar filhos negros que serão mortos.

v      O negro também cega, em bebê, Ana Maria, filha do único relacionamento entre Virginia e Elias, para que ela, impossibilitada de comprovar a “verdade”, acredite ser Ismael o único branco do mundo. Com isso, fomenta na enteada o amor e a admiração não alcançados com a esposa. Os três infanticídios, os dois cegamentos, o assassinato, a impressão de Virginia de estar sendo violentada ao ter relações sexuais com o marido, além do confinamento de Ana Maria num mausoléu – engendrado por Virginia e Ismael ao final da peça – delineiam a trama de Anjo Negro.

v      Ismael não consegue disfarçar nem superar as contradições de um corpo marcado insistentemente pelo efeito da voz que, em seu ato complexo de vocação e invocação, reproduz o efeito do olhar, inscrito historicamente por um passado escravista. Paralisado, ele não consegue alçar à condição de desejante, sujeito este capaz de sustentar suas escolhas, com todas as particularidades que uma posição assim nos revela e nos exige em termos de renúncia.

v      O que, na peça, é fadado ao silêncio? O que não pode ser mostrado e, ao mesmo tempo, é explicitado no texto? Nelson aponta para a problemática racial em que, certamente, se articulam os subsídios para uma teoria social do Brasil, onde se destaca a violência como fator de base dos fundamentos estruturais do modelo étnico-social brasileiro. A peça explicita a vivência de amor/ódio num casal inter-racial e a ambigüidade diante de sua linhagem mestiça. O estilo poético-realista de Nelson Rodrigues revela, de maneira perturbadora, temas adormecidos no inconsciente. Ele revolve esse universo profundo do espectador trazendo à consciência o recalcado e utiliza-se da tragédia para falar do racismo. Assim, remete-nos ao drama grego: a tragédia, pois somente o trágico daria conta de desvendar essa realidade brasileira relegada às trevas – o racismo. Algo da ordem do trágico, tal qual é explicitado no drama grego, pode estar muito próximo de nós, se considerarmos que, enquanto humanos, vivenciamos as emoções que o perpassam.


Fonte: Liliane Negrão Pinto, Mestranda UNICAMP | Eliana Maria Delfino, José Tiago Reis Filho, Sílvia Regina Gomes Foscarini, Wanda Avelino - Círculo Psicanalítico de Minas Gerais | Seleste Michels da Rosa, formada em Letras (UFRGS), especialista em Literatura Brasileira (PUCRS) e mestranda em Literatura Brasileira (UFRGS)


Análise II :  Anjo Negro - Nelson Rodrigues

O elemento que direciona todas as ações humanas nesta obra de Nelson Rodrigues é a sexualidade, apresentada sempre de forma corrompida. O sexo está o tempo todo relacionado à violência e ao desejo proibido.
Parece haver uma preocupação do autor em perturbar o leitor, utilizando o choque para trazer à tona tudo o que está velado na sociedade. Trata-se de uma tragédia com um desfecho inesperado: embora tudo induza ao fato de que Virgínia será morta pelo marido, a história termina com a morte da filha de Virgínia, tramada pela própria mãe com a ajuda de Ismael.
Escrita em 1946, Anjo Negro rompe com características até então comuns ao teatro brasileiro, como a unidade temporal (história transcorrida ao logo de apenas um dia).
Gênero
Literatura Dramática
Narrador
Na literatura dramática não há um narrador, pois a história é contada em forma de diálogos.
Personagens principais
Ismael: Médico. Homem negro, inescrupuloso e violento. Profundamente recalcado em função de sua cor, diz à filha (Ana Maria) que é branco e a cega para que não perceba a realidade. Da mesma forma, há indícios de que tenha cegado o irmão de criação, branco, por uma ardilosa troca de remédios. Ismael ama o branco, mas com violência, o que fica claro pelo isolamento a que submete a mulher para que ninguém a veja.
Virgínia: Mulher de Ismael, branca, vítima da violência sexual do marido. Logo no início da trama, ela deseja o noivo da prima com quem é criada e se deixa possuir por ele. Ao descobrir a traição, a prima se enforca e a tia de Virgínia, para se vingar pela morte da filha, promove o estupro da sobrinha por Ismael. Virgínia desenvolve a arte da sobrevivência por meio da sexualidade, que é o que vai salvá-la no fim da trama.
Ana Maria: Filha branca de Virgínia, fruto de sua relação extraconjugal com Elias, irmão de criação de Ismael. Inexpressiva na obra, aparece apenas no terceiro ato. É enganada e abusada sexualmente por Ismael.
Elias: Irmão de criação de Ismael, branco. Tudo indica que foi cegado pelo irmão.
Tia (de Virgínia): Mulher vingativa, cruel e super protetora das filhas.
Tempo
Não fica claro em que momento transcorre a história. Do segundo para no terceiro ato, há um hiato de aproximadamente 15 anos.
Espaço
Não há nenhuma referência à paisagem externa. Toda a história se passa no quintal, na frente e dentro da casa de Ismael.
Fonte: Ênio José Ditterich, mestre em Literatura pela UFPR



A questão racial em Anjo Negro
Vista de modo superficial, a peça de Nelson Rodrigues é uma história de horror: Virgínia é órfã e branca, vive com a tia e as primas, aos quinze anos é assediada pelo noivo da prima caçula. Descoberto o assédio a prima se mata; a tia entrega Virgínia a Ismael, negro, que a estupra e casa com ela.

Ismael é médico, tem ódio de ser negro, se isola em casa com Virgínia, estupra-a diariamente; têm três filhos; Virgínia mata os filhos, um por um, com a concordância tácita de Ismael. No dia do velório do terceiro filho chega Elias, irmão de criação de Ismael, que sempre o maltratou e acabou cegando-o com raiva dele ser branco. Virgínia atrai Elias e engravida dele. Ismael mata Elias. A filha de Virgínia e Elias chama-se Ana Maria, é cegada ainda bebê por Ismael que lhe conta ser branco. Ismael estupra Ana Maria.
Quando Ana Maria tem dezesseis anos Virgínia a encerra em um túmulo de vidro (como na história infantil). Ismael e Virgínia ficam juntos. As senhoras do coro vaticinam: “Em vosso ventre existe um novo filho! Ainda não é carne, ainda não tem cor! Futuro anjo negro que morrerá como os outros!”.
É repugnante. Quase chegamos a compreender as pessoas que pediram a interdição desta peça.
Mas Nelson Rodrigues era um gênio. Nada em sua obra é superficial, mas sim densos e intrincados jogos de espelhos em que, às vezes, enxergamos até nosso próprio reflexo, e geralmente não gostamos muito do que vemos. Anjo Negro constitui-se em libelo devastador contra o preconceito, o racismo e a hipocrisia. Escrita quando os crimes do nazismo eram muito recentes, aborda a questão da “superioridade racial” de um ângulo importante: o discriminado que assume os valores dos que o discriminam.
Ismael não consegue ver-se como é de fato, um homem de sucesso. Em tempos em que isso era muito difícil para a maioria dos brancos e virtualmente impossível para negros, fez um curso superior, formou-se médico e obteve notoriedade e fortuna na profissão. Não se aceita como pessoa, despreza-se porque a sociedade despreza a sua cor; adota a visão das pessoas da classe social a que pertence por mérito, e quase todas essas pessoas são brancas. Em sua contradição, odeia brancos, odeia pretos, odeia a si mesmo.
A relação de Virgínia e Ismael é de grande paixão física, mas ocorre sempre como violência e violação; uma mulher branca somente fará sexo com um homem negro se forçada a isso, um homem negro somente fará sexo com uma mulher branca se a estuprar. Absurdo? Sem dúvida, mas era pensamento corrente. Virgínia mata os filhos por saber que Ismael não quer filhos negros, relaciona-se com Elias para ter um filho branco.
Anjo Negro é peça teatral construída como paródia: há os coveiros de crianças emulando os cantos dos “pretos do Mississipi que aparecem no cinema”; a cegueira de Elias e Ana Maria (Tirésias? Édipo?); o túmulo da Branca de Neve. E o coro de mulheres ulula, evocando os coros do teatro grego: “O preto desejou a branca! _Oh! Deus mata todos os desejos! A branca também desejou o preto! Maldita seja a vida, maldito seja o amor!”. É sombria, não deixa nenhuma esperança, como se nós, seres humanos, não tivéssemos salvação.
A esperança viria em gerações posteriores de negros orgulhosos de sua cor, de sua cultura, de seus valores; certamente esta obra, colocada entre as “míticas” de Nelson Rodrigues, é uma das auxiliares na reflexão necessária para a mudança.
Fonte: Presidente da Comissão do Processo Seletivo das Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói


 "Muitos críticos consideram A morte de Ivan Ilitch como a novela mais perfeita da literatura mundial; a agonia de um burocrata insignificante serve de pretexto ao autor para nos contar uma história que diz respeito ao destino de cada um de nós e que é impossível ler sem um frêmito de angústia e de purificação"


A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, novela publicada em 1886, retrata com uma aguda profundidade o tema da morte e o sentido da vida, personalizada em Ivan Ilitch, um juiz russo que na antecâmara da morte faz uma reflexão profunda sobre todas as etapas da sua vida desvendando-se a si próprio.

Nessa magistral obra-prima, considerada por Vladimir Nabokov como a mais artística, mais perfeita e de mais sofisticada realização da história mundial, defrontamo-nos com o soberano do destino: o fim. A morte é uma prova final, aplicada a qualquer momento; e por mais que se creia não estar preparado, todos somos aprovados.

Escarafunchando a angustiada consciência do irrepreensível juiz Ivan Ilitch, em breves 85 páginas, Tolstói brinda o leitor com o relato de um acerto de contas, revelando a futilidade do modelo de vida burguês. Será, preso ao leito, frente a morte certa, que a vida de Ivan Ilitch se revelará mais livre, mais autêntica e pujante. As preocupações corriqueiras, os afazeres mundanos impediram-no de pensar nela.

É com espanto que, diante da morte iminente, atina que viveu uma vida de aparências, tanto no desempenho de seu trabalho, quanto no casamento e em suas demais relações sociais. Ivan Ilitch conclui que sua existência fora desprovida de um propósito mais significativo, que não passou daquilo que a sociedade, com seu mero jogo de interesses, de galgar posições de prestígio, de “parecer estar bem”, preconizava. Em resumo: uma autêntica vida de falsidades. Para seu desespero, até mesmo àqueles a quem julgava ser fundamental e amado, sua mulher e filhos, vivenciam sua convalescênça como sendo um capricho inexplicável (a mulher) ou um aperreio, um estorvo (sua filha).

O sucesso profissional, o empenho pela manutenção da ordem, do status quo, daquilo que, aos olhos dos outros era tido como o “certo”, sempre fora o norte de sua “aparentemente” bem sucedida vida: “Não era um adulador, nem quando menino, nem quando homem feito, porém, desde a infância, sentira-se naturalmente atraído pelas pessoas que ocupavam posição elevada na sociedade, tal como mariposas pela luz, e assimilava-lhes as maneiras e as opiniões, forçando ainda relações amistosas com elas”.

Ivan Ilitch dá um rosto à imprudência moderna. Ele é o juiz bem sucedido, que crê desempenhar perfeitamente o seu papel, ou seja, que “aplica” o Direito. Ele é o “escravo da lei”, a “boca da lei”, que no fundo no fundo sabe que tais coisas não existem, mas que age profissionalmente como se existissem. À semelhança dos médicos com os quais se depara ao longo de sua agonia e que, ali onde se encontra um homem a ser cuidado (um homem que sofre e que necessita de cuidados), só enxergam uma doença a ser eliminada, Ivan Ilitch também se mostra incapaz, durante toda sua vida como juiz, de levantar os olhos dos autos e dos códigos para ver os homens e seus problemas. Ele “aplica” o direito, mas não sabe (ou finge não saber) que o Direito
 não pode ser “aplicado” de uma forma mecânica. Sua prudência (no sentido moderno), que se manifesta em sua dócil submissão a um legalismo convenientemente apropriado ao carreirismo, é máxima imprudência (no sentido clássico). E por essa imprudência, Ivan Ilitch paga um preço alto. O preço da falta de sentido.

Moribundo, reconstitui, na imaginação, suas origens, sua vida como estudante de Direito, os concursos públicos, as motivações que o levaram a eleger Prascóvia Fiódorovna como esposa: “Dizer que Ivan Ilitch se casou por ter se apaixonado pela moça e por ter encontrado nela compreensão para a sua concepção da vida, seria tão incorreto quanto afirmar que se consorciara porque a sua roda social aprovara o enlace. Esposou-a movido por suas próprias razões: o casamento lhe proporcionava particular satisfação e era visto como uma boa solução pelos seus amigos mais altamente colocados”. Nem por amor, nem somente por puro interesse, embora seja notória a importância que dava aos valores prezados pelos mais bem situados.

O magistrado não encontrou felicidade no lar. Passado o breve mar-de-rosas que fora a lua-de mel, o matrimônio se revelou perturbador: “E, não mais que um ano após o casamento, Ivan Ilitch chegou à conclusão de que a convivência familiar, embora ofereça certas vantagens, era uma coisa verdadeiramente complexa e difícil, para a qual é preciso elaborar uma relação definida, tal como perante o trabalho, a fim de se poder cumprir honradamente o dever, ou seja, levar-se uma vida que, pela correção, a sociedade aprove”. Problemas de ordem prática, soluções igualmente práticas.

Nada como refugiar-se no trabalho como forma de blindagem para evitar que algum incômodo nos perturbe e podermos assim, anestesiados, deixar a vida seguir seu curso, sob controle: “Todo o interesse da sua existência se concentrou no mundo judiciário e esse interesse o absorvia. A consciência da sua força, que permitia aniquilar quem ele quisesse, a imponência da sua entrada no tribunal, a deferência que lhe tributavam os subalternos, seus êxitos com superiores e subordinados e, sobretudo, a maestria com que conduzia os processos criminais e da qual se orgulhava – tudo isto lhe dava prazer e lhe enchia os dias, a par das palestras com os colegas, os jantares o [jogo] uíste. Assim a vida de Ivan Ilitch decorria da maneira que achava conveniente – agradável e digna”.

