domingo, 31 de julho de 2011

Arcadismo - Sonetos de Bocage

Manuel Maria Barbosa du Bocage

Bocage é um dos mais expressivos poetas noturnos da literatura portuguesa. Em muitos dos seus sonetos, ressoam atmosferas sombrias, antecipando a imaginação ultra-romântica, que recusa a vida normal e medíocre de um cotidiano sem lugar para a aventura, o sonho, o desejo.


Outros sonetos de Bocage caracterizam-se pela mescla de Arcadismo e Romantismo. O poeta muitas vezes oscila entre a convenção - marca do tempo em que vive - e o impulso - necessidade do seu temperamento; entre o bucolismo convencional e a confissão sentimental romântica.

Uma parte frágil da sua lírica está na mistura indiscriminada de elementos árcades e românticos, justapostos sem unidade interna. Outra parte frágil está nos poemas que apresentam ritmos e imagens fáceis, poesia declamatória, de circunstância, feita para impressionar os ouvintes, com truques de retórica e eloqüência exagerada: este é um preço pago por Bocage para ser um poeta que saiu dos salões e levou a poesia para as ruas, ajudando, inclusive, a criar um público moderno, urbano, não aristocrático, para a poesia.

Os sonetos mais expressivos de Bocage têm uma forte atmosfera pessoal, de confissão egocêntrica, de uma dramaticidade subjetiva intensa.

Poesia de ritmos candentes e imaginação, muitas vezes com ressonâncias profundas dos sonetos do poeta Luis de Camões, e muitas vezes ressoando nos dramáticos sonetos de Antero de Quental. Poesia de angústias e desesperos; poesias de confidências com a noite, poemas de amor e medo sombriamente misturados, poemas de horror da morte e da morte como uma espécie de amor.

Analisemos alguns dos sonetos de Bocage:

1. Apenas vi do dia a luz brilhante
Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá de Túbal no empório celebrado,
Em sanguíneo carácter foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte devorante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e enfim meu fado,
Dos irmãos e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da Pátria, longe da ventura,
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.


Estrutura interna bipartida:

1ª parte, constituída pelas quadras e pelo 1º terceto, na qual o sujeito poético nos dá conta do infortúnio com que o Destino o marcou à nascença, ao ponto de lhe ter roubado a mãe, quando ainda era criança, e de o ter afastado da Pátria e do resto da família (pai e irmãos);

2ª parte, constituída pelo último terceto, na qual o sujeito poético, utilizando uma comparação antitética que estabelece com a «insana multidão», confessa apenas suspirar pela paz da sepultura;

Nota: talvez seja de reparar o facto de o sujeito poético não se ter coibido de utilizar o termo morte (devorante), quando referido à mãe (vv 5/6), o que evidencia o quanto, para si, foi dolorosa, ao passo que, no final, porque é uma aspiração sua, e já pacificada, utiliza um eufemismo.

Aspectos psicológicos:

- caráter sanguíneo (marcado pelos Destinos (vv 3/4))

- carente de afetos (vv 5/8)

- desejoso da morte (v 14)

Elementos neoclássicos:

- a forma (soneto)

- o vocabulário alatinado (empório, devorante, vagando, insana)

- a presença da mitologia (Túbal, Destinos, Marte)

Elementos românticos:

- o caráter autobiográfico

- o individualismo

- o tom confessional

- a crença no fatalismo de que vítima

Alguns recursos estilísticos:

- adjetivação (brilhante, celebrado, sanguíneo, devorante, terna, doce, distante, curva, profundo, insana);

- metonímia (vv 2, 7);

- hipérbato (vv 2/4, 11);

- apóstrofe (v 6);

- anáfora (v 10);

- anástrofe (vv 1, 8);

- hipérbole e perífrase (v 11);

- eufemismo (v 14).

2. Já Bocage não sou!... À cova escura

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!... Tivera algum merecimento
Se um raio de razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria.

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei - ... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

Também este poema é o resultado de uma atitude introspectiva do sujeito poético, o que determina, uma vez mais, a respectiva estrutura interna:

- nas duas quadras, o sujeito poético confessa uma vida de ultraje a Deus no passado;

- nos dois tercetos, assiste-se à confissão do arrependimento, o que impele o sujeito poético a dirigir-se à mocidade, que corria atrás da sua poesia, para que rasgue seus versos e acredite na eternidade;

Note a diferença que resulta da leitura do verso 6, considerando o ritmo heróico (marca as palavras fez e intento), ou o sáfico (marca as palavras verso, louco e intento), ambos possíveis.

