segunda-feira, 19 de setembro de 2011

AUTO DA BARCA DO INFERNO - GIL VICENTE


1455/1456 – 1536-1538


AUTO DA BARCA DO INFERNO, 1517



I - AUTOR: GIL VICENTE

Sabe-se pouco sobre a vida de Gil Vicente. É provável que tenha nascido em 1455/1456, ignora-se a sua naturalidade (Guimarães, Barcelos, Lisboa ou na região da Beira) e possivelmente faleceu em fins de 1536 ou em 1540, conforme documento com o seguinte registro: “Gil Vicente, que Deus perdoe”.


Acredita-se que ocupou o cargo de ourives da Rainha Velha D. Leonor e prestou serviço administrativo na Casa da Moeda de Lisboa.


Tendo-se em vista seu amplo conhecimento filosófico, teológico e lingüístico, o autor deve ter tido uma educação privilegiada ou ter sido orientado por alguém do clero.


Sua primeira aparição deu-se no dia 07 de junho de 1502, em Lisboa. A corte de D. Manuel I e de D. Maria de Castela, filha dos reis espanhóis D. Fernando e D. Isabel, estava em festa, em virtude do nascimento do mais novo príncipe de Portugal, D. João III. Vestido de vaqueiro e acompanhado por um pastor de gado; invade o palácio, aproxima-se do leito da rainha que estava em convalescença e em tom de louvor, saúda o nascimento do “excelente príncipe”.
Através de um discurso turbulento, alegando ter sido espancado pela Guarda e expondo todas as dificuldades para conseguir lá chegar, faz que entrem outros “vaqueiros” que trazem presentes ao recém-nascido. Aproveitando-se desse motivo, representa o nascimento de Jesus e a visita dos Reis Magos.


O sucesso foi geral e D. Leonor (viúva de D. João II) contrata-o para reapresentar o monólogo em outras ocasiões natalícias.

O Monólogo do vaqueiro, como teria sido representado pelo próprio Gil Vicente, de acordo com a visão do pintor Roque Gameiro.

A partir dessa encenação, designada “Monólogo do Vaqueiro” ou “Auto da Visitação”, Gil Vicente, torna-se o genial criador do teatro popular português.
Antes da representação teatral de Gil Vicente, só havia meras encenações cênicas em que a palavra literária quase não existia.
Tornando-se cortesão e gozando de grande prestígio na corte, o autor dedicava-se a produção teatral como instrumento de entretenimento e de crítica à sociedade portuguesa de sua época.


Sua última representação data-se de 1536, com a estréia da peça “Floresta de enganos”.
Foram 34 anos de dramaturgia, além de ter colaborado com Garcia de Resende na compilação do “Cancioneiro geral”. Seguramente, Gil Vicente escreveu 44 peças, sendo 17 em português, 11 em castelhano e 16 bilingues. Além de autor, atuou, trabalhou o figurino, o cenário em diversas peças de variados temas e estruturas.
No entanto a publicação dessas peças é póstuma.


Seu filho, Luís Vicente, reuniu sua obra, editando um volume intitulado “Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente, em 1562; porém, sem valor documental, pois omitiu peças e alterou alguns textos.


II - CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL: (1418/1434 – 1527)

Gil Vicente pertence ao período histórico-literário chamado Humanismo, ou Segunda Época Medieval. Trata-se de um período de transição do pensamento teocêntrico medieval para uma visão antropocêntrica renascentista.

Durante esse período, o homem não rompeu com a idéia criacionista, ou seja, manteve a idéia de que Deus criou a Terra e as pessoas, mas mudou a relação entre esses elementos. O mundo não era mais pensado como um ligar de sofrimento e sim um lugar de delícias, onde o ser humano, a mais perfeita das criações divinas, foi colocado para ser feliz, para usufruir dos benefícios e das belezas de tudo o que o rodeia, inclusive do próprio corpo.

Esse período foi marcado pela a crise do sistema feudal e profundas transformações: Peste Negra (1348); a Guerra dos Cem Anos (1346 a 1450), a escassez de mão-de-obra e de mudanças sociais.