Sobre o contentamento que o jogo lhe proporcionava, confidencia-nos o autor: “A alegria que Ivan Ilitch encontrava no trabalho era a alegria da ambição; as alegrias da vida social eram as da vaidade; mas as verdadeiras alegrias eram as proporcionadas pelo uíste”. Entreve-se mais um pouco da alma do corretíssimo juiz Ivan Ilitch: ambicioso, vaidoso e frívolo.

Dentre as demais atividades nas quais encontrava prazer ocupavam-no uma inocente e tipicamente burguesa: a decoração e organização do lar; mas nem sequer nisso sua individualidade aflorava: “Teve a sorte, principalmente de poder comprar barato certas antigüidades, que emprestavam à casa um ar pronunciadamente aristocrático. (...) Na verdade, havia ali o mesmo que se encontra nas casas de gente remediada, mas que pretende aparentar opulência e apenas consegue que se pareçam extraordinariamente umas com as outras (...) enfim, tudo aquilo que as pessoas de certa classe possuem para parecer com as pessoas da mesma classe. A casa de Ivan Ilitch era uma perfeita imitação, mas ele a achava absolutamente original”.

Tudo corria relativamente bem na pacata e irretocável vida de Ivan Ilitch. Até que um dia, envolvido na arrumação da nova casa, ansioso por demonstrar a um operário como queria que um serviço fosse executado, deu um passo em falso, escorregou duma escada e deu uma pancadinha de lado, na moldura da janela. Na hora, não sentiu muito, apenas uma dorzinha boba. Mas após esse episódio, as dores foram se tornando cada vez mais intensas e insuportáveis. Apesar de ter se submetido a renomados especialistas, nada pôde fazer. A morte o rondava.

A inesperada condição de enfermo será extremamente favorável à observação, à avaliação isenta e imparcial dos relacionamentos cultivados com todos os que o cercavam, inclusive com seus colegas juízes. É com profundo desapontamento que Ivan constata que, indiferentes, a única coisa que importava mesmo era manter o enfadonho, mas necessário, protocolo de visitas e confabular sobre quem ocuparia o posto que ele deixará, bem como quem ficará com o cargo vago por aquele que o substituir, e assim por diante. Recapitulando seus valores, suas realizações e frustrações, conclui que “farinha do mesmo saco”, não teria agido diferente de seus interesseiros e ambiciosos amigos magistrados. Afundando num sofrimento desesperado, Ivan Ilitch se dá conta da insignificância de sua vida, da fragilidade de suas conquistas. Apesar de suas dores físicas serem terríveis, doía ainda mais a sua consciência moral. Próximo à finitude e com fome de imortalidade, a ânsia de encontrar propósito para sua breve e vulgar existência martelava-lhe o cérebro.

Foram três meses, de intensa agonia. Dependente de auxílio para tudo, inclusive para as constrangedoras necessidades fisiológicas, encontra na alma do singelo camponês Guerássin, ternura e, testemunha a bondade humana. Certa vez, agradecendo pelo desagradável préstimo, ouviu o mujique afirmar que fazia isso com prazer; que qualquer um faria. Essa ingenuidade o comovia profundamente. Acalmava-lhe a presença desse prestativo enfermeiro.

Sob o crivo de uma lucidez perturbadora, repassou sua vida: “E quanto mais longe da infância e mais perto do presente, tanto mais as alegrias que vivera lhe pareciam insignificantes e vazias. A começar pela faculdade de direito. Nela conhecera alguns momentos realmente bons: o contentamento, a amizade, as esperanças. Nos últimos anos, porém, tais momentos já se tornavam raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego, junto ao governador, gozara alguns belos momentos: amara uma mulher. Em seguida tudo se embrulhou e bem poucas eram as coisas boas. Para adiante, ainda menos. E, quanto mais avançava, mais escassas se faziam elas. Veio o casamento, um mero acidente e, com ele, a desilusão, o mau hálito da esposa, a sensualidade e a hipocrisia. E a monótona vida burocrática, as aperturas de dinheiro, e assim um ano, dois, dez, vinte, perfeitamente idênticos. E, à medida que a existência corria, tornava-se mais oca, mais tola. É como se eu tivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isto. Perante a opinião pública, eu subia, mas na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim – a sepultura me espera”.

Sem que ninguém visse: “Chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade de Deus, que o abandonava”. Vulnerável, clamava por carinho, piedade e, em silêncio, nutria um desejo inconfessável para um homem de respeito: queria ser cuidado como se fosse uma criança.

Buscar e encontrar o significado da vida é algo particular. O juiz Ivan Ilitch foi um homem que não atentou para a liberdade de poder escolher seu destino. Sem discutir, fez o que era para ser feito e pronto. Mas isso fora insuficiente para deixá-lo partir em paz. Não questionou o télos (propósito/objetivo/finalidade) de seus comparsas; “fechou” com a futilidade encantatória da classe dominante; almejada, sem pestanejar, por toda manada, ilusório alvo de imitação. Três horas antes de morrer, Ivan Ilitch vislumbra luz no fundo do saco escuro. Sensibiliza-o as lágrimas nos olhos do filho e da mulher, se apieda por eles: “e percebia que a sua vida não fora o que deveria ter sido, mas ainda podia ser reparada”. No instante em que adota uma atitude em relação ao sofrimento, algo fenomenal o liberta da fantasmagórica ameaça da vala-comum psíquica. Ah, a morte: “Que alegria!”. Ivan Ilitch recebe-a de braços abertos!

Créditos: Luciene Félix, Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana


fonte: http://www.passeiweb.com/

Menino do Mato : Manoel de Barros

Livro » Menino do Mato » Manoel de Barros  'Menino do mato' divide-se em duas partes - 'Menino do mato' e 'Caderno de Aprendiz'. São 96 páginas de lirismo e leveza nas quais o leitor reencontra a poesia de Manoel de Barros. A segunda parte é composta em grande parte por versos curtos, mas tão intensos em imagens e significados quanto os poemas presentes na primeira metade.

 


Manoel de Barros, após um intervalo de três anos, durante o qual nenhuma obra sua foi publicada, lança Menino do Mato, seu 20º livro de poemas. É praticamente seu presente de aniversário, quando o autor atinge os 93 anos. Seu livro mais recente, anterior a este, é Memórias Inventadas III, lançado em 2007, no qual constam ilustrações de sua filha Martha Barros.

Esta nova obra poética está configurada em duas metades – ‘Menino do Mato’ e ‘Caderno de Aprendiz’. O leitor tem diante de si 96 páginas da mais pura poesia e suavidade, nas quais ele tem um encontro marcado com o dom de encantar deste poeta único. A segunda parte do livro é estruturada essencialmente por versos concisos, mas nem por isso desprovidos de energia imagética e de riqueza de sentidos.

A idade não é em momento algum um obstáculo para Manoel de Barros, que se mantém em pleno vigor criativo. Adotando o estilo tradicional, ele elabora seus poemas à mão, tendo com sua caligrafia o mesmo zelo que o move quando traz à luz seus versos. Este livro resgata a figura do Menino, presente em obras anteriores, o qual sempre ressurge a cada criação do poeta.

As figuras desconexas e plurais de Manoel de Barros circulam mais uma vez por Menino do Mato. Ao se ler este volume de poesias, a primeira questão que intriga o leitor é compreender de que fonte provém toda a inspiração deste autor. Ele a credita aos seus tempos de meninice, vividos em uma fazenda em Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Neste período ele construiu a sua famosa ‘oficina de desregular a natureza’, que continua ativa até hoje.

Setenta e três anos após o lançamento de Poemas Concebidos sem Pecado, em 1937, seus recursos poéticos continuam em ação. Os temas selecionados pelo poeta são ainda os mesmos do início – os tolos, os pássaros, o crepúsculo, Bernardo, as pedras, os cantos melodiosos dos passarinhos, o rio, os recantos despovoados, a quietude, o avô, o isolamento.

A sensação que se tem, ao ler este livro, mesmo quando já se conhece sua obra anterior, é que o Menino é um novo personagem, recém-nascido na extremidade de seu lápis. Em janeiro de 2010 esta figura surgiu também nas telas do cinema, no documentário Só Dez por Cento É Mentira, de Pedro Cezar, que tem como protagonista a região do Pantanal, mostrando de que forma ela é inserida na produção poética do poeta. Ele também revela o processo de criação de seus personagens.


Seu volume Poesia Completa, que engloba toda a elaboração poética de Manoel de Barros, é lançado também junto com Menino do Mato, pela mesma editora, a Leya. Ele compila desde os versos presentes em seu primeiro livro, até os que estão inscritos em Menino do Mato.


Fontes:
http://www.portocultura.com.br/literatura/

http://www.crisdias.com/

http://ensaiogeral.com.br/

Sagarana: São Marcos e A volta do Marido Pródigo.


Resumo de Sagarana - Guimarães Rosa

Livro Sagarana, de Guimarães Rosa



Sagarana é a primeira obra de Guimarães Rosa a sair em livro, traz nove contos, nos quais o universo do sertão, com seus vaqueiros e jagunços, surge no estilo marcante que o escritor iria aprofundar em textos posteriores.

O livro de estréia de João Guimarães Rosa foi publicado em sua versão final em 1946. Os contos começaram a ser escritos em 1937, sendo escolhido neste ano para concorrer ao prêmio literário “Graça Aranha”, patrocinado pela Livraria José Olympio. Apesar de ser bastante comentado pela crítica, ficou em segundo lugar e não foi escolhido para ser publicado.

Para o lançamento definitivo de Sagarana, a obra foi reduzida de 500 para 300 páginas, sendo composta de nove contos / novelas. Nesse processo, o autor filtrou o que havia de melhor no texto, utilizando em seu peculiar processo de invenção de palavras o hibridismo – que consiste na formação de palavras pela junção de radicais de línguas diferentes. O título do livro é composto dessa forma. Saga, radical de origem germânica, quer dizer “canto heróico”; rana, na língua indígena, significa “espécie de”.

Entre os contos que escreve em Sagarana, merece destaque especial “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. Tido pela crítica como um dos mais importantes contos de nossa literatura, condensa os vários temas presentes no livro: o sertão, o povo, a jagunçagem, a religiosidade e o amor.

O livro que se destaca por expor de forma nítida toda a inventividade do autor no trato com a linguagem literária. Percebe-se nele o aproveitamento do colorido de expressões típicas do povo como “Estou como ovo depois de dúzia”, “Suspiro de vaca não arranca estaca”, “não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma”, entre tantas outras.

A obra de Guimarães Rosa apresenta um regionalismo de novo significado: a fusão entre o real e o mágico, de forma a radicalizar os processos mentais e verbais inerentes ao contexto fornecedor de matéria-prima, traz à tona o caráter universal. O folclórico, o pitoresco e o documental cedem lugar a uma maneira nova de repensar as dimensões da cultura, flagrada em suas articulações no mundo da linguagem.

De cunho regionalista, Saragana surpreendeu a crítica e levou o escritor ao renome, em virtude da originalidade de sua linguagem e de suas técnicas narrativas, que apontavam uma mudança substancial na velha tradição regionalista.

Voltada para as forças virtuais da linguagem, a escritura de Guimarães Rosa procede abolindo intencionalmente as barreiras entre narrativa e lírica, revitalizando recursos da expressão poética: células rítmicas, aliterações, onomatopéias, rimas internas, elipses, cortes e deslocamentos sintáticos, vocabulário insólito, com arcaísmos e neologismos, associações raras, metáforas, anáforas, metonímias, fusão de estilos.

Imerso na musicalidade da fala sertaneja, o autor procurou fixá-la na melopéia de um fraseio no qual soam cadências populares e medievais.

As estórias desembocam sempre numa alegoria, e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido ou "moral", à maneira das fábulas. As epígrafes, que encabeçam cada conto, condensam sugestivamente a narrativa e são tomadas da tradição mineira, dos provérbios e cantigas do sertão.

A obra começa com uma epígrafe, extraída de uma quadra de desafio, que sintetiza os elementos centrais da obra - Minas Gerais, sertão, bois, vaqueiros e jagunços, o bem e o mal:
"Lá em cima daquela serra, passa boi, passa boiada, passa gente ruim e boa, passa a minha namorada".

Elementos Estruturais

Os narradores de Sagarana têm o estilo marcante criado por Guimarães Rosa, cuja principal característica é a oralidade. No entanto, esse traço ainda não está tão acentuado como em obras posteriores, como Grande Sertão: Veredas e Primeiras Estórias, entre outras. Considerando que a oralidade acentuada é um dos principais obstáculos para a leitura de Guimarães Rosa, o livro Sagarana é uma excelente opção para iniciar-se na obra do autor.

Em relação ao foco narrativo, com exceção dos contos “Minha Gente” e “São Marcos” – que são narrados em primeira pessoa –, os demais possuem narradores em terceira pessoa. Quanto ao tempo e ao espaço de Sagarana, pouco há o que ser dito. Sobre o primeiro elemento, vale destacar a linearidade da narrativa, que se desenvolve na maior parte sob o tempo psicológico dos personagens.  O espaço é quase sempre Minas Gerais. Mais especificamente, o interior do estado. Vale uma atenção maior para o nome dos povoados e vilarejos dos contos. Os estados de Goiás e do Rio de Janeiro são mencionados no livro, mas têm pouca relevância na narrativa.
Segue abaixo um resumo e análise de cada um dos 9 contos do livro Sagarana, de Guimarães Rosa.

