terça-feira, 8 de março de 2011

... e por falar em arte : Anita Malfatti

   




                Anita Catarina Malfatti nasceu em São Paulo em 2 de dezembro 1889. Não tinha um berço de ouro, mas também não passava por dificuldades. Seu pai, o italiano Samuel Malfatti, era engenheiro. Sua mãe, dona Elisabete, de nacionalidade americana, era pintora, desenhista, falava vários idiomas e tinha uma sólida cultura, cuidando pessoalmente da educação da filha.
                 Bem estruturada, Anita não encontrou maiores dificuldades em passar pelo exame de seleção do Mackenzie College, onde fez a Escola Normal e se formou professora, aos 19 anos.
                     Foi então que o destino lhe armou mais uma tragédia. Nem bem se formara e morre-lhe o pai, a quem tinha forte apego, e que era o arrimo da família.  A partir de então, a mãe passou a dar aulas de idiomas e de pintura, enquanto que, para complementar o orçamento doméstico, Anita começou também a trabalhar como professora.

                   O talento para a pintura, revelado pela moça, sensibilizou o tio e o padrinho. Juntos e, embora com sacrifício, conseguiram reunir uma soma em dinheiro, patrocinando a ela uma viagem de estudos à Alemanha. Em setembro de 1910, Anita chegou a Berlim, com o período escolar em andamento, o que impossibilitava inscrever-se numa escola regular, pelo que, passou a tomar aulas particulares no ateliê de Fritz Burger. Já no início do ano seguinte, pôde matricular-se na Academia Real de Belas-Artes.
      O mundo para ela era aquilo, até que, visitando uma exposição da Sounderbund (grupo de pesquisa), tomou contato com a arte dos rebeldes, desligados do academicismo ensinado nas escolas. Fascinada, aproximou-se do grupo e passou a ter aulas, primeiro com Lovis Corinth e depois com Bischoff-Culm, aprendendo pintura livre e a técnica da gravura em metal.
                   Regressou ao Brasil em 1914 para, logo em seguida, viajar para os Estados Unidos, terra natal de sua mãe. Matriculou-se na Art Students League, uma associação desvinculada das academias, e, sob a orientação de Homer Boss, teve a liberdade de pintar o que desejasse, com toda a  força própria de criação, sem quaisquer limitações estéticas. 
                 Foi esse período que marcou a fase mais brilhante de sua criação, no qual Anita pintou O homem amarelo, Mulher de Cabelos Verdes, O Japonês, e vários outros quadros.
 Foi a consagração de sua arte, no meio de insignes mestres e diante de um público capaz de interpretar a beleza e as emoções contidas em suas obras. Anita estava preparada para voltar ao Brasil.
Será que o Brasil estava preparado para recebê-la?
                        Em 1916, com 27 anos, a pintora estava de volta ao Brasil, adulta e madura, sentindo se suficientemente segura para expor sua nova concepção de arte, voltada para o Expressionismo. Fiando-se nos comentários favoráveis de amigos e, particularmente, do crítico Nestor Rangel Pestana, assim como nas palavras de incentivo de modernistas como Di Cavalcanti e outros, Anita não hesitou em alocar um espaço nas dependências do Mappin Stores, na rua Líbero Badaró, onde, em 12 de dezembro de 1917, realizou uma única apresentacão de seus trabalhos.

Ninguém, nem mesmo o mais experiente freqüentador do mercado de arte, poderia prever o tiroteio que seria disparado contra a jovem pintora, vindo, não das hostes inimigas, mas das trincheiras amigas, justamente das mãos de um renovador, o escritor Monteiro Lobato (1882-1948).
                           
                  Lobato fora, desde o início de sua carreira, um pré-modernista. Irritado com os padrões oficiais de educação e cultura, desvinculou-se das normas padronizadas da literatura, criando um estilo livre, avançado, valorizando a cultura nacional e discutindo temas voltados internamente para os problemas brasileiros.