O feudalismo já em decadência e a Igreja vivendo uma série de conflitos, chegando a haver dois papas simultaneamente (um em Roma; e, outro, em Avignon, França), dão espaço para o crescimento da burguesia, que já havia conquistado suas riquezas com a exploração do comércio e das atividades bancárias.


III - CARACTERÍSTICAS:

. Teatro de transição: Idade Média para a Idade Moderna (teocentrismo para o antropocentrismo)
. Escrito em versos redondilhos
. Oitavas
. Rimas: ABBAACCA
. Escrito em português de seu tempo, utilizando-se da oralidade e do dialeto saiaguês, e o castelhano
. Rompe com a chamada três unidades do teatro clássico (espaço/tempo/ação)
. Alegórico (estratégia simbólica de se dizer uma coisa por meio de outra, ou seja, de representações, por meio de personagens ou objetos, de ideias abstratas, geralmente relacionadas aos vícios e virtudes humanas)
. Ausência de complexidade dramática e de conflitos propriamente ditos
. Fixação de tipos sociais da época e acentuação de traços típicos
. Apesar do estado transcendente que se encontram, seus atos e suas caracterizações são feitos de forma realista.
. Registro de hábitos linguísticos, ditos populares e expressões típicas de cada classe social
. Sucessão de quadros sem uma continuidade necessária (teatro de revista)
. Não há culminação dramática (clímax)
. Cenários e montagens simples, descontinuidade entre as cenas
. Compõe um painel rico da época e do mundo em que viveu
. Narrativas descontínuas, pequenos quadros que se sucedem
. Linguagem poética, efeitos cômicos, elaboração textual
. Características humanistas (mitologia, condenação da perseguição aos judeus e cristão-novos e crítica social)
. Tipos fantásticos (santos, anjos e demônios)
. Personagens planas (sem profundidade psicológica), porém representam as virtudes e os vícios da época
. Auto de moralidade
. Fazer rir dos deslizes alheios como modo de educar os costumes da época
. Privilegia o condenável, a crítica, a brincadeira cruel contra o clero e a nobreza
. Crítica aos comportamentos individuais como o adultério, o jogo de interesse, o furto, a feitiçaria, incompetência, vaidade, ambição, orgulho entre outros.


IV - FASES DOS TEATRO DE GIL VICENTE:

O teatro de Gil Vicente pode ser dividido em três fases:

a) I Fase: (1502/1514): corresponde a sua fase inicial e sofre influência do dramaturgo espanhol Juan Del Encina, autor de peças de caráter pastoril e religioso.
b) II Fase: (1515/1527): ponto mais elevado de sua carreira artística.
c) III Fase: (1528/1536): intelectualização de seus temas, sob influência do classicismo.

Obras:
• Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação (1502)
• Auto Pastoril Castelhano (1502)
• Auto dos Reis Magos (1503)
• Auto de São Martinho (1504)
• Quem Tem Farelos? (1505)
• Auto da Alma (1508)
• Auto da Índia (1509)
• Auto da Fé (1510)
• O Velho da Horta (1512)
• Exortação da Guerra (1513)
• Comédia do Viúvo (1514)
• Auto da Fama (1516)
• Auto da Barca do Inferno (1517)
• Auto da Barca do Purgatório(1518)
• Auto da Barca da Glória (1519)
• Cortes de Júpiter (1521)
• Comédia de Rubena (1521)
• Pranto de Maria Parda • Farsa de Inês Pereira (1523)
• Auto Pastoril Português (1523)
• Frágua de Amor (1524)
• Farsa do Juiz da Beira (1525)
• Farsa do Templo de Apolo (1526)
• Auto da Nau de Amores (1527)
• Auto da História de Deus (1527)
• Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela (1527)
• Farsa dos Almocreves (1527)
• Auto da Feira (1528)
• Farsa do Clérigo da Beira (1529)
• Auto do Triunfo do Inverno (1529)
• Auto da Lusitânia, intercalado com o entremez Todo-o-Mundo e Ninguém (1532)
• Auto de Amadis de Gaula (1533)
• Romagem dos Agravados (1533)
• Auto da Cananea (1534)
• Auto de Mofina Mendes (1534)
• Floresta de Enganos (1536)