Resumo de Sagarana - A volta do Marido Pródigo



Enredo
Lalino, um mulato muito vivo, ajudante numa constru ção de estrada, não gosta do trabalho. Abandona sua mulher e o meio rural para procurar na capital a felicidade com que sonha: bonitas mulheres à vontade, iguais às que vira em revistas. Depois de algum tempo, cansa-se e fica com saudades: volta. Mas sua mulher, Maria Rita, agora vive com outro. Lalino quer ganhar de volta a consideração do povo e a mulher. Oferece-se uma oportunidade: cooperar como cabo eleitoral do Major, com vistas a ganhar as eleições próximas. Graças a uma série de artimanhas que, no primeiro momento, parecem ser desastrosas para a política do Major, mas que na verdade são intrigas muito hábeis contra o adversário político, Lalino garante o sucesso eleitoral do patrão. Reconcilia-se com a mulher, Maria Rita, que nunca o deixara de amar.

Personagens
1. Lalino Salãthiel: todos o chamam de Laio. Mulato vivo, malandro, contador de histórias. Garante que conhece a capital, Rio de Janeiro, mas nunca foi lá. Certa vez, foi realmente conhecê-la.
2. Maria Rita: mulher de Lalino; trata-o com especial carinho.
3. Marra: encarregado dos serviços; depois que a obra acabou, mudou-se do arraial.
4. Ramiro: espanhol que ficou com Ritinha, a mulher de Lalino.
5. Waldemar: Chefe da Companhia.
6. Major Anacleto: chefe político do distrito, homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar.
7. Tio Laudônio: irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Era conselheiro do Major.
8. Benigno: inimigo político do Major Anacleto.
9. Estêvão: capanga respeitado do Major Anacleto. Jamais ria. Tinha pontaria invejável: atirava no umbigo para que a bala varasse cinco vezes o intestino e seccionasse a medula, lá atrás.

Cenário
Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais.

Análise
A narrativa aproxima-se das novelas picarescas e é um retrato bem-humorado das oscilações interesseiras das convicções políticas do interior.
Novamente temos um burrinho, animal que, como os bois e cavalos, é presença obrigatória nos contos de Sagarana, que a crítica define como um verdadeiro "tratado de bovinologia". Esses animais são humanizados e alegorizam a própria condição humana.





UFU : Processo Seletivo 2012-2



1.  Anjo Negro. Autor: Nelson Rodrigues. Ed. Nova Fronteira.
2.  A morte de Ivan Ilitch. Autor: Leon Tolstoi. Sugestão de editora – L&PM   - (NOVO)
3.  Menino do Mato. Autor: Manoel de Barros. Sugestão de editora -   Leya Brasil – (NOVO)
4.  Memórias Sentimentais de João Miramar. Autor: Oswald de Andrade. Ed. Globo.
5.  Menina a Caminho. Autor: Raduan Nassar. Ed.Cia. das Letras.
6.  Paraísos Artificiais. Autor: Paulo Henriques Britto. Ed.Cia. das Letras.
7.  Prosas Seguidas de Odes Mínimas. Autor: José Paulo Paes. Ed.Cia. das Letras. 2008
8.  Sagarana: São Marcos e A volta do Marido Pródigo. Autor: Guimarães Rosa. Editora Nova Fronteira - (NOVO)

terça-feira, 13 de março de 2012

Calabar - o elogio da traição, de Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra



Peça teatral sobre a traição de Calabar, personagem da história brasileira que foi considerado traidor por ficar ao lado dos holandeses na guerra contra Portugal.

Na década de 70, a dramaturgia nacional era alvo do mesmo patrulhamento que cerceava a liberdade de músicos, políticos, escritores, educadores e tantos outros. É neste contexto que dois importantes artistas escrevem uma das páginas mais importantes do teatro brasileiro contemporâneo. Exemplo de utilização da matéria histórica como instrumento gerador de reflexão, Calabar - o elogio da traição, de Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra, é relançado pela Civilização Brasileira com novo projeto gráfico.

Calabar - o elogio da traição, escrita justamente entre os anos de 1972 e 1973, no auge da ditadura militar brasileira e as vésperas do abril florido da revolução portuguesa — o que criou obstáculos à montagem da peça — é uma alegoria histórica que se passa na época das invasões holandesas em Pernambuco, no século XVII. Aborda a questão da lealdade e da traição, numa clara alusão à conjuntura política do período em que foi escrito. Inclui canções famosas de Chico Buarque, como Anna de Amsterdã e Bárbara.

Com sensibilidade e inteligência, a peça amplia o debate ideológico de forma provocativa, irônica, quase caricatural. Os conceitos de traidor e traição, se subjetivos per se, tornam-se ainda menos palpáveis na obra de Chico e Ruy. Afinal, onde está a traição: nos mantenedores da ordem ou na rebeldia dos heróis? E quem são, de fato, os heróis e os vilões? Como escrevia Fernando Peixoto, em 1980, o texto de Calabar - o elogio da traição é "mal-comportado, e por isso estimula a elaboração de um espetáculo debochado, capaz de assumir a quase anárquica, mas organizada colagem e a justaposição de imagens e épocas".

Com Calabar - o elogio da traição, visam divertir o público, espalhando pontos de interrogação, dúvidas e perplexidades. Surpreendendo pelo atualizado deboche crítico, fundamentado num confronto realista com temas essenciais de nossa existência de nação social-econômica-política- culturalmente ainda colonizada num tímido mas empenhado esforço de construção de uma democrática cultura nacional-popular.

Há sensibilidade e inteligência na utilização da matéria histórica como instrumento capaz de instaurar uma conseqüente reflexão que ultrapassa os limites de determinadas circunstâncias político-econômicas e amplia o debate ideológico de forma irônica, provocativa, apoiada em extrema e contagiante teatralidade, usando a postura crítica e a desmedida coragem de assumir o grotesco. A obra desmistifica o conceito de traidor e a noção vazia e abstrata de traição.

Texto escolhido
"E se vocês rirem de mim,
Se eu for alvo de chacotas e chalaças,
Se for ridículo na jaqueta de veludo
Ou nas ceroulas de brim,
Ou porque falo tanto de caganeira e bacalhau,
É bom pensarem duas vezes, porque, ainda mesmo assim,
Com lombrigas dançando dentro da barriga,
Com a Holanda, a Espanha e toda a intriga,
Eu sou aquele que, custe o que custar,
Acerta o laço e tece o fio
Que enforca Calabar."


ANÁLISE :


I - AUTORES:

Chico Buarque é um nome de grande representatividade no cenário cultural brasileiro, desde o ano de 1966, quando conquistou o primeiro lugar no II Festival de Música Popular com “A Banda”. Sua consagração foi em 1968, no Festival Internacional da Canção, quando junto com Tom Jobim obteve o primeiro lugar com “Sabiá”.


Sua participação no cenário teatral, enquanto autor ocorreu ao musicar o poema de João Cabral de Mello Neto “Morte e Vida Severina”, sendo premiado em Nancy (França) num festival universitário. Logo depois, Chico foi para a Itália, e durante quinze meses teve uma intensa vida artística: gravou discos, fez shows e excursões.

Ruy Guerra é moçambicano, e foi em Moçambique que realizou seus primeiros curtas-metragens. Aprimorou-se em Paris, de 1952 a 1954, e lá ficou até 1968, quando se radicou no Brasil. Em 1960 realizou “Os cafajestes” um dos marcos do cinema novo.

Ruy compôs também letras e melodias em parceria com Edu Lobo, Baden Powell, Milton Nascimento e Sérgio Ricardo, participando de um momento áureo da MPB.

A partir de 1972 Chico em parceria com o cineasta Ruy Guerra e dirigida por Fernando Peixoto iniciaram um trabalho em conjunto, traduzindo as letras do musical “O homem de la Mancha”, e a partir daí surgiu a idéia de realizar “Calabar”, uma das mais caras produções teatrais da época, custou cerca de trinta mil dólares e empregava mais de oitenta pessoas. Dentre as músicas que compõem o repertório da obra, algumas são sucessos, como "Não existe pecado ao sul do Equador" (cantada por Ney Matogrosso); "Cala a boca, Bárbara", e outras.

A censura do regime militar deveria aprovar e liberar a obra em um ensaio especialmente dedicado a isso. Depois de toda a montagem pronta e da primeira liberação do texto, veio à espera pela aprovação final. Foram três meses de expectativa e, em 20 de outubro de 1974, o general Antônio Bandeira, da Polícia Federal, sem motivo aparente, proibiu a peça, proibiu o nome Calabar do título e, como se não bastasse, ainda proibiu que a proibição fosse divulgada.

Vistos como os próprios “traidores da pátria”, os autores não conseguiram passar pelo crivo dos censores. O encerramento das atividades ligadas a Calabar provocou um sentimento de frustração que marcaria para sempre o teatro nacional e a carreira profissional de todos que, diretamente ou indiretamente estiveram envolvidos no projeto. A liberação para encenação da peça só seria concedida na década de 80.



Assim permaneceria até 1943, quando um estilo de teatro bem mais estruturado dramaticamente substituiria a tradicional narrativa existente até então. A peça “Vestido de noiva”, Nelson Rodrigues, estreada em 28 de dezembro de 1943 foi considerada marco inicial do “novo” e “moderno” teatro brasileiro.

A fundação do TBC – Teatro Brasileiro de Comédia - em São Paulo, no final da década de 40, imporia um novo padrão de teatro a ser desenvolvido no país, misturando um repertório clássico com autores modernos, como Arthur Miller e J.P. Sartre.

Além da repercussão positiva junto ao público, o novo estilo ganhou também o apoio da imprensa nacional, que passou a comentar e a divulgar diariamente o que era levado aos palcos.

Embora responsável pela profissionalização do teatro, o TBC não tinha por objetivo desenvolver um estilo de dramaturgia que fosse voltado a uma identificação com as causas nacionais.

Porém, a partir da década de 50, não foi mais possível permanecer alheio à realidade política, econômica e social do país. A euforia do governo Juscelino Kubitschek mobilizou inúmeros segmentos da sociedade, e, desde então, o palco passou a ser mais um espaço de discussões sobre os seus problemas, as suas manifestações e reivindicações.

O Teatro de Arena, fundado em São Paulo em 1953, tinha como uma de suas principais propostas: alertar a sociedade para um posicionamento político frente às mazelas nacionais. O diretor José Renato e o fundador Augusto Boal, recém chegado da Europa, destacaram-se à frente dessas discussões.

No início dos anos 60, diante do “imobilismo” das esquerdas e das transformações político-econômicas e sociais vivenciadas, um estilo de teatro mais atuante começou a manifestar-se.
Atores como Oduvaldo Viana Filho, Flávio Migliaccio, Augusto Boal, dentre outros, estiveram engajados nesses projetos. No Rio de Janeiro, o CPC - Centro Popular de Cultura da UNE utilizava o teatro como arma na conscientização social. Porém, no dia 1º de abril de 1964 o prédio da UNE foi incendiado, destruindo o que seria o futuro teatro do CPC. Este era o cenário que se esboçava no momento de instauração do golpe pelos militares.

Para além da cultura, o Brasil estava mergulhado em um caos econômico, político e social, que se aflorou ainda mais no governo João Goulart (1961-1964). Naquele período foram intensas as manifestações de descontentamento das esquerdas e de outros setores da população que eram contrários à sua política reformista, prejudicada ainda mais pela instabilidade econômica do país, com inflação e custo de vida alto.

As pressões vinham, ao mesmo tempo, tanto das forças internas quanto das externas, revelando a incapacidade do governo de conciliar os interesses e contornar a situação.
Nos discursos proferidos pelos militares era preciso conter a onda de crise que tomou conta do Brasil. Em nome da “segurança e soberania nacional”, tomariam para si a responsabilidade de restabelecer a ordem, argumentando que seriam intolerantes a quaisquer manifestações contrárias a esses objetivos.

A política da ordem a qualquer preço, posta em prática pós-golpe militar, visava silenciar não só as ações das esquerdas oposicionistas ao regime como também as atitudes consideradas rebeldes e/ou “subversivas” de inúmeros profissionais ligados à cultura, à imprensa nacional e de intelectuais, que foram obrigados a reavaliarem seus papéis tanto sociais quanto profissionais e também, a refletir sobre os caminhos a serem trilhados a partir dali.

É extensa a bibliografia que trata das condições sócio-econômicas e políticas do Brasil nas décadas que antecederam ao golpe de 1964. Os autores analisam as contradições advindas da era Vargas e que se acirraram nos governos de Juscelino Kubitschek e J. Goulart. As medidas adotadas no Plano de Metas resultaram num aumento considerável da dívida externa. Estudantes politicamente ativos e professores universitários estiveram intimamente ligados ao movimento de resistência, e tornaram-se alvos constantes da repressão.

Destacam que “a própria natureza do ofício das pessoas, e as condições em que eram exercidas tendiam a expor seus praticantes à tentação do oposicionismo e a determinar o tipo de oposição praticada. Em alguns casos, trabalho e política praticamente coabitavam: na advocacia, na produção artística e cultural e no jornalismo”. (ALMEIDA & WEIS, 1998:338)

Desta forma, ser de oposição incluía desde assinar manifestos, participar de assembléias, até escrever artigos ou músicas que, de um modo ou de outro, estivessem relacionados à política daquele momento, e isso significava enfrentar riscos e/ou mudanças profundas, tanto no aspecto profissional quanto no convívio familiar.

“Passado o surto inicial de repressão às lideranças civis e militares identificados com o governo deposto e a feroz perseguição aos sindicalistas urbanos e rurais, os dois primeiros presidentes militares concederam razoável liberdade de movimento às oposições.” (ALMEIDA& WEIS, 1998: 328).

Assim, os anos 60/70 representaram, para a classe artística brasileira, um período marcado por tumultuados conflitos em nome da liberdade de expressão e contra o poder intolerante e arbitrário da ditadura militar, instaurada no país em 1964. O golpe e os acontecimentos sucessivos a ele obrigaram artistas e intelectuais a repensarem suas posições e a delimitarem o seu campo de ação em nome da sobrevivência de suas atividades.