Elementos neoclássicos:

- a forma (soneto)

- a presença da mitologia (Musa)

- a presença de vocabulário alatinado (estro, fantástico)

- a alusão à razão

Elementos românticos:

- o tom confessional do poema

- o tema do arrependimento

- a alusão à morte

- o tom declamatório

- a pontuação expressiva associada à função emotiva

Alguns recursos estilísticos:

- adjetivação (escura, desfeito, leve, dura, vã, louco, pura, fria, alto, fantástico, ímpia);

- anástrofe (v 1/2, 6, 11/12);

- metonímia (v 3);

- antítese (v 4);

- apóstrofe (v 7, 13);

- metáfora (v 11).

3. Olha, Marília, as flautas dos pastores
Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores.

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.


Descrição de um locus amoenus ao longo de quase todo o soneto (até ao final do 1º terceto), muito ao gosto clássico. No entanto, o sujeito poético esclarece que toda aquela paisagem paradisíaca só é possível na presença da amada (v 13/14).

Esta atitude de apresentar a natureza como reflexo do estado da alma do poeta, em função da presença ou ausência da amada, é uma característica romântica.

Elementos neoclássicos:

- a forma (soneto)

- o vocabulário alatinado ( cadente, Zéfiros, ósculos)

- a presença da mitologia (Amores (Cupidos, filhos de Marte e de Vênus))

Elementos românticos:

- a natureza como reflexo do estado da alma do poeta (em função da presença ou ausência da amada);

- a pontuação subjetiva (abundância de exclamações);

- a presença do rouxinol e da noite;

- o amor sensual

Alguns recursos estilísticos:

- apóstrofe (v 1, 3, 5);

- adjetivação (cadentes, ardentes, alegre, clara);

- aliteração (sobretudo de sons fricativos, sibilantes e chiantes, e de vibrantes);

- personificação (v 3/4, 7/8, 9/11);

- anáfora (v 1, 3, 10/11);

- anástrofe (v 7/9...);

- hipérbole (v 13/14);

- metáfora (v 4, 9, 11);

- sinestesia (presença de várias sensações: auditivas, visuais, táteis, gustativas, olfativas).

4. Oh retrato da Morte, oh Noite amiga
Oh retrato da Morte, oh Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga.

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.


Estrutura interna - dois momentos distintos:

- as duas quadras, em que o sujeito poético se dirige à «Noite amiga», «retrato da Morte»; neste primeiro momento, assistimos à caracterização da noite (retrato da Morte, amiga, testemunha, confidente) e ao pedido para que, uma vez mais, ouça os seus desabafos, os seus lamentos;

- os dois tercetos, em que se dirige aos "mochos piadores", "cortesãos da escuridade" e "inimigos da claridade"; neste segundo momento, o poeta suplica aos mochos que, com a sua "medonha sociedade", o ajudem a fartar o seu coração de horrores;

O estado de alma do poeta é o resultado da falta de afetos, a conseqüência da "cruel" que dorme (ao contrário dele que passa uma noite de insônia) e que o obriga a delirar (v 8).

Elementos neoclássicos:

- a forma (soneto)

- a presença da mitologia (Amor (Cupido, filho de Marte e de Vênus))

- o vocábulo escuridade

Elementos românticos:

- o tom confessional do poema uma certa linguagem teatral (tom declamatório com presença de algumas interjeições e de exclamações);

- o uso de vocabulário tétrico (Morte, escuridão, pranto, desgostos, cruel, escuridade, Fantasmas, piadores, medonha, horrores) que nos aproxima dum ambiente próprio dum locus horrendus.

Alguns recursos estilísticos:

- personificação da Noite e dos mochos (v 9);

- apóstrofe (v 1/4, 6/7, 9/12);

- elipse (v 3);

- anástrofe (v 4/5, 8, 12);

- adjetivação (amiga, calada, antiga, pio, vagos, piadores, inimigos, medonha);

- reiteração (v 7, 13/14 (através da anáfora));

- anáfora (v 7, 13/14);

- sinestesia (v 3, 5, 7, 9, 11/12);

- metáfora (v 1, 4, 6, 9, 10, 13);

- comparação (v 11);

Note a existência de dois versos sáficos (com acento rítmico nas 4ª, 8ª e 10ª sílabas métricas): 8, 14.

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