V - CLASSIFICAÇÃO DO TEATRO VICENTINO:

Durante a Idade Média encontramos dois tipos de encenações: as peças litúrgicas, religiosas ou sacras (auto), que eram apresentadas de início no interior das igrejas (templos) e dividiam-se em: mistérios (representação de uma passagem da vida de Cristo); milagres (vida de algum santo e seu milagre) e moralidade (representação dramática criticando e moralizando algum costume da época) e as encenações profanas, satíricas ou não religiosas (farsa), episódios de caráter cômico, que critica um tipo social ou uma série deles.


VI - “AUTO DA BARCA DO INFERNO” (1517)


Ilustração da edição original do Auto da Barca do Inferno



ARGUMENTO:

“Como diz Gil Vicente, a “Barca do Inferno” prefigura o destino das almas que chegam a um braço de mar onde estão ancorados dois batéis: um, que se dirige para o Paraíso, e outro que transportará as almas para o Purgatório ou para o Inferno: aquela tripulada por um Anjo; esta, pelo Diabo e seu Companheiro.


Neste primeiro auto, Gil Vicente faz chegar à margem as almas representativas das várias classes sociais e profissionais de seu tempo: a nobreza, representada pelo fidalgo; o clero, pelo frade amancebado; a mesteiral, pelo sapateiro; a judicial, pelo corregedor e pelo bacharel procurador; a dos agiotas e ladrões, pelo judeu, pelo onzeneiro e pelo enforcado; a dos mistificadores, pela alcoviteira.

Para estes o destino é inapelavelmente ente o reino de Satanás. Não obstante todos argumentem com inúmeras razões o seu direito de embarcar no batel do Paraíso, apenas se salvam, neste primeiro juízo, um parvo (porque “deles é o reino do Céu”) e quatro cavaleiros – que combateram pela fé de Cristo.”


CONSIDERAÇÕES SOBRE A PEÇA:

“Esta peça, representada na câmara da rainha D.Maria, suscitou ao Poeta uma continuação que terminou na belíssima trilogia das barcas: a do “Inferno”, a do “Paraíso” (1518) (Também em português) e a da “Glória” (em espanhol, no ano de 1519), sendo que as duas últimas foram representadas respectivamente no Hospital de Todos os Santos em Lisboa em Almeirim. É muito admissível a hipótese de Oscar Pratt, que supõe ter sido o “Auto da Barca do Inferno” reencenado posteriormente na camarada rainha enferma D. Maria, depois de haver sido representada ao rei D. Manuel, no Natal de 1516, por ordem de D. Leonor, protetora do poeta. O auto aparece, pela primeira vez impresso, no ano de 1517, de cuja edição se conserva um exemplar na Biblioteca Nacional de Madri, e em cuja cota se refere que fora composto “por contemplação da sereníssima por seu mandato ao poderoso príncipe e mui alto rei D. Manuel”. Só assim se explica que na edição da “Copilaçam“ o editor mencionou haver sido o auto representado na câmara de D. Maria.”

PERSONAGENS:

As personagens desta obra são divididas em dois grupos: as personagens alegóricas e as personagens tipo. No primeiro grupo inserem-se o Anjo e o Diabo, representando respectivamente o Bem e o Mal, o Céu e o Inferno. Ao longo de toda a obra estas personagens são como que os «juízes» do julgamento das almas, tendo em conta os seus pecados na vida terrena.
SERES FANTÁSTICOS:

. Anjo – Arrais do Céu
. Diabo – Arrais do Inferno
. Companheiro do Diabo
No segundo grupo inserem-se todas as restantes personagens do Auto, nomeadamente o Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Parvo (Joane), o Frade, a Alcoviteira, o Judeu, o Corregedor e o Procurador, o Enforcado e os Quatro Cavaleiros. Todos mantêm as suas características terrestres, o que as individualiza visual e linguisticamente, sendo quase sempre estas características sinal de corrupção.
Fazendo uma análise das personagens, cada uma representa uma classe social, ou uma determinada profissão ou mesmo uma crença. À medida que estas personagens vão surgindo vemos que todas trazem elementos simbólicos, que representam os seus pecados na vida terrena e demonstram que não têm qualquer arrependimento pelos mesmos. Os simbolos cénicos de cada personagem são:
Fidalgo (Dom Anrique): NOBREZA
- um manto e pajem (criado) que transporta uma cadeira de espaldas. Estes elementos simbolizam a opressão dos mais fortes, a tirania e a presunção do moço.