Esse argumento foi reforçado também por Chico Buarque, que declarou à revista Caros Amigos: “entre 64 e 68 já vivíamos sob a ditadura militar, mas a censura em si não incomodava as artes. A chamada música de protesto e o teatro de resistência só floresceram entre 64 e 68. A censura institucionalizada só passou a existir a partir do final de 68 com o AI-5”.

Ao que acrescenta: “... até então havia espaço para se produzir arte, e este tornou-se supervalorizado devido à carência de discussão política onde ela deveria acontecer, ou seja, no Congresso, nas universidades e nos sindicatos.” (BUARQUE, 2000)
Esse teatro de resistência abordado por Chico teve representatividade em diversos espetáculos.

A peça Calabar – o elogio da traição (Chico Buarque e Ruy Guerra) é apenas um entre os diversos trabalhos “castrados” pela censura. Os vinte anos de ditadura caracterizaram-se, na história do Brasil, não só como um período de insegurança, mas também de luta pela democracia.

As atenções estiveram voltadas para o longo processo de interdição enfrentado pela equipe de produção.

Marcada a data para a estréia e convocada para o ensaio geral, a Censura informou que não compareceria porque “o texto havia sido avocado por instâncias superiores para reexame”. (PACHECO,1979-1980:96).

A imprensa foi proibida de noticiar o fato e de publicar, até mesmo, o título da peça. Os longos meses de luta pela liberação representaram um acúmulo de dívidas que resultaram num grande prejuízo para os produtores, Fernando Torres e Fernanda Montenegro, mergulhando-os numa crise econômica.

Os investimentos naquele projeto haviam exigido uma intensa dedicação na escolha dos atores, na trilha sonora, em ensaios, enfim, na organização do espetáculo. Após inúmeros testes foi definido o elenco, composto por artistas conhecidos, como Tetê Medina, Betty Faria, Hélio Ari, Antônio Ganzarolli e Lutero Luís, para os papéis principais, e um grande número de pessoas, que comporiam as personagens secundárias e a chamada figuração.

A trilha sonora ficou a cargo de Danilo e Dori Caymmi, João Palma, Maurício Mendonça e Tenório Jr.

Fernando Peixoto à frente da direção tinha a assistência de Mário Masetti e Zdenek Hampl e os cenários, figurinos e orquestração estiveram sob a responsabilidade de Hélio Eichbauer, Rosa Magalhães e Edu Lobo, respectivamente.

A peça foi vetada pelos censores e até mesmo os discos Chico Canta Calabar, que já estavam liberados para venda, foram recolhidos para mudança no título impresso na capa. Nela, viu-se apenas Chico Canta.

Os autores declararam que enfrentaram problemas técnicos e também na resolução das cenas, a iluminação e os figurinos não chegaram a ser concluídos, além de dificuldades de entrosamento entre os próprios atores e a equipe de produção. Avaliaram que não só os limites de recursos econômicos interferiram no bom andamento do trabalho, mas também o desgaste físico e psicológico da equipe. Foram prejudicados devido ao atropelo dos ensaios para conclusão do espetáculo, que tinha data marcada para estréia.

Desta forma, algumas cenas não puderam ser trabalhadas da forma como gostariam e tal como exigia o texto. A sensação de ter tido o espetáculo abortado provocou-lhes um enorme vazio. Um vazio pela não comunicação com o público, porque não houve público. Argumentaram que um tempo maior livre das pressões e das dificuldades econômicas, e ainda, um maior envolvimento dos atores e da equipe de produção garantiriam resultados mais satisfatórios.


Ao longo da peça e dentro dela, Calabar assume a categoria de mito, pois, “é capaz de revelar o pensamento de uma sociedade, a sua concepção de sua existência e das relações que os homens devem manter entre si e com o mundo que os cerca.”

Sua atitude representou uma grande perda e também um grande risco às ambições portuguesas, por isso foi encarada como um ato de traição. Calabar foi delatado por um, até então, amigo seu, Sebastião do Souto, que auxiliou pessoalmente a Coroa na sua captura. Preso, foi enforcado e esquartejado, a fim de servir de exemplo àqueles que tencionassem desobedecer às ordens vindas da metrópole.
A origem do homem Calabar também orienta uma reflexão sobre a perspectiva sócio-política e ideológica que norteia o drama.
Existe uma controvérsia em relação à origem racial de Calabar. Para alguns historiadores ele era um mulato (negro + branco), para outros, mameluco (índio + branco) e esta questão é discutida pelas próprias personagens:

MATHIAS – (...) Era um mulato alto, pelo ruivo, sarará. Guerreiro como ele não sei mais se haverá. Onde punha o olho, punha a bola.
(...) Era um mameluco louco, pêlo brabo, pixaim, com dois olhos claros de assustar.

FREI – Nesse tempo estava metido com os holandeses um mestiço mui atrevido e perigoso chamado Calabar (...).

Segundo o historiador Pedro Calmon na sua História do Brasil, “o nome africano Calabar, indica-nos que o desertor era negro ou mulato, embora Frei Rafael de Jesus lhe chame de mameluco.


BÁRBARA – Mulher de Calabar. Participou de seus ideais e é a voz que procura mantê-lo vivo e discute com as outras personagens sobre a representatividade política do marido. É através dela que ocorre a função metalinguística na peça. No início e fim do texto ela lança um enigma aos espectadores.

“Se os senhores quiserem saber por que me apresento assim, de maneira tão extravagante, vão ficar sabendo em seguida, se tiverem a gentileza de me prestar atenção. Não a atenção que costumam prestar aos sábios, aos oradores, aos governantes. Mas a que se presta aos charlatões, aos intrujões e aos bobos de rua.”

A partir desse momento, “emerge, através dela, a consciência popular”, que dita uma verdade não oficial, provocando uma inversão de valores em relação à interpretação do fato histórico: “ela inaugura a versão do oprimido.”

“(...) Esquartejaram Calabar e espalharam por aí seus pedaços. Mas Calabar não é um monte de sebo, não. Eu sei que Calabar deixou uma idéia derramada na terra. A gente da terra sabe dessa ideia, colhe essa ideia e gosta dela, mesmo que ande com ela escondida, bem guardada, feito um mingau esquentando por dentro. A ideia é dessa gente. (...)”

Neste trecho exemplificamos a interpretação de Calabar como um mito, pois sua bravura e esperteza são comentadas até pelos próprios inimigos, que justamente por este motivo, o condenaram a morte. Mas a morte física de Calabar dá origem a toda uma discussão sobre suas atitudes e permanência de seus ideais na consciência popular.
Mas aos poucos, Bárbara vai sendo calada por uma força que ela mal identifica, e acaba por aderir a estas vozes que lhe pedem:

Cala a boca,
Olha a noite,
Cala a boca,
Olha o frio.
Cala a boca, Bárbara.
Cala a boca, Bárbara.
Cala a boca, Bárbara.
Cala a boca, Bárbara.

O enigma que ela lança propicia a leitura da história como um caleidoscópio, conforme o contador e uma (s) razão (es) que se manifesta.

“Esperais um epílogo do que foi dito até agora? (...) A história é uma colcha de retalhos. Que importa o que Mathias contou, o que Brás arrotou, o que Nassau improvisou, o que Anna debochou, o que Bárbara esbravejou, o que Souto pentelho...(...) odeio o ouvinte de memória fiel demais.”


MATHIAS DE ALBUQUERQUE – Governador de Pernambuco. Representante da Coroa Portuguesa no Brasil. Em princípio Calabar lutava em favor dos portugueses, sob seu comando, depois o deixa em favor dos holandeses. Mathias divide sua ação em perseguir Calabar, realizar acordos e falcatruas junto com os holandeses e, mais particularmente, lamentar sua condição de explorador de um povo e uma terra que ele aprendeu a amar.

“Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo, além da sífilis é claro. Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, enganar, trucidar, meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora.”

Mathias é um homem dividido entre duas pátrias: a pátria política, Portugal e a pátria do coração, Brasil. Tanto que ora argumenta como português explorador, insano, seiscentista, como revela o próprio Chico:

“Agora mesmo no texto da peça Calabar, eu fiz um soneto que procura ser seiscentista, porque é recitado por um português no meio de um fado. Tinha que ser uma forma antiga”. Confira essa divisão de pátria no soneto antitético:

Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito.
Desencontrando, um mesmo me contesto.

(...)

E, se a sentença se anuncia, bruta,
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa.

Mathias de Albuquerque, em outras vezes, retrata-se como:

“E nesses devaneios minha terra não suporta mais as trevas e a opressão de Espanha e Portugal. A terra pulsa, blasfema e se debate dentro do meu peito. E para sua redenção qualquer caminho é legítimo (...)”.

O ponto de partida na trama desenvolvida por Chico e Ruy Guerra é um aviso de advertência de Mathias de Albuquerque a Calabar, nomeado major pelos holandeses. Mathias reconhecia o quanto dependiam da sabedoria e esperteza de Calabar para o empreendimento da conquista. Por isso não se conformava com a traição, mas prometia perdoá-lo se voltasse a defender os interesses da Coroa.
O discurso abaixo deixa claro o seu posicionamento frente à situação:

Por que é que ele foi para lá?
Era um mulato bonito, pêlo ruivo, sarará.
Guerreiro como ele não sei mais se haverá.
Onde punha o olho punha a bala.
Onde o mangue atola, o pé firmava.
Bom de briga, de mosquete e de pistola,
Lia nas estrelas e no vento.
Tendo a mata no peito e o peito atento,
Sabia dos caminhos escondidos,
Só sabidos dos bichos desta terra
De nome esquisito de falar.
Eu lhe dei minha confiança
Em matéria de navios e de guerra.
E ainda me pergunto,
Sem resposta pra me dar,
Por que é que ele foi para lá?
Era um mameluco, louco, pêlo brabo, pixaim.
Pra que falar dos seus dois metros de alto,
De seus olhos claros de assustar,
Capitão aqui, major passou no salto.
Levou o seu saber para os flamengos.
E nem sei se cobrou o que era de cobrar.
Eu lhe ofereci perdão em engenhos e
patente
Se quisesse voltar.

E afoito o rebelde, em língua de serpente,
Mandou-me recusar,
Como um bicho esquisito destas terras
Que pensa dum jeito impossível de pensar.
Por que é que ele foi para lá?
(BUARQUE & GUERRA, 1973:10-11).

A existência de tal personagem nos desperta para a reflexão e provoca dúvidas sobre o que significava “trair” naquele momento.

ANNA DE AMSTERDÃ – É a única personagem fictícia da peça. Cabe refletir sobre o seu papel o porquê da sua criação num contexto onde todas as outras personagens são historicamente reais. Era amante de Calabar. A função social dele é ser prostituta: metáfora do corpo violado, explorado e passivo.

Sou Anna dos diques e das docas.
Da compra, das vendas, das trocas, das pernas,
Dos braços da bocas, do lixo, dos bichos, das fichas.
Sou Anna das loucas.
Até amanhã
Sou Anna.

Anna representa o espírito colonizador na terra brasileira, também explorada na sua intimidade, também calada.

Vence na vida quem diz sim,
Vence na vida quem diz sim.
Se te dói o corpo,
Diz que sim.
Torcem mais um pouco.
Diz que sim
Se te dão um soco,
Diz que sim
Se te deixam louco,
Diz que sim.

SEBASTIÃO DE SOUTO – É um brasiliano que luta, ora a favor dos portugueses, ora dos holandeses. Souto representa a inconsciência histórica e política. Não luta por um ideal político ou social, mas por motivos fúteis ou por dinheiro. Leia a seguir o diálogo entre Bárbara e Souto:

BÁRBARA – Tem que haver um motivo muito forte. Mais que uma recompensa, uma honra ao mérito, uma ambição.

SOUTO – Motivo forte? Eu? Eu não tenho um motivo sequer para estar nesta guerra. Quando eu me dei por gente, já era uma praça do exército holandês combatendo na Paraíba. Porque holandês? Não sei. Vai ver que gostei do colorido (...) E continuo achando normal que qualquer que seja o resultado de todas as guerras, no eixo destas guerras sobrem escravos e miseráveis, gente sem juízo e sem princípios, subalternos desleais, como eu, e visionários como ele, na forca.

Por isso Bárbara desabafa durante uma conversa com Souto:

Pobre Sebastião, você não sabe o
que é trair. Você não passa de um delator.
Um alcaguete. Sebastião, tira as botas.
Põe os pés no chão. As mãos no chão, põe,
Sebastião, e lambe a terra. O que é que
você sente? Calabar sabia o gosto da terra
e a terra de Calabar vai ter sempre o
mesmo sabor. Quanto a você, você está
engolindo o estrume do rei de passagem.
Se você tivesse a dignidade de vomitar, aí
sim, talvez eu lhe beijasse a boca. Calabar
vomitou o que lhe enfiaram pela goela. Foi
essa a sua traição. A terra e não as sobras
do rei. A terra, e não a bandeira. Em vez
de coroa, a terra. (BUARQUE & GUERRA, 1973: 96).


MAURÍCIO DE NASSAU – Maurício de Nassau chegou ao Brasil em 1637, quando a Holanda triunfava sobre os portugueses. Nassau trazia consigo a missão de transformar o Brasil em sua Nova Holanda, para isso, trouxe consigo arquitetos, artistas, cientistas, e realizou obras que primeiro fundaram no Brasil um reflexo do universo humanista europeu.

“Eu Maurício de Nassau – Siegen, conde holandês da mui nobre casa dos Orange, que tantos reis e guerreiros tem dado ao meu país, embarco nesse ano de 1637 a caminho de Pernambuco, em terras do Brasil, como Governador Geral. Político hábil e diplomata, logo que aqui chegou, embora fosse calvinista, fez acordo com a igreja jesuítica.
Ora, Frei...Por quem sois...(Para o consultor) É o novo homem...(Para o Frei) Pelo menos venha a morar dentro das fortificações. Vou mandar construir-lhe uma casa vizinha ao palácio...(...).”