                  Ao contrário do que se imagina, Monteiro Lobato sequer foi à exposição de Anita Malfatti. Não viu nada e não gostou do que não viu.  Mas, em artigo virulento, publicado no jornal «O Estado de São Paulo», depois de criticar as extravagâncias de «Picasso & Cia.», o escritor assestou as baterias contra Anita, esperando que as balas ricocheteassem, atingindo seu alvo principal, que eram  modernistas, companheiros da pintora. Foi uma reação inesperada, que espantou até os que conheciam o destempero do escritor, e inexplicável, pois sua editora, havia pouco tempo, publicara um livro do modernista Oswald de Andrade, cuja capa fora desenhada justamente por Anita Malfatti.
                 Usando como título: «Paranóia ou mistificação – A propósito da exposição Malfatti,», Lobato ataca as «escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos de cultura excessiva... produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência» e, depois, explica o título de sua catilinária: «Embora se dêm como novos, como precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu como paranóia e mistificação.     
         «De há muito que a estudam os psiquiatras, em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que, nos manicômios, essa arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses;
   «e fora deles, nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária mas não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura.»
       Nem as palavras mas afáveis, ou menos agressivas, despejadas ao final do artigo, nem os elogios ao seu talento, colocados no início, poderiam desfazer tamanho estrago sobre a personalidade tímida e irresoluta de Anita, que caiu em forte depressão, vivendo um período de desorientação total e de descrença, um sentimento que carregou pelo resto da vida.
       Sua primeira reação foi o abandono total à arte. Depois, passado um ano, dando uma guinada de 180 graus, foi tomar aulas de natureza-morta com o mestre Pedro Alexandrino Borges (1856-1942), ocasião em que conheceu Tarsila do Amaral, início de uma longa e proveitosa amizade.     

Tarsila foi para a Europa e Anita passou a estudar com outro mestre conservador, Jorge Fischer Elpons (1865-1939), também especialista em naturezas-mortas.     

 Instada por amigos, participou da Semana de Arte Moderna de 1922 e, no ano seguinte, com uma bolsa de estudos, viajou a Paris, onde se encontrou com Tarsila, Oswald, Brecheret e Di Cavalcanti. De lá voltou, com a confiança recuperada, mas disposta a não se atirar em novas aventuras.
        Sua arte, a partir daí, virou uma salada russa, logo notada pelos críticos:
        «A Sra. Malfatti faz o viajante percorrer os séculos e os gêneros. É primitiva, clássica, e moderna avançada, faz retratos e naturezas-mortas.»
                 A exposição de 1917 se deu em momento errado, no local errado e com a pessoa errada. As críticas de Lobato não se dirigiam a ela mas aos modernistas, com quem o escritor tinha um ajuste de contas. Anita Malfatti se viu no meio do tiroteio e foi atingida mortalmente pelas balas perdidas.
               Considerada por Pietro Maria Bardi como a maior pintora brasileira, ela jamais se recuperou do golpe sofrido. Como diria mais tarde Mário de Andrade: «Ela fraquejou, sua mão, indecisa, se perdeu.»
              Já com idade madura, Anita mudou-se, com sua irmã Georgina, para uma chácara em Diadema (SP), onde morreu em 6 de novembro de 1964, alienada do mundo, cuidando do jardim e vivendo seus próprios devaneios. (Paulo Victorino).

                   Um dos períodos de maior produção artística de Anita Malfatti foi durante sua estadia nos Estados Unidos, quando a artista se isolou numa ilha de pescadores na Costa do Maine chamada Monhegan Island (nome que serve de subtítulo a um dos quadros da época: Rochedos).
                  Anita vivia com outros pintores que trabalhavam sob a orientação do pintor e filósofo Homer Boss, da Independent School of Art. Anita passava os dias pintando ao ar livre, e ao anoitecer ouvia as aulas inspiradas de Homer Boss.  Nesse ambiente de liberdade e inspiração, a artista explorou as influências expressionistas adquiridas durante seu aprendizado anterior na Alemanha.

Em obras como A Ventania e A Onda, a paisagem local é representada como uma força selvagem, agressiva e dinâmica, e o uso da deformação expressa certa inquietação do olhar humano diante da natureza.
 
                                          
Uma das obras mais conhecidas desse período é O Farol. Nessa pintura, assim como em O Barco, a paisagem está mais harmonizada com a presença humana,  através das edificações que compõem o cenário. O uso da deformação é sensivelmente menor, em contrapartida Anita utiliza exemplarmente a principal característica do seu expressionismo: as cores abundantes e vivas, a chamada “Festa da Cor”.

 
 
               Tanto nas paisagens quanto nos retratos, a cor é o principal instrumento da jovem Anita Malfatti. A obra O homem de sete cores revela essa preocupação intensa, e essa técnica também irá produzir grandes telas como A boba.
                   Anita utilizava modelos que posavam na Independent School of Art em troca de alguns dólares. Essas pessoas, sem nenhuma ligação com o mundo artístico, serviriam como modelos para obras como A mulher de cabelos verdes e O homem amarelo, obra que fascinou Mario de Andrade, quando este sequer conhecia Anita.  
                   Nessas obras, assim como em Uma estudante, Anita revela o seu interesse em retratar o estado psicológico dos seus modelos. O uso de certa deformação moderada, fugindo dos modelos clássicos, causou grande alvoroço em Monteiro Lobato e na elite provinciana de São Paulo.
 