Onzeneiro: EXPLORADOR
- bolsão. Este elemento simboliza o apego ao dinheiro, a ambição , a ganância e a usura.

Sapateiro (João Antão): MESTEIRAL
- avental e formas de sapateiro. Estes elementos simbolizam a exploração interesseira, da classe burguesa comercial.

Parvo (Joane): INGENUIDADE
- não traz símbolos cênicos, pois tudo o que fez na vida não foi por maldade. Esta personagem representa a inocência e a ingenuidade.

Frade: CLERO
- uma moça (Florença), uma espada, um escudo, um capacete e o seu hábito. Estes elementos representam a vida mundana do clero, e a dissolução dos seus costumes.

Alcoviteira (Brígida Vaz): MISTIFICADORA
- virgos postiços, arcas de feitiços, armários de mentir, jóias de vestir, guarda-roupa, casa movediça, estrado de cortiça, coxins e moças. Estes elementos representam a exploração interesseira dos outros, para seu próprio lucro e a sua actividade de alcoviteira ligada à prostituição.

Judeu: SÍMBOLO DO JUDAÍSMO:
- bode. Este elemento simboliza a rejeição à fé cristã, pois o bode é o simbolo do Judaísmo.

Corregedor e Procurador: JUDICIAL
- processos, vara da Justiça e livros. Estes elementos simbolizam a magistratura.

Enforcado (Pero de Lisboa): SUICIDA
- não traz elementos cênicos, mas em todas as ilustrações ele carrega a corda com que fora enforcado, que significa a sua vida terrena vil e corruptível.

Quatro Cavaleiros: CRISTÃO
- cruz de Cristo, que simboliza a fé dos cavaleiros pela religião católica.

- Cada personagem revela uma faceta de personalidade;
- Tais personagens não representam uma instituição, mas componentes das instituições e seus vícios humanos.


ENREDO:

“Representam-se na obra seguinte uma prefiguração sobre a rigorosa acusação que os inimigos fazem a todas as almas humanas, no ponto que por morte de seus terrestres corpos partem. E por trazer desta matéria põe o autor por figura que no dito momento elas chegam a um profundo braço de mar, onde estão dois batéis: um deles passa para a Glória, outro para o Purgatório. É repartida em três partes: a cada embarcação uma cena. Esta primeira é da viagem do inferno.
Esta prefiguração se escreve neste primeiro livro nas obras de devoção, porque a segunda e a terceira partes foram representadas na capela; mas esta primeira foi representada na câmara, para a consolação da muito católica e santa rainha D. Maria, estando enferma do mal de que faleceu na era do senhor de 1517.”


Toda essa composição cênica: rio, porto, barcas, anjo, diabo que concretiza o espaço intermediário entre a vida terrena e a vida eterna, representa a “moldura simbólica” do Auto.


- O primeiro interlocutor é um FIDALGO que chega com um Pajem que lhe leva um rabo muito comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno antes que o FIDALGO venha:

Caronte*

* Caronte era um barqueiro velho e esquálido, muitas vezes retratado com uma máscara de bronze para ocultar a sua face macabra.
Ele transporta os mortos recentes em sua barca através do Rio Aqueronte, para o outro lado do rio (Olimpo ou Hades).

Os Barqueiros (Arrais do Inferno e da Glória) julgarão as criaturas, segundo o que elas fizeram enquanto vivas e de acordo com os critérios do cristianismo católico da época.


DIABO: À barca, à barca, olá,
Que temos gentil maré!
- Ora venha o caro a ré!