Nassau promoveu a liberdade de culto no Brasil, e com isso conquistou de vez a simpatia do Frei, que se tornou seu aliado. Em relação à arquitetura, mandou construir fortes, o forte Maurícia, que resguardava Pernambuco dos ataques das forças portuguesas; mandou construir também a Ponte Maurícia, que foi motivo de pilhéria e chacota por parte do povo, pois o local não comportava tal empreendimento.

Frei: (contendo o riso) Perdões, alteza, é brincadeira do povo. Eles não têm muita fé nessa ponte...Dizem que é mais fácil um boi voar...

A resposta de Nassau é típica de um megalomaníaco, tal qual ele se apresenta:

Nassau: Ali, sim? Um boi voar? Há, há, há! Pois terão as duas coisas: a Ponte e o Boi! Viva Dom João Quarto, rei de Portugal!

Sendo governador geral da cidade Maurícia, Nassau ignora o conselho dos seus assessores e tenta transplantar para a Capitania de Pernambuco seus ideais de grande político e conquistador. Nem mesmo os obstáculos políticos ou de ordem natural são capazes de suplantá-lo. Embora seja adepto da política da “boa vizinhança”, em alguns momentos a fala de Nassau denuncia as suas verdadeiras intenções.

Nassau: (...) Agora é preciso também controlar a produção...Colonizar! É preciso colonizar...(...)

Nassau é uma personagem síntese, pois carrega consigo o discurso do colonizador repressivo e violento; idealista também, pois, chega a gastar quantias exorbitantes para realizar projetos megalomaníacos, confrontando as ordens da Companhia das Índias; populista, com atitudes extremamente simpáticas para com o povo, conquistando assim sua confiança e confirmação; além do humor, não são poucas as situações em que suas atitudes e ideais fazem romper o riso, pelo absurdo e patético delas. Mas Nassau considera-se um predestinado e isso justifica suas atitudes, até o momento em que se instala a lucidez e a amargura.

“Alguma vez você já sentiu que o seu destino é tão grandioso, tão maior que o dos outros homens, tão independente dos seus atos que chega a assustar, ao mesmo tempo que te dá uma imensa sensação de prazer? Alguma vez? E depois se repetem e no seu cotidiano você passa a acreditar nesse destino até que um dia tudo fica amargadamente claro e você descobre que nada estava escrito a não ser nas tuas próprias ilusões.” (...)

A ação de maior representatividade dessa personagem é a traição. Ele acompanhava Calabar, sabia de suas estratégias e caminhos, e por isso mesmo torna-se o agente de traição ideal para os portugueses e holandeses. A contradição entre História e ficção neste momento é nítida:

“Na peça de Chico Buarque e Ruy Guerra, Sebastião do Souto morreu baleado enquanto conversava com Bárbara, a mulher de Calabar. Historicamente, contudo, Sebastião Souto morreu de espada em punho, três anos depois da morte de Calabar, quando Nassau atacou a Bahia, em 1638.” (JOSÉ AUGUSTO DE CARVALHO)

Souto aproxima-se de Bárbara, reconhecendo o seu papel vil e tentando reabilitar-se, reconstruindo e dando seguimento à trajetória de Calabar. Mas é Bárbara quem novamente chama sua atenção para o idealismo de Calabar contra a inconsciência política dos atos dele.

Bárbara: “Mas eu não reconheço em você o cheiro de Calabar.”

Ele era mil
Tu és nenhum
Na guerra és vil
Na cama és mocho
Tira as mãos de mim.

(...)

NEGRO HENRIQUE DIAS E O ÍNDIO FELIPE CAMARÃO - Ambos operam suas forças e conhecimentos da terra em favor dos dominadores. Ignoram suas origens e perseguem os de sua(s) origem(s).

CAMARÃO: E quem é que me obriga a falar feito índio? Eu também posso pensar em português, como cristão que sou. Por que é que eu vou para a guerra de azagaia, se posso arranjar um mosquete? E quando for pra morrer, pra que é que eu vou querer virar lua, pedra, cachoeira, bicho, raio de luz, se posso arranjar uma alma e ficar de conversa com Jesus Cristo até o fim dos dias?

FREI MANOEL DO SALVADOR, que serve ora a um, ora a outro colonizador, e que mantém acesa a discussão acerca do jogo de interesses e da traição imputada apenas a Calabar.


NACIONALISMO

Calabar trata do problema do nacionalismo, preocupa-se com a emergência de uma identidade nacional em perspectiva histórica. Desta forma, o que é Pátria? Ao passar para o lado dos holandeses a personagem estaria traindo a Pátria? Trata-se de um dilema que envolve não só Calabar, mas também Mathias de Albuquerque, que tem dúvidas quanto a quem deveria servir. A dúvida é característica constante em diversos discursos ao longo do texto.

Um diálogo entre Souto e Bárbara instiga esse tipo de reflexão, quando ele diz:

... queria que as coisas fossem
mais imediatas. Queria saber do certo e do
errado. Queria não ter dúvidas.
(MENEZES, 1982: 177-178)

Calabar tornou-se um novo paradigma para a releitura da história do Brasil, que se viu contado na perspectiva do oprimido, do homem da terra, como salienta Chico Buarque: “o que se debate em Calabar, não explicitamente, mas obrigatoriamente, é o conceito de pátria.”

BÁRBARA – E Calabar?

FREI – (Para Bárbara) Calabar é um assunto encerrado. Apenas um nome. Um verbete. E quem disser o contrário atenta contra a segurança do Estado e contra as suas razões. Por isso o Estado deve usar do seu poder para o calar. Porque o que importa não é a verdade intrínseca das coisas, mas a maneira como elas vão ser contadas ao povo.

Calabar teria escrito ao governador Waerdenburch, dizendo: “Passei para essa causa sem querer recompensa, e vim para melhorar minha terra, que não tem liberdade de espécie alguma.” Waerdenburch teria confirmado à Holanda que “Calabar só se colocou ao nosso lado por convicção, pois recusou as recompensas que vossas senhorias lhe haviam mandado. Diz estar certo de que a sua pátria irá melhor do que com os espanhóis e os portugueses.”

E quando, depois, o general Matias acenou com anistia total na tentativa de trazê-lo de volta, Calabar teria respondido: “Tomo Deus por testemunha de que meu procedimento é o indicado pela minha consciência de verdadeiro patriota, não como traidor, mas como patriota.” E no fim, em Porto Calvo, antes de entregar-se, teria escrito ao governo holandês no Recife: “Serei um brasileiro que morre pela liberdade da pátria.”

Na verdade, à pergunta “Por que Calabar passou para o outro lado?” temos de responder por enquanto com um “non liquet”, não sabemos o real motivo, pois nem do lado holandês, nem o meticuloso cronista De Laet (1644) e nem o panegirista Barlaeus (1647) mencionam motivo algum. De Laet registra somente que “para os nossos passou um mulato, de nome Domingo Fernandes Calabar” e Barlaeus observa que esse “português abandonou o partido do rei (da Espanha) pelo nosso,” mencionando a sua terrível morte por causa da sua infidelidade. Talvez seja pessimista demais a conclusão de Capistrano de Abreu: “nunca se saberá.”

POSICIONAMENTO POLÍTICO

Ainda sobre Calabar, avalia que “ali se projeta, inequivocamente o problema das omissões do intelectual, dos impasses do sujeito no agir histórico, dos dilemas de sua atuação e do silêncio imposto.” E, ainda, que a luta armada na qual Calabar foi atuante servia como analogia a um problema posto à esquerda no momento do golpe: o de optar ou não pelo enfrentamento com a ditadura.
Esse tipo de dúvida Calabar não tinha, e a personagem Bárbara, que o apoiou oferecendo-lhe seu amor, demonstra também não ter quando canta:

Ele sabe dos caminhos
Dessa minha terra
No meu corpo se escondeu,
Minhas matas percorreu,
Os meus rios,
Os meus braços,
Ele é meu guerreiro
Nos colchões de terra.
Nas bandeiras, bons lençóis,
Nas trincheiras, quantos ais, aí...
Cala a boca,
Olha o fogo,
Cala a boca,
Olha a relva,
Cala a boca, Bárbara.
Cala a boca, Bárbara.
Cala a boca, Bárbara.
Cala a boca, Bárbara.
Ele sabe dos segredos
Que ninguém ensina:
Onde eu guardo o meu prazer,
Em que pântanos beber,
As vazantes,
As correntes.
Nos colchões de ferro
Ele é o meu parceiro,
Nas companhias, nos currais,
Nas entranhas, quantos ais, ai.
Cala a boca,
Olha a noite,
Cala a boca,
Olha o frio.
Cala a boca, Bárbara.
Cala a boca, Bárbara.
Cala a boca, Bárbara.
Cala a boca, Bárbara.
(BUARQUE & GUERRA, 1973: 12)


CONQUISTADORES VERSUS CONQUISTADOS

A promessa de fama, riquezas e bem-aventurança parece-nos ser o que justifica a venda dos portugueses para o Brasil, e, logo depois deles, os holandeses, os franceses, os ingleses...Além desta situação percebemos, ao longo da história de Calabar outras motivações e consequências, que são: um universo de revolta e traição; negação dos valores do ouro (índio, negro, brasileiro) e novas terras (espelhamento do mundo europeu).
A disputa histórica que se seguiu entre Portugal, Espanha e Holanda pela exploração do açúcar nas terras brasileiras, uma terra antes vista como um paraíso pelo colorido natural, mas que logo se transformou numa terra sem lei, alvo da cobiça, vítima de toda sorte de horrores e violências.

FREI: Era o Brasil, antes da chegada dos holandeses, a mais deliciosa, próspera, abundante, e não sei se me adiantarei muito se disser a mais rica de quantas ultramarinhas o Reino de Portugal tem debaixo de sua coroa e cetro. (...) o ouro e a prata era sem número e quase não se estimava; o açúcar, tanto que não havia embarcações para carregar...(...) e não parecia esta terra senão um retrato de terreal paraíso.

O Frei termina sua fala, que apresenta a peça. Imitando um narrador.

FREI: Com os flamengos, entrou nesta terra de Pernambuco o pecado. Os moradores dela foram-se esquecendo de Deus e deram entrada aos vícios, e sucedeu-lhes o mesmo que aos que viveram o tempo de Noé, que os afogaram as águas do universal dilúvio, e como Sodoma e Gomorra, que foram abrasadas com o fogo dos céus.

A fala do Frei é confirmada pela de Anna de Amsterdã, quando ela canta e contagia com o seu frevo “Não existe pecado ao Sul do Equador”.

“Não existe pecado do lado debaixo do Equador. Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor/Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho/Um riacho de amor. (...)”

A moral cristã que antes era o norte dos habitantes da terra e dos estrangeiros portugueses é ignorada a partir da chegada dos holandeses. O que se percebe daí em diante é uma amoralidade, tanto que o próprio Frei revela sua prática sexual sem qualquer constrangimento, traindo seus princípios religiosos de castidade.

FREI: Convém que eu viva fora de sua casa, onde todos notem meu modo de proceder e sejam todos fiscais de minha vida e costumes, porque ainda que eu ande a comer meninos...

Ou a paixão e fascínio de Anna de Amsterdã por Bárbara:

ANNA: Você não tem jeito, Bárbara, você...(segura o rosto dela e fica séria)...Mesmo assim você está linda. E eu te quero muito, mulher!

Obviamente, que a sedução de Anna em relação à Bárbara pode ser lida como uma metáfora: a prostituta holandesa busca dissuadir Bárbara, física moral e intelectualmente de seus projetos libertários.


QUESTÃO ETNOCÊNTRICA

“Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossa definição do que é a existência.” (Everardo P.Rocha)
A questão etnocêntrica acaba por obrigar a uma reflexão sobre a tentativa do europeu de espelhar no Novo Mundo, principalmente o Brasil, sua terra, seus valores culturais, econômicos e religiosos.

Maurício de Nassau é a personagem que melhor ilustra esta situação com seus sonhos e delírios. Contradizendo ordens da Companhia das índias executa aqui, no Brasil, uma arquitetura material, cultural e política européia nas relações com os brasileiros, quando tenta transformar a capitania de Pernambuco num simulacro, anulando qualquer traço original.

NASSAU: Vamos ampliar a cidade do Recife e ladrilhar suas ruas (...) ergueremos uma nova cidade projetada conforme os mais modernos conceitos de urbanismos, de loteamento ao traçado racional de suas avenidas, desde o embelezamento de seus parques até o escoamento de seus esgotos. E a essa nova e suntuosa cidade, permito-me dar o nome de Cidade Maurícia.

E ainda mais, Mathias de Albuquerque, que revela seu sonho de ver o Brasil essencialmente português.

Ah! Essa terra ainda vai cumprir seu ideal.
Ainda vai torna-se um imenso Portugal.

NEGAÇÃO DOS VALORES DO OUTRO

Os princípios europeus que nortearam a conquista da América – expansão do império e propagação da fé – foram motivos de reflexão para vários estudiosos, entre eles salienta Silviano Santiago:

“A colonização pela propagação da Fé e o do Império é a negação dos valores do Outro (...) A tripla negação do Outro para ser mais preciso; primeiro do ponto de vista social já que o indígena perde a liberdade, passando a ser súdito de uma coroa européia. Segundo, o indígena é obrigado a abandonar o seu sistema religioso (e tudo o que ele implica de econômico, social e político) transformando-se pela força de catequese – em mera cópia do europeu. Terceiro: perde sua identidade linguística, passando gradativamente a se expressar por uma língua que não é a sua.”

A fala/situação de duas personagens em Calabar, ilustram perfeitamente esta questão: Henrique Dias, governador dos Pretos, Crioulos e Mulatos de Pernambuco; Antônio Felipe Camarão, governador e capitão-mor de todo os índios da costa do Brasil.