                        A recepção negativa da Exposição de 1917 fez com Anita recuasse nas suas propostas inovadoras para a pintura,  assim como afastou a possibilidade de alcançar o Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, almejado pela artista desde 1914. No entanto, apesar do escândalo geral, algumas forças ansiosas por renovação cultural já procuravam apoiar e defender a artista.

Entre eles está Mario de Andrade (retrato abaixo), grande admirador da pintora, que após a Semana de Arte Moderna de 22 cresceu em importância no cenário cultural paulista. Foi por intermédio de Mario de Andrade que Anita conseguiu o Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, e em 1923 a pintora partiu para a França.
          Ao receber o Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, graças ao seu apoiador Mario de Andrade, Anita parte para a França, para retomar seus estudos e dedicar-se unicamente à pintura (no Brasil, ela lecionara artes plásticas e pintara sob encomenda para sobreviver).

 A artista também viajaria para a Itália, onde iniciaria um processo de estudo dos clássicos, inclusive realizando réplicas e versões de pintores renascentistas, além de retratar a paisagem local.
Veneza (Canaleto). 1924.
     Apesar do recuo da atitude de vanguarda, Anita ainda era capaz de produzir grandes obras, sem abandonar a sua influência do humanismo expressionista, revelando a preocupação introspectiva e psicológica da artista.
                                                       La rentrée (interior). 1925-27
                   No final da sua carreira, Anita transforma radicalmente seu jeito de pintar. Ela declara querer abandonar as fórmulas internacionais, e pintar de forma cada vez mais simples. A temática também muda: a instrospecção, e os retratos de forte expressão psicológica são substituídos pela representação da “alma brasileira”.
                      Segundo a própria artista: “É verdade que eu já não pinto o que pintava há trinta anos. Hoje faço pura e simplesmente arte popular brasileira. É preciso não confundir: arte popular com folclore. (…) eu pinto aspectos da vida brasileira, aspectos da vida do povo.
               " Procuro retratar os seus costumes, os seus usos, o seu ambiente. Procuro transportá-los vivos para as minhas telas. Interpretar a alma popular (…) eu não pinto nem folclore, nem faço primitivismo. Faço arte popular brasileira”
As duas Igrejas (Itanhaém). 1940
         Anita procurava transmitir a “ternura brasileira” que não encontrava na arte da época. Para transmitir essa mensagem, achou que a sua técnica antiga era “muito violenta, inacessível à massa” – assim, procurava uma técnica simples, acessível a todos. Procurou cada vez mais esquecer escolas, teorias. Chegaria a declarar, em 1957, que estava “tentando pintar apenas a vida, sem quaisquer preocupações artísticas”, concluindo mesmo: “Se conseguir fazer isso, estarei satisfeita”.
Samba. 1943-45
Cambuquira. 1945.
Itanhaém. 1948-49
  Contra todos, Anita lutou sozinha tendo a seu lado um único, fiel amigo, confidente, companheiro, defensor e - agora se sabe - sua paixão nem tão secreta assim. A outros amigos Mário se abria e Manuel Bandeira, em carta, alertou: "O que lhe contaram de Anita não era intriga. Ela está apaixonada por você e esperava que você se definisse."

Mário morreu 19 anos antes de Anita, sem nunca lhe dar essa definição.



No 10º aniversário da morte de Mário de Andrade, Anita Malfatti escreveu:

                Para Mário de Andrade,
     Caminho do Céu,
     Estrada da Saudade:


(...)  «Eu moro longe de São Paulo, tomo conta do meu jardim, arranco o mato e planto as flores e as árvores, rego quando posso, arrumo a casa e pinto as festinhas do nosso povo, que dão alegria ao coração de gente simples.
    «O grandioso e o majestoso, assim como a glória e o mágico sucesso me deixam calada, triste, mas as coisas fáceis de pintar, simples de se compreender, onde mora a ternura e o amor do nosso povo, isso me consola, isto me comove. (...)
     «Tenho medo de ter desapontado a você. Quando se espera tanto de um amigo, este fica assustado, pois sabe que nós mesmos, nada podemos fazer e ficamos querendo, querendo ser grandes artistas e tristes de ficarmos aquém da expectativa.
  «Procurei todas as técnicas e voltei à simplicidade, diretamente: não sou mais moderna nem antiga, mas escrevo e pinto o que me encanta...»

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