COMPANHEIRO: Feito!Feito!
DIABO: Bem está!
Vai tu muitieramá,
Atesa aquele palanco
E despeja aquele banco
Para a gente que virá.

À barca, à barca, hu-u!
Asinha, que se quer ir!
Oh, que tempo de partir,
Louvores a Berzebu!
- Ora, sus! Que fazes tu?
Despeja todo esse leito!
COMPANHEIRO: Em boa hora! Feito, feito!
DIABO: Abaixa má-hora esse cu!

Faze aquela poja lesta
E alija aquela driça.
COMPANHEIRO: ô-ô, caça! Ô-ô, iça!iça!
DIABO: Oh, que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa!
Verga alta! Âncora a pique!
- Ó poderoso dom Anrique!
Cá vinde vós? Que cousa é esta?

O Diabo convoca e ordena a seu companheiro que prepare a embarcação. Nota-se que ele é um excelente capitão (Arrais) conhece muito bem as técnicas de navegação e os termos náuticos e trata os passageiros com cortesia irônica.

Vem o FIDALGO e, chegando ao batel infernal, diz:

FIDALGO: Esta barca onde vai ora,
Que assim está apercebida?
DIABO: Vai para a ilha perdida
E há de partir logo ess’ora.
FIDALGO: Para lá vai a senhora?
DIABO: Senhor, a vosso serviço.
FIDALGO: Parece-me isso cortiço...
DIABO: Porque a vedes lá de fora.

FIDALGO: Porém, a que terra passais?
DIABO: Para o Inferno, senhor.
FIDALGO: Terra é bem sem sabor.
DIABO: Quê? E também cá zombais?
FIDALGO: E passageiros achais
Para tal habitação?
DIABO: Vejo-vos eu em feição
Para ir ao nosso cais...

FIDALGO: Parece-te a ti assim.
DIABO: Em que esperas ter guarida?
FIDALGO: Que deixo na outra vida
Quem reze sempre por mim.
DIABO: Quem reze sempre por ti?...
Hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi!...
E tu viveste a teu prazer,
Cuidando cá guarecer
Por que rezam lá por ti?!

Embarcai!Hou!Embarcai,
Que haveis de ir à derradeira.
Mandai meter a cadeira,
Que assim passou vosso pai.
FIDALGO: Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai?
DIABO: Vai ou vem, embarcai prestes!
Segundo lá escolhestes,
Assim cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes,
Haveis de passar o rio.
FIDALGO: Não há aqui outro navio?
DIABO: Não, senhor, que este fretastes,
E primeiro que expirastes
Me destes logo sinal.
FIDALGO: Que sinal foi esse tal?
DIABO: Do que vós vos contentastes.

FIDALGO: - A estoutra barca me vou.


- Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Houlá! Hou!
- Pardeus, aviado estou!
Quanto a isto é já pior...
Que gericocins, salvanor!
Cuidam cá que sou eu grou?

ANJO: Que quereis?
FIDALGO: Que me digais,
Pois parti tão sem aviso,
Se a barca do Paraíso
É esta em que navegais.
ANJO: Esta é; que demandais?
FIDALGO: Que me deixeis embarcar.
Sou fidalgo de solar,
É bem que me recolhais.

ANJO: Não se embarca tirania
Neste batel divinal.
FIDALGO: Não sei por que haveis por mal
Que entre minha senhoria...
ANJO: Para vossa fantasia
Mui estreita é esta barca.
FIDALGO: Para senhor de tal marca
Não há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!
ANJO: Não vindes vós de maneira
Para ir neste navio.
Essoutro vai mais vazio;
A cadeira entrará,
E o rabo caberá,
E todo vosso senhorio.

Vós ireis mais espaçoso
Com fumosa senhoria,
Cuidando na tirania
Do pobre povo queixoso.
E porque, de generoso,
Desprezastes os pequenos,
Achar-vos-eis tanto menos
Quanto mais fostes fumoso.

DIABO: À barca, à barca, senhores!
Oh! Que maré tão de prata!
Um ventosinho que mata
E valentes remadores!

Diz cantando: “Vos me venirés a la mano,
A la mano me veniredes...
E vos veredes
Peixes nas redes.”