CAMARÃO: Minha graça é Camarão
Em Tupi, Poti me chamo.
Mas do novo Deus Cristão
Fiz minha rede e meu amo
Bebo, espirro, mato, esfolo
No ramerrão desta guerra
E seu eu morrer não me amolo.
Que um índio bom nunca berra.

Estas situações que Santiago revela sobre o índio, são perfeitamente cabíveis ao negro, escolhido desde o princípio como mão de obra ideal, por vários motivos.

“Em primeiro lugar, o tráfego negreiro da fonte de vultosos lucros para Portugal. A compra de escravos, por sua vez, representava o adiantamento à Metrópole, de parte considerável da renda a ser gerada na colônia.” (V.L.A. Ferlini)

A Europa, mais especificamente Portugal e Holanda, colocaram-se na posição de um Eu, que é superior, o representante da cultura, por excelência, o detentor do saber e progresso: e a América – o Brasil – o Outro, espaço primitivo, vazio, a ser preenchido pelo Eu.

Este comportamento etnocêntrico europeu pode ser considerado como primeiro gesto de violência em gesto em relação ao Novo Mundo e, talvez, mais cruel que os castigos físicos infligidos aos índios, negros e brasilianos, pois sua nação não se esgota num indivíduo, mas na história de um povo.

ESTERIÓTIPO FEMININO

Voltando-se para Bárbara, mulher de Calabar, teve o poder de despertar o desejo em um amigo de Calabar, Sebastião Souto, que foi quem entregou o seu “amigo” para os portugueses. Cometeu este ato, com o simples desejo de possuir Bárbara.

Ele era mil (Calabar)
Tu és nenhum (Souto)
Na guerra és vil (Souto)
Na cama és mocho (Souto)
Tira as mãos de mim (Bárbara)
Põe as mãos em mim (Bárbara)
E vê se o fogo dele (Calabar)
Guardado em mim (Bárbara)
Te incendeia um pouco (Souto)
Éramos nós (Bárbara e Calabar)
Estreitos nós (Bárbara e Calabar)
Enquanto tu (Souto)
És laço frouxo (Souto)
Tira as mãos de mim (Bárbara)
Põe as mãos em mim (Bárbara)
E vê se a febre dele (Calabar)
Guardada em mim (Bárbara)
Te contagia um pouco. (Souto)

Neste texto, temos um estereótipo feminino não muito comum. Uma mulher que usa de pressão psicológica para atingir o homem que entregou o seu marido. Ela se entrega a ele, vive com ele, e o martiriza fazendo comparações com a pessoa que ele traiu. Ela, Bárbara, é a narradora, e as ações narradas por ela têm uma idéia natural, comum. Através da atitude da narradora, temos a percepção de diferentes concepções a respeito da vida social, de valores e ações humanas.

A relação discursiva se mostra através do poder que Bárbara exerce sobre Souto, ela se mostra autoritária pelo simples fato de saber da traição de Sebastião e saber do sentimento que o mesmo nutre por ela. Ela utiliza o discurso direto: “Tira as mãos de mim, põe as mãos de mim”, temos a idéia de poder através do verbo no modo imperativo: “Tira/Põe”. Uma idéia de aceite por parte de Sebastião é vista, que ouve tudo calado e não contesta.

As principais identidades são Bárbara (a narradora), Calabar (o marido) e Sebastião Souto (o traidor). A relação social neste discurso se apresenta através da omissão de Souto que não questiona, não contesta o comportamento severo de Bárbara, que tem como característica, uma mulher esclarecida, ciente de seu desejo de vingança e de seu poder de persuasão, desta forma, ocorre um equilíbrio entre poder e se submeter.


CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O subtítulo da obra que Ruy Guerra e Chico Buarque nos apresentam, “O Elogio da Traição”, é um forte indicativo da importância desta situação na obra.
Num primeiro plano é uma intertextualidade com a obra do filósofo Erasmo de Roterdã renascentista “O Elogio da Loucura”, uma interpretação profunda e inteligente das questões políticas da sua época.

A traição, nesta obra, muitas vezes se confunde com um mal disfarçado ato senão de loucura, ao menos de delírio: fato que cada personagem exemplifica.

A descrição intuitiva de João Felício dos Santos talvez possa estar perto da resposta que se esconde na névoa da história. Para Felício, esse amor à terra natal era patente em todas as fases da vida do soldado, quem sabe um desejo de realmente ver “ordem e progresso” no Brasil (talvez o sonho de servir, não a si mesmo, mas à comunidade, com justiça e paz).

Como menino, o romancista faz Calabar estudar em um colégio de jesuítas onde se ensinava uma obediência incondicional à coroa católica romana de Castela, mas faz o menino responder que somente devia obediência à sua mãe e à terra brasileira. Como jovem, ele teria percebido que os holandeses amavam o Brasil pela construção e limpeza do Recife (e podia ter acrescentado: por planos de melhorias como o ensino primário generalizado, limpeza dos limpos, proibição do corte do pau-brasil e do cajueiro, etc.).

Finalmente, Felício faz Calabar adulto dizer ao frei Calado, seu confessor, defendendo-se do epíteto de traidor: “São partidários dos flamengos todos os que querem esta terra farta e acarinhada, sejam eles de que nação forem.”

Em seu livro panegírico “O valeroso Lucideno” em louvor ao líder João Fernandes Vieira, Calado afirmou que Calabar era um contrabandista, que inclusive teria cometido grandes furtos e vários crimes atrozes na paróquia de Porto Calvo e, temendo a justiça, fugiu com Bárbara para o campo do inimigo. Mas, sendo fugitivo do lado português, teria realmente segurança se passasse para o outro lado? Talvez, sim.

Mas, pela última vez em Porto Calvo, com soldados relutantes, restando pouca água e munições, com lenha amontoada pelos sitiantes debaixo da casa forte para queimá-los, e depois de “mais de meio-dia no ajuste dos artigos de rendição, porque o inimigo insistia em levar consigo Domingos Fernandes Calabar,” o próprio soldado Calabar sabia que era impossível escapar e, querendo poupar as vidas dos seus amigos e subordinados, “disse com grande ânimo estas palavras ao governador Picard: “Não deixeis, senhor, de concordar no que se vos exige pelo que me diz respeito, pois não quero perder a hora que Deus quis dar-me para salvar-me, como espero de sua imensa bondade e infinita misericórdia’.

 Por outro lado, o próprio major Alexandre Picard deve ter ficado arrasado com o triste fim do colega, e nós o encontramos depois na Holanda recuperando-se na casa do seu irmão pastor em Coevorden.

Flávio Guerra em seus escritos rejeita a idéia de fuga por roubo e outras razões dessa natureza. Ele argumenta: a) Calabar era um homem de posses que não aceitou dinheiro dos holandeses; b) ele não poderia ter defraudado bens do estado no Arraial; c) não há documento nenhum que fale em fraude; d) essa alegação surgiu somente alguns anos depois da morte de Calabar.

Revendo esses poucos exemplos, poderíamos então postular que a interpretação mais simples para o caso de Calabar seria econômica. Talvez Calabar, como grande conhecedor da região e dos acessos pelos rios, já fosse contrabandista antes e depois da invasão, e teria passado para os invasores em busca de dinheiro. Embora tudo indique que ele não precisava disto, pois já tinha adquirido propriedades e gado em Alagoas, um bom dinheiro sempre teria sido bem-vindo.

Outra interpretação é a questão de honra; talvez de glória, mas muito mais de reconhecimento, respeito, bom nome, dignidade. Vivendo no século XVII, por ser mestiço e não português “de sangue puro,” Calabar, apesar das suas qualidades, de certa forma era um inferior por causa da cor da sua pele, ainda que atualmente algumas pessoas tenham dificuldade em admitir esse fato histórico. Anos depois, o próprio governador de Pernambuco (1661-1664) escreveu que Calabar buscara entre os inimigos “a esperança que lhe impedia entre os nossos a vileza do nascimento.”

Por outro lado, Calabar, o mameluco, deve ter observado como os holandeses tratavam melhor os seus escravos, e os índios até mesmo com respeito, chamando-os de “brasilianos” por serem os primeiros moradores do vasto Brasil. E quem sabe Calabar também fosse um tanto ambicioso e pensasse que poderia fazer carreira do outro lado, o que num certo sentido aconteceu, como Coelho lembra ao afirmar que “logo o fizeram capitão.” Não foi tão logo, mas de fato aconteceu.

Será que houve algum motivo religioso na traição de Calabar? De fato, houve uma escolha religiosa voluntária por parte de Calabar, o que não era possível na direção oposta. Ele podia ter passado para o lado holandês sem filiação à “igreja do estado” e Bárbara podia ter procurado um padre católico romano para o batismo do seu filho.

A entrada da família Calabar na igreja reformada foi voluntária e o batismo do seu filho na igreja reformada do Recife em 1634 aponta para isto. Finalmente, dez meses depois, no dia da sua execução, Calabar reconheceu mais claramente os seus pecados e se mostrou tão arrependido que os religiosos que o assistiram acharam que “Deus por meio de tal pena o quis salvar, dando-lha no próprio lugar de seu nascimento e onde tanto o havia ofendido.”

– “E pensar que um mulato pernóstico mudou o curso da História.”   M. Albuquerque



II - O TEXTO TEATRAL E O CONTEXTO HISTÓRICO CULTURAL:

Segundo o crítico teatral Yan MICHALSKI (1985) até a década de 30 assistia-se a um profundo “imobilismo” do teatro nacional, pois este, longe de promover-se como uma força atuante na sociedade, tinha como objetivo primeiro descontrair o público, restrito ainda a uma pequena minoria da população: a elite local.


III - CARACTERÍSTICAS:

CALABAR ultrapassa a relação entre o texto e o leitor.

“Os autores desenvolveram a trama resgatando fatos e personagens históricos do século XVII, quando Holanda e Portugal lutavam entre si pela colonização do Brasil, para refletirem sobre o presente dos anos 70. Propunham uma reavaliação crítica do processo histórico nacional em seus diversos aspectos, e também, objetivavam despertar o público para reflexões acerca de conceitos como traição, nacionalidade e pátria, presentes nos discursos militares pós 1964 e que foram cristalizados pela história oficial, conforme declarações do próprio Ruy Guerra.” (AZEVEDO,1973:84 )

Calabar, num primeiro nível de interpretação, é uma obra ficcional apesar de que o seu estatuto literário advém da intenção de se recriar fatos históricos através da imaginação, e no assentamento às convenções do discurso dramático.

Os fatos históricos por si estão distribuídos, fragmentados nas falas de várias personagens, sendo que, cada uma interpreta a história conforme sua orientação ideológica.
A multiplicidade de argumentos e cenas caracteriza o texto teatral como polifônico, o que confirma sua profundidade e abertura de significações: o que vai exigir do leitor/espectador um maior envolvimento em relação ao conteúdo intelectual e afetivo.

Em Calabar mesclam-se elementos cômicos, trágicos, situações musicais, além de fundir personagens históricas com uma personagem idealizada: Anna de Amsterdã.
As implicações do mercado e da censura foram expressas por Fernando Peixoto ao demarcar os limites de criação e de desenvolvimento de sua equipe no projeto Calabar.

“Existe uma unidade que se manifesta juntamente na descontinuidade quase cinematográfica do relato. Cada cena se exprime livremente, independentemente das demais, em termos de estrutura.”

Peixoto lamenta a circunstância na qual Calabar foi produzida. Questiona se não seria possível dar a um espetáculo como aquele um significado mais profundo como uma reflexão sobre o momento histórico da peça e sua relação dialética com o momento histórico em que viviam.

Vivia o Brasil sob a opressão do regime ditatorial militar, e era comum o uso das metáforas nas produções artísticas a fim de, por um lado, burlar a censura rigorosa do sistema (sendo popular a figura de Armando Falcão, militar encarregado dessa tarefa canhestra) e, por outro, denunciar a situação atual.

Chico Buarque foi um mestre no uso dessas figurações: e o episódio histórico do traidor Calabar, comum em todos os livros didáticos como um dos maiores exemplos de perfídia - serviu de mote para justamente questionar a chamava versão oficial.
São significativas as reflexões e o posicionamento de Peixoto acerca de tais questões, pois, quando a peça foi liberada na década de 80 as perspectivas de debate e o público eram outros, assim como o contexto histórico do país. Diante da nova realidade seria necessário fazer uma releitura sobre o espetáculo a ser encenado.

“O texto é popular, na medida em que a história é revista segundo uma perspectiva transformadora, desmistificadora, e se resolve cenicamente em termos de comédia e de teatro musical, apesar dos momentos em que o texto deliberadamente mergulha na análise dos movimentos mais íntimos e escondidos da alma das personagens.”

De acordo com considerações do diretor Fernando Peixoto, não se trata de reabilitar a personagem histórica de Calabar. O objetivo principal é a desmistificação da figura do herói e a relativização de conceitos cristalizados pela história oficial. Segundo ele, a reinterpretação dos fatos é imprescindível para o tipo de análise proposta na peça.

As problemáticas postas por Peixoto são instigantes à medida que nos fazem refletir sobre a representatividade do teatro na sociedade atual e os limites impostos à criatividade artística durante as últimas décadas. Portanto, concordar que hoje é real a despolitização da classe teatral nos meios em que atua é considerar que os artifícios utilizados pelo regime militar e pelas empresas culturais foram eficazes e seus danos irreparáveis. Significa desacreditar em um processo de luta de inúmeros profissionais que se dedicaram exaustivamente na luta pela sobrevivência de suas atividades, especialmente do teatro, e que procuram, ainda hoje, um espaço para atuarem.

É imprescindível que tenhamos clareza de que, os problemas enfrentados pela classe artística hoje, são outros, como o momento histórico também o é. Faz-se necessário acreditar que, em qualquer circunstância, é possível atuar politicamente, reivindicando direitos que são de todos os profissionais.