FIDALGO: Ao inferno todavia!
Inferno há aí para mim?
Ó triste! Enquanto vivi
Não cuidei que o í havia.
Tive que era fantasia:
Folgava ser adorado;
Confiei em meu estado
E não vi que me perdia.

Venha essa prancha! Veremos
Esta barca de tristura.
DIABO: Embarque vossa doçura,
Que cá nos entenderemos...
Tomareis um par de remos,
Veremos como remais,
E, chegando ao nosso cais,
Todos bem vos serviremos.

FIDALGO: Esperar-me-eis vós aqui:
Tornarei à outra vida
Ver minha dama querida
Que se quer matar por mim.
DIABO: Que se quer matar por ti?!
FIDALGO: Isto bem certo o sei eu.
DIABO: Ó namorado sandeu,
O maior que nunca vi!

FIDALGO: Como poderá isso ser,
Que me escrevia mil dias?
DIABO: Quantas mentiras que lias,
E tu...morto de prazer!
FIDALGO: Para que é escarnecer,
Que não havia mais no bem?
DIABO: Assim vivas tu, amém,
Como te tinha querer!

FIDALGO: Isto quanto ao que eu conheço...
DIABO: Pois estando tu espirando,
Se estava ela requebrando
Com outro de menos preço.
FIDALGO: Dá-me licença, te peço,
Que vá ver minha mulher.
DIABO: e ela, por não te ver,
Despenhar-se-á dum cabeço...

Quanto ela hoje rezou,
Entre seus gritos e gritas,
Foi dar graças infinitas
A quem a desassombrou.
FIDALGO: Quanto a ela, bem chorou!
DIABO: Não há aí choro de alegria?
FIDALGO: E as lástimas que dizia?
DIABO: Sua mãe lhas ensinou.

Entra! Entrai! Entrai!
Ei-la a prancha! Ponde o pé!
FIDALGO: Entremos, pois assim é.
DIABO: Ora, senhor, descansai,
Passeai e suspirai.
Em tanto virá mais gente.
FIDALGO: Ó barca, como és ardente!
Maldito quem em ti vai!

Diz o DIABO ao MOÇO DA CADEIRA:


DIABO: Não entras cá! Vai-te d’i!
A cadeira é cá sobeja:
Coisa que esteve na igreja
Não se há de embarcar aqui.
Cá lha darão de marfim,
Marchetada de dolores,
Com tais modos de lavores,
Que estará fora de si...

- À barca, à barca, boa gente,
que queremos dar à vela!
Chegar a ela! Chegar a ela!
Muitos e de boa mente!
Oh! Que barca tão valente!

O FIDALGO acredita que estará salvo graças ás relações de seu povo. Porém, a vida que levou é determinante à sua condenação. Seus pecados são: o autoritarismo, a arrogância, a frivolidade e a tirania.

Vem um ONZENEIRO, e pergunta ao ARRAIS DO INFERNO, dizendo:

ONZENEIRO: Para onde caminhais?
DIABO: Oh! Que má hora venhais,
Onzeneiro, meu parente!

Como tardastes vós tanto?
ONZENEIRO: Mais quisera eu lá tardar...
Na safra de apanhar
Me deu Saturno quebranto
DIABO: Ora, mui muito me espanto,
Não vos livrar o dinheiro...
ONZENEIRO: Somente para o barqueiro,
Não me deixaram nem tanto

DIABO: Ora entrai, entrai aqui!
ONZENEIRO: Não hei eu í d’embarcar!
DIABO: Oh! Que gentil recear,
E que coisas para mim!
ONZENEIRO: Inda agora faleci,
Deixa-me buscar batel!
Pesar de São Pimentel,
Nunca tanta pressa vi!

Para onde é a viagem?
DIABO: Para onde tu hás de ir.
ONZENEIRO: Havemos logo de partir?
DIABO: Não cures de mais linguagem.
ONZENEIRO: Para onde é a passagem?
DIABO: Para a infernal comarca.
ONZENEIRO: Dix! Não vou eu em tal barca.
Estrouta tem avantagem.