Calabar trata-se de uma recriação, reinvenção dos fatos, como confirma o próprio Chico Buarque:

“O texto não pretende ser uma peça histórica, ou seja, reconstituição minuciosa de uma época, suas motivações, contradições, etc (...) Na peça, os fatos históricos servem apenas de ponto de partida para uma criação livre, espontânea, criativa e pessoal”.

IV - LINGUAGEM:

Com uma prática poética, Chico Buarque consegue criar canções-poemas que nos levam a identificar uma (inter) relação com vários discursos, principalmente o social, o poético e o histórico-cultural. Em uma parte de sua obra, conseguimos identificar a construção de perfis femininos que são cantados e decantados.

Chico consegue tematizar a figura feminina usando o eu lírico feminino, e em alguns casos, usando a voz masculina. Ao se colocar com um pensamento de mulher, consegue revelar os desejos e insatisfações da condição feminina; e quando utiliza como recurso a voz masculina, consegue moldar as personagens a um discurso masculinizado, fazendo com o universo feminino seja restrito a idéias patriarcais.

Para exemplificar a importância do discurso poético e de sua relação com outros discursos, lei a canção a seguir: “Tira as mãos de mim”.

Ele era mil
Tu és nenhum
Na guerra és vil
Na cama és mocho
Tira as mãos de mim
Põe as mãos em mim
E vê se o fogo dele
Guardado em mim
Te incendeia um pouco
Éramos nós
Estreitos nós
Enquanto tu
És laço frouxo
Tira as mãos de mim
Põe as mãos em mim
E vê se a febre dele
Guardada em mim
Te contagia um pouco.


Analisando de forma superficial esta letra, tem-se a idéia de que uma mulher fala com um homem sobre outro homem que não é ele (o ouvinte). Assim, temos a 1ª, 2ª e 3ª pessoa do discurso. Tem uma voz do discurso que tece a história, uma voz feminina.

O texto é construído com antíteses: “Tira/Põe”, “Mil/Nenhum”, com metáforas, que se apóiam em uma semelhança ou comparação conotativa: “Éramos nós, estreitos nós”. Desta forma temos a idéia de que a pessoa do discurso que fala e de quem se fala (nós) estavam sempre juntas, excluindo a pessoa com quem se fala (tu). O 1º ‘nós’, (ele e eu), é um pronome pessoal do caso reto, é metáfora de ‘nós’ substantivo, ou seja, o 2º ‘nós’, que é plural de nó (substantivo).

 Ao fazer esta relação com palavras semelhantes na escrita, mas com sentidos diferentes e classes gramaticais diferentes, percebemos que o autor joga com as palavras, e temos a oportunidade de perceber os diferentes significados que ela vai adquirindo, comprovando o que foi falado anteriormente a respeito do discurso poético. Chico então construiu uma figura de linguagem chamada: Antanaclase.

O discurso social trabalha com as dificuldades e diferenças sociais que podem gerar conflitos e tentam manipular o pensamento do homem. Deste modo, o discurso social entra em choque com discursos da história e da própria poética, muitas vezes, o discurso social trapaceia a própria realidade. Embora o discurso poético siga o caminho de rupturas e contestações, muitas vezes ele se apresenta preso ao sistema de domínio da própria sociedade.

Tomando como princípio o texto de José Luiz Meurer, temos a idéia de que o indivíduo tem a capacidade de “produzir, reproduzir ou desafiar a realidade social na qual vive” (Uma dimensão crítica do estudo de gêneros textuais. Pág.18), uma grande contribuição que o texto poético também nos oferece. A partir da Análise Crítica do Discurso, (1) produz e reproduz conhecimentos e crenças por meio de diferentes modos de representar a realidade; (2) estabelece relações sociais; e (3) cria, reforça ou reconstitui identidades.

Temos, através da idéia tríplice, a informação de que através desta canção, Chico Buarque reproduziu conhecimentos a respeito da história de Calabar e do período de colonização, da linguística, da linguagem e sua estruturação textual, e da literatura, utilizando o jogo de palavras e a literariedade. Usando a tríplice, ele estabeleceu relações sociais e apresentou ou criou identidades, principalmente a identidade feminina, na pessoa de Bárbara.

V – ESPAÇO E TEMPO:

Esta peça transporta-nos para a capitania de Pernambuco, no ano de 1635, quando a Holanda disputava com Portugal o domínio e exploração do cultivo da cana-de-açúcar naquela região. A história de Calabar é parte integrante do primeiro período da ocupação holandesa, a da resistência ibérica contra os conquistadores recém-chegados.

Um primeiro registro para a interpretação da obra é o próprio título dado à mesma, que corresponde a uma obscura personagem da História do Brasil – período colonial – que é reintroduzida à mesa de discussões, numa tentativa de reabitá-la ou não da condição de traidor pela coroa portuguesa.

Nove anos após a expulsão dos franceses, o território colonial brasileiro sofreu uma invasão holandesa, em 1624. Os motivos que traziam os holandeses ao Brasil eram muito diferentes.
Para compreendê-los, é necessário fazer algumas considerações sobre o período em que Portugal (União Ibérica) esteve sob o domínio espanhol, bem como sobre as relações internacionais da Espanha.

A história de Calabar se desenvolveu inteiramente no contexto do Brasil ibérico, quando, por algum tempo, não havia previsão de mudanças políticas. De lá não vinha ouro nessa época, e sim grandes caixas do apreciado açúcar, branco e mascavo.

Domingos Fernandes Calabar deve ter nascido durante a primeira década do século XVII, no atual Estado de Alagoas, na região de Porto Calvo, sendo filho de pai português e de mãe indígena, de nome Ângela Álvares. Era, assim, um mameluco, e foi batizado numa igreja da paróquia de Porto Calvo.

O menino foi educado numa escola dos padres jesuítas e, homem feito, ainda antes da invasão batava, possuía três engenhos de açúcar naquela região. Então, em 1630, a segunda onda de invasores holandeses alcançou à costa do Nordeste.

Portugal e a Holanda geralmente gozavam de um bom relacionamento, inclusive por causa do seu inimigo comum, a Espanha. Na época do Reino Unido Ibérico (1580-1640), a invasão flamenga fazia parte da guerra dos oitenta anos que a Holanda travava contra o domínio espanhol sobre os sofridos Países Baixos (1568-1648).

A Holanda procurava “estancar as veias do rei da Espanha,” pelas quais fluía tanta riqueza, e muitos holandeses apoiaram de coração os esforços da Companhia das Índias Ocidentais no sentido de causar “prejuízo ao inimigo comum.”

O florescimento da colônia holandesa coincidiu com a presença do Conde João Maurício de Nassau-Siegen como governador do Brasil holandês, e deveu-se em grande parte à sua pessoa.

Olinda, a capital da capitania de Pernambuco, caiu nas mãos dos holandeses em fevereiro de 1630. Envolvidos na guerra contra Madri, todos se alegraram quando os “espanhóis” se retiraram. Essa luta contra a Espanha tinha implicações profundamente religiosas.

Embora a instrução do almirante Lonck estipulasse que todos os padres jesuítas e outros religiosos teriam de abandonar o país, ela reafirmava a “liberdade de consciência, tanto para os cristãos como para os judeus, desde que prestassem juramento de lealdade..., assegurando-lhes que (a Holanda) não molestaria ou investigaria as suas consciências, mas que a religião reformada seria publicamente pregada nos templos...” Foi instituído um governo civil; um dos membros desse Alto Conselho era o médico Servaes Carpentier. O exército ficou sob o comando do coronel Diederick van Waerdenburch, o governador, presbítero da Igreja Reformada, homem estimado pelas tropas.

Em 1631, foi conquistada a Ilha de Itamaracá e construído o Forte de Orange sob a supervisão do capitão protestante Chrestofle Arciszewski, um nobre polonês. Todavia, a expansão foi lenta, e outras tentativas de ampliar a conquista vieram a fracassar por causa da resistência dos luso-brasileiros, que eram grandes conhecedores da região e de tática de guerrilhas (“capitanias de emboscada”), o que deixou os holandeses praticamente encurralados.

O próprio almirante Lonck quase caiu numa emboscada no istmo entre o Recife e Olinda, e o pastor Jacobus Martini foi morto no mesmo trecho. O centro da resistência portuguesa estava localizado a uns seis quilômetros do litoral, em um terreno alagadiço no lugar denominado Arraial do Bom Jesus. A Ibéria enviou uma armada de mais de 50 navios para recapturar Pernambuco, sendo que a maior parte da contribuição dada por Lisboa veio de empréstimos compulsórios de “cristãos novos” (judeus convertidos compulsoriamente ao catolicismo romano).

Em setembro de 1631, a batalha naval de Abrolhos, no litoral pernambucano, ficou sem vencedor. Em seguida, as tropas espanholas, sob o comando do conde napolitano Bagnuolo, desembarcaram em Barra Grande, no sul de Pernambuco, a cerca de cinco léguas do maior povoado da região, Porto Calvo, às margens do Rio das Pedras. Entre eles estava Duarte de Albuquerque Coelho, o novo donatário de Pernambuco, autor das famosas Memórias Diárias sobre os primeiros oito anos dessa guerra colonial. Por ora a situação era de empate, os holandeses dominando o mar, os portugueses as praias.

Essa situação continuou até 22 de abril de 1632 quando um soldado de nome Calabar, homem muito forte e audaz, deixou o campo português e passou para o lado dos holandeses.
Foi apenas por um breve período, pouco mais de três anos, mas teve consequências para toda a época flamenga. Calabar não foi o único a passar para o outro lado, mas sem dúvida foi o mais importante entre eles. Era um homem inteligente e grande conhecedor da região, que já tinha se distinguido e ficado ferido na defesa do Arraial sob a liderança do nobre general Matias de Albuquerque.

Inicialmente, os holandeses não confiaram muito nele. No entanto, dez dias depois Calabar provou pela primeira vez o que podia fazer, levando as tropas do coronel Van Waerdenburch a saquear Igaraçu, a segunda cidade de Pernambuco, local onde uma parte das riquezas de Olinda tinha sido transportada.

Durante os meses seguintes, muitas campanhas foram feitas pelas colunas volantes batavas sob a orientação de Calabar, que se tornou amigo do coronel alemão Sigismund von Schoppe. Por outro lado, o general Matias tentou “por todos os meios possíveis (reduzir Calabar), assegurando-lhe não só o perdão, mas ainda mercês, se voltasse ao serviço de el-rei; e esta diligência repetiu por muitas vezes, no que se gastou algum tempo; mas vendo que nada bastava para convencê-lo, tratou de outros meios.”

Em 1633, com a ajuda de Calabar, foi conquistado o litoral norte, desde Itamaracá até a fortaleza dos Reis Magos, e com isso o Rio Grande do Norte, o que levou a contatos amigos com os tapuias, indígenas antropófagos daquela região. Na parte sul, foi tomado o valioso ancoradouro do Cabo Santo Agostinho, o que privou os portugueses do porto mais próximo do Arraial, dificultando o recebimento de reforços de Lisboa e o envio de açúcar para Portugal.

Nessa altura, o coronel Sigismund, como o mais velho dos oficiais, assumiu o comando das tropas terrestres. No mar, o almirante Jan Cornelis Lichthart, que falava português, tornou-se amigo de Calabar, que lhe ensinava as entradas dos rios.

Do outro lado, os portugueses prosseguiam com suas tentativas de destruir Calabar. Assim, em março de 1634, o general Matias prometeu a Antônio Fernandes, um primo irmão com quem Calabar fora criado, “que lhe faria mercê que o contentasse se pudesse matá-lo em algum ataque.” Antônio aceitou a comissão, mas foi morto na tentativa.

Enquanto isso, Calabar se adaptava mais e mais à sociedade dos invasores e tornou-se um indivíduo estimado e respeitado, inclusive na “igreja católica reformada.” Prova disto é que, quando nasceu um filhinho do casal, foi batizado na Igreja Reformada do Recife. O menino foi, então, batizado “Domingo Fernandus, pais: Domingo Fernandus Calabara e Barbara Cardoza.” Como testemunhas, ali estavam o alto conselheiro Servatius Carpentier, o coronel Sigismund von Schoppe, o coronel polonês Chrestofle Arciszewski, o almirante Jan Cornelisz Lichthart e uma senhora da alta sociedade. O pastor oficiante foi provavelmente o Rev. Daniel Schagen.

No final de 1634, a Paraíba também havia se rendido aos invasores. Alguns sacerdotes (exceto os jesuítas) inclusive tiveram a permissão de assistir aos ofícios religiosos. Houve até um padre, Manuel de Morais, S.J., que passou para o lado invasor. Dessa forma, os holandeses ocuparam a faixa litorânea desde o Cabo Santo Agostinho até o Rio Grande do Norte. A Espanha não podia fazer muito devido aos grandes problemas que enfrentava na Alemanha (com o avanço do exército sueco para ajudar a Reforma contra as tropas do imperador), a perda de uma frota carregada de prata do México (devido a um furacão), problemas no Ceilão, vários anos de seca em Portugal, etc.

Novamente orientados por Calabar, os holandeses continuaram a expansão para o sul e, em março de 1635, atacaram Porto Calvo, a terra natal do próprio Calabar. Os defensores, liderados por Bagnuolo, fugiram para o sul, e com a ajuda de frei Manuel Calado do Salvador os moradores da região submeteram-se aos holandeses.

Dessa forma, o Arraial ficou isolado e, depois de três meses, em junho, Arciszewski conquistou aquela fortificação lusa, os religiosos recebendo permissão para levarem as suas imagens. A única estrada da região pantanosa de Alagoas que podia ser usada por carros de boi passava por Porto Calvo, e nessa altura estava em poder do major Picard e de Calabar. Matias viu-se forçado a atacar a praça, que teve de pedir condições de entrega. Picard tentou salvar a vida de Calabar e finalmente foi combinado que ele ficaria “à mercê d’el-rei.”

Porém, como disse o historiador De Laet, a proteção concedida foi “à espanhola” e um tribunal militar o condenou a ser enforcado e esquartejado como traidor. O frei Manuel o assistiu nas últimas horas e ao anoitecer do dia 22 de julho de 1635 a sentença foi executada. Foi também enforcado um judeu, Manuel de Castro, “homem de nação,” que estava ali a serviço dos holandeses. Poucas horas depois, os portugueses continuavam a sua retirada em direção à Bahia, levando consigo cerca de 300 prisioneiros holandeses.

Nenhum dos moradores cuidou de enterrar o soldado executado. Dois dias depois, chegaram a Porto Calvo as forças combinadas dos coronéis Sigismund e Arciszweski, que ficaram enfurecidos ao achar os restos mortais do seu amigo e compadre Calabar. Foram colocados num caixão e sepultados com honras militares.

VI - PERSONAGENS:

As personagens, embora histórica, no contexto teatral, dramatiza o texto teatral em dois atos, quando ora emerge a voz dominadora, ora emerge a voz dominada, para enfim, se tornarem um coro único.

DOMINGOS FERNANDES CALABAR – O fato de Calabar nortear a ação e consciência de todas as outras personagens é o que o faz protagonista da trama, embora não tenha falas explícitas. Trata-se de uma personagem virtual, ou seja, sua presença não é física, mas traduz-se na ação e reação, memória e falas de todo elenco de forma profunda.


Personagem histórica em torno da qual se desenvolve a ação dramática, é tratado pela historiografia tradicional como traidor da pátria por ter desertado em favor dos holandeses durante a colonização do Brasil. Nativo e grande conhecedor da região em disputa, o nordeste, Calabar esteve à frente da luta empreendida pelos portugueses para “libertar” o país do invasor holandês até reconhecer que a opção escolhida não representava ganhos para sua gente e para sua terra. Decidiu então, passar para o outro lado, acreditando que os holandeses pudessem trazer ao país um governo mais humano e menos opressivo do que o trazido por Portugal.
 
VII- ESTRUTURA:
O drama não parte de uma única opção que se desenvolve ao longo dos diálogos, ele se apresenta numa série de pequenos quadros ou intrigas, aparentemente simultâneas, que vão se agrupar no final, quando num lance carnavalesco, onde há uma simultaneidade de ação, destino e falas, todo o elenco canta o “Elogio da Traição”, sugerindo a vitória das falcatruas, da violência, dos interesses escusos e das forças opressoras, que até a contemporaneidade atuam sobre as terras brasileiras.

“O que é bom pra Alemanha é bom para o Brasil
O que é bom para o Japão é bom para o Brasil
O que é bom para o Gabão é bom para o Brasil.”

“Calabar “é uma obra complexa, tanto no que se refere à sua estrutura quanto à (s) temática (s) abordada (s) nela (s). Sua ação de maior audácia é reler a História do Brasil, dando voz aos que foram relegados à condição de vencidos, ora sob o tom trágico, ora sob o cômico burlesco, que prepondera.

Embora a formalização do texto promova um alerta para o contínuo processo da colonização que sofreu e sofre o Brasil o que não é uma perspectiva positiva, não são raros os momentos de humor, numa clara intenção de através do riso, tornar menos trágica a nossa história e mais político o colonizador.

Fatos históricos tomada de Pernambuco pelos holandeses, enforcamento de Calabar, o governo megalomaníaco de Maurício de Nassau, queda da Dinastia de Castela dos Felipes, reis de Espanha que governaram Portugal, trégua entre Portugal e Holanda assinada por D. João IV, além de situações puramente subjetivas, que revelam o drama íntimo das personagens, que particularizados revelam dúvidas, conflitos e preocupações humanas, independentemente da nação, do tempo a que pertençam como a traição e a morte.

Por tudo isso, Calabar é uma obra polifônica, por essa multiplicidade de vozes e perspectivas ideológicas que transformam a história numa imensa colcha de retalhos, e que dentre tantas traições que denuncia, a última é em relação ao espectador/leitor, que não encontra no final uma mensagem otimista, mas um motivo de alerta para os dias de hoje:

“O que é bom pra (...) é bom pro Brasil!”
E cai o pano!

A peça é dividida em dois atos:

1º ATO – CALABAR VIVO:


FREI MANOEL – Abre a peça com o discurso sobre as delícias do Brasil.

MATHIAS DE ALBUQUERQUE – tenta reconquistar a simpatia de Calabar.

BÁRBARA – inaugura a fala de resistência do colonizado.

FREI MANOEL E HOLANDÊS – adesão da igreja aos propósitos de exploração comercial da Holanda via Companhia das Índias.

MATHIAS E HOLANDÊS - pacto para prisão e morte de Calabar.

DIAS, CAMARÃO, SOUTO E ANNA DE AMSTERDÃ – a traição étnica, política e histórica.

- Prisão, condenação e morte de Calabar.


2º ATO – CALABAR MORTO – ENFORCADO:


MAURÍCIO DE NASSAU – a invasão ideológica, realização de obras arquitetônicas.

SOUTO E BÁRBARA – Souto reconhece a bravura e os princípios libertários de Calabar, e busca a adesão de Bárbara aos seus propósitos.

FREI E NASSAU – Nassau faz discurso sobre ação colonizadora da Holanda e faz acordo de interesse ideológico e econômico entre ambos: Igreja e Estado.

BÁRBARA E SOUTO – Bárbara discute com Souto e vê nele um possível espelhamento dos ideais de Calabar. Souto morre nas mãos dos holandeses.

BÁRBARA E ANNA – Bárbara se prostitui e faz discurso sobre o cansaço da resistência ante a invasão política, religiosa e ideológica dos colonizadores.

A cena une todas as personagens que desfilam e cantam juntas, num destino comum: a condição de exploradas.
A alternância de quadros e pluralidade de vozes (Polifonia) se manifesta num duplo movimento: a fala dos dominadores e exploradores:

HOLANDÊS – A cana, por exemplo, sem a qual não há razão para nenhum de nós estarmos aqui.

FREI MANOEL – Calabar é um assunto encerrado (...) e quem disser o contrário atenta contra a segurança do Estado (...)

MAURÍCIO DE NASSAU - ...Os tempos mudaram. Já não se pode apenas chegar, comprar, transportar e revender...Agora é preciso também controlar a produção. Colonizar! É preciso colonizar...

A fala dos dominados e explorados:

BÁRBARA – Com o tempo, a gente vai sendo acostumada a ter vergonha de muita coisa. Vergonha de acreditar que vale a pena lutar por uma coisa que preste.

ANNA – Pois eu não sei pra que uma morte há de ser necessária...Essa gente vai morrendo aí aos montes, faz um barulho danado e ninguém toma conhecimento...

DIAS – Eu sei qual é o meu lugar. Sei a quem devo as armas que manejo, os coturnos que calço e tudo que sou...

CAMARÃO – A luta contra o tempo. Minha raça começou a morrer no dia em que o primeiro civilizado botou o pé nas Américas.


VIII - TEMÁTICA:

TRAIÇÃO

Ao longo da peça, é recorrente o tema da traição. As personagens de Calabar quando não estão se acusando ou a outros de traição, estão traindo explicitamente.
A cada instante, em cada momento, as personagens traem. Traem alguma coisa, alguém, alguma ideia, se traem a si mesmos.
A traição é assim legitimada e torna-se, paradoxalmente, o fio que une e afasta afetiva, política e historicamente as personagens. E, antes de ser um fato histórico, ou seja, uma prática que atinge o destino de um povo é particular, humana. E conforme a perspectiva de quem a julga, é um ato de patriotismo ou de perversão. Por exemplo:

- Calabar trai aos portugueses quando se alia aos holandeses (traição ideológica).

- Sebastião do Souto trai Calabar, ajudando aos holandeses a localizá-lo e entregá-lo aos portugueses.

- A traição está estampada na personagem do Frei Manoel do Salvador. Até mesmo Mathias de Albuquerque admite ter tido dúvidas quanto a quem deveria obedecer, e também se deveria condenar Calabar quando diz:

Sim, padre, tenho sofrido esta
tentação. Ás vezes tenho hesitado em
deixar meu país à sua sorte, o que não é
sorte sua... Padre, às vezes, peco em
pensamento, e as palavras quase me
traem. E eu quase me surpreendo a
contestar as ordens que me chegam não
sei de onde ou em nome de quem...”. Ao
que acrescenta: “Oh, pecado infame, a
infame traição de colocar o amor à terra
em que nasci acima dos interesses do rei!
(BUARQUE & GUERRA, 1973:50-51).

- Bárbara durante todo o drama tenha reabilitar a imagem de Calabar, denunciar a violência de sua condenação, propagar suas idéias, mas não há quem a ouça. A personagem Anna de Amsterdã faz contracanto com ela, pois a todo momento, tenta dissuadi-la de sua intenção. E Bárbara acaba por se sentir vencida, contrariada, voz sem ouvidos para ouvi-la.

“(...) Mas tenho medo, Anna. A verdade é que eu não sou mais nada, me sugaram tudo, eu não quero mais essas mortes tão perto de mim...Me dá outro gole...É horrível dizer isso, Anna, mas eu quero viver...”

A traição é uma situação recorrente na história da humanidade, mas algumas vezes (des) orientou profundamente o curso de um povo em relação à sua filosofia, política e cultura.
Uma dessas situações foi intertextualizada por Chico Buarque e Ruy Guerra em Calabar. Trata-se da traição bíblica quando Judas trai a Cristo por trinta moedas de ouro, o que poderíamos relacionar a Sebastião Souto, e, ainda mais, a Pedro, discípulo que, logo após a crucificação de Cristo, negou tê-lo conhecido ou participado de suas ideias.

Considerando a hipótese de que todos traíram, a outros ou a si mesmos, por que somente um deles, Calabar, foi condenado pela História? Afinal, quem ele traiu? Portugal? Espanha? Brasil? E os outros? Por que não foram condenados?

Para discutir questões tão complexas, os autores lançaram mão de um estilo de linguagem que tentava dificultar a ação dos censores. A metáfora, usada em diversas situações, servia como arma para “provocar a dúvida” e como escudo para criticar a ação “terrorista” do regime. A ironia e o deboche presentes nos discursos das personagens traduziam o inconformismo da classe artística frente à insensatez do regime. Um trecho cantado por Anna de Amsterdam, juntamente com a introdução do coro, traz evidências da utilização desse recurso de linguagem:

Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
Se te dói o corpo,
Diz que sim.
Torcem mais um pouco,
Diz que sim.
Se te dão um soco,
Diz que sim.
Se te deixam louco,
Diz que sim.
Se te babam no cangote,
Mordem o decote,
Se te alisam com o chicote,
Olha bem pra mim.
Vence na vida quem diz sim,
Vence na vida quem diz sim.
Se te jogam na lama,
Diz que sim.
Pra que tanto drama,
Diz que sim.
Se te criam fama,
Diz que sim.
Se te chamam vagabunda,
Montam na cacunda,
Se te largam moribunda,
Olha bem pra mim.
Vence na vida quem diz sim.
Vence na vida quem diz sim.
Se te cobrem de ouro,
Diz que sim.
Se te mandam embora,
Diz que sim.
Se te puxam o saco,
Diz que sim.
Se te xingam a raça,
Diz que sim.
Se te incham a barriga
De feto e lombriga,
Nem por isso compra a briga,
Olha bem pra mim.
Vence na vida quem diz sim,
Vence na vida quem diz sim.
(BUARQUE & GUERRA, 1973:120)

Por outro lado, o texto desperta o público para a esperança de um futuro melhor. Um futuro onde o país estaria livre dos interesses e das pressões externas, e, o povo poderia exercer a sua liberdade. Isso só seria possível graças à existência de muitas pessoas como Calabar, de muitos “traidores” como ele.

De comerciante que visava o lucro e que, por isto, traíra os portugueses e colonos brasileiros - para um quase herói, que tinha por objetivo não o ganho pessoal, mas o melhor para o povo brasileiro (na verdade um conceito ainda inexistente, no século XVIII), conforme argumenta Bárbara nesta passagem do texto:

Um dia este país há de ser
independente. Dos holandeses, dos
espanhóis, dos portugueses... Um dia todos
os países poderão ser independentes, seja
do que for. Mas isso requer muito traidor.
Muito Calabar. E não basta enforcar,
retalhar, picar... Calabar não morre.
Calabar é cobra-de-vidro. E o povo jura
que cobra-de-vidro é uma espécie de
lagarto que quando se corta em dois, três,
mil pedaços, facilmente se refaz.
(BUARQUE & GUERRA, 1973:133)


A Ponte Maurício de Nassau,
em Recife, Pernambuco, Brasil.

É a ponte mais antiga da América Latina, datada de 1643. Liga o bairro do Recife ao bairro de Santo Antônio. Foi a primeira ponte construída sobre o rio Capibaribe, ainda quando o conde holandês Maurício de Nassau habitava nossa terras. Inaugurada em 1644, a ponte inicial era de madeira. Sofreu reformas em 1683 e 1742 e mudou de nome duas vezes. Em 1917 voltou a se chamar Maurício de Nassau e foi reinaugurada em concreto armado. Hoje, é uma beleza que faz parte do dia-a-dia de milhares de pessoas que trabalham no Centro do Recife e a utilizam para locomoção.
Em sua frente você visualiza o Palácio do Governo de Pernambuco, na Praça da República, construído em 1840. Nesse local existiu o Palácio das Torres, o de Friburgo, encomendado por Maurício de Nassau, durante o domínio holandês (1630-1654), demolido depois de 1770.
Para a história restou o busto (de costas) desse governante holandês, que gostava de Recife e construiu belas obras pela cidade. Pena que muita coisa foi incendiada (principalmente em Olinda, cidade vizinha) quando da expulsão dos holandeses do Brasil.


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