Vai-se à barca do ANJO, e diz:

Ó da barca! Olá! Hou!
Haveis logo de partir?
ANJO: E onde queres tu ir?
ONZENEIRO: Eu para o Paraíso vou.
ANJO: Pois quanto eu mui fora estou
De te levar para lá.
Essa barca que lá está
Vai para quem te enganou.

ONZENEIRO: Por quê?
ANJO: Porque esse bolsão
Tomará todo o navio.
ONZENEIRO: Juro a Deus que vai vazio!
ANJO: Não já no teu coração...
ONZENEIRO: Lá me ficam de rondão
Minha fazenda e alheia.
ANJO: Ó onzena como és feia,
E filha da maldição!

Torna o ONZENEIRO à barca do Inferno, e diz:

ONZENEIRO: Óla! Ó demo barqueiro!
Sabeis vós no que me fundo?
Quero lá tornar ao mundo
E trarei o meu dinheiro.
Aqueloutro marinheiro,
Porque me vê vir sem nada,
Dá-me tanta borregada,
Como Arrais lá do Barreiro.

DIABO: Entra, entra! Remarás!
Não percamos mais maré!
ONZENEIRO: Todavia...
DIABO: Por força é!
Que te pés, cá entrarás!
Irá servir Satanás,
Porque sempre te ajudou.
ONZENEIRO: Ó triste! Quem me cegou?
DIABO: Cal’-te, que cá chorarás.

Entrando o ONZENEIRO no batel, onde achou o FILDALGO embarcado, diz, tirando o barrete:

ONZENEIRO: Santa Joana de Valdês!
Cá é vossa senhoria?
FIDALGO: Dá ao Demo a cortesia!
DIABO: Ouvis? Falai vós cortês!
Vós, fidalgo, cuidareis
Que estais na vossa pousada?
Dar-vos-ei tanta pancada
Co’um remo, que renegueis!

O ONZENEIRO (agiota, usurário, representa a ganância e a avareza.

Vem JOANE, o PARVO, e diz ao ARRAIS DO INFERNO:

PARVO: Ó daquesta!
DIABO: Quem é?
PARVO: Eu sou.
É esta a naviarra nossa?
DIABO: De quem?
PARVO: Dos tolos!
DIABO: Vossa!
Entra!
PARVO: De pulo, ou de vôo?
Oh, pesar de meu avô!
Soma: vim adoecer
E fui má hora a morrer,
E nela para mim só.

DIABO: De que morreste?
PARVO: De quê?
Samicas de caganeira.
DIABO: De quê?
PARVO: De caga merdeira,
Má rabugem que te dê!
DIABO: Entra! Põe aqui o pé!
PARVO: Olá! Não tombe o zambuco!
DIABO: Entra, tolaço, eunuco,
Que se nos vai a maré!

PARVO: Aguardai, aguardai, olá!
E onde havemos nós de ir ter?
DIABO: Ao porto de Lúcifer.
PARVO: Há-a-a...
DIABO: Ao Inferno! Entra cá!
PARVO: Ao Inferno?! Ieramá!
Hiu!Hiu! Barca do cornudo.
Pero Vinagre, beiçudo,
Rachador d’Alverca, huhá!

Sapateiro da Candosa!
Entrecosto de carrapato!
Hiu! Hiu! Caga no sapato,
Filho da grande aleivosa!
Tua mulher é tinhosa
E há de parir um sapo
Chantado no guardanapo!
Neto da cagarrinhosa!

Furta-cebolas! Hiu!Hiu!
Excomungado nas igrejas!
Burrela, cornudo sejas!
Toma o pão que te caiu!
A mulher que te fugiu
Para a ilha da Madeira!
Ratinho da Giesteira!
O Demo que te pariu!

Hiu!Hiu! Lanço-te uma pulha!
Dê dê! Pica naquela!
Hiu! Hiu! Caga na vela!
Hiu, cabeça de grulha!
Perna de cigarra velha,
Caganita de coelha,
Pelourinho da Pampulha!
Mija na agulha, mija na agulha!
(rabo de forno de telha)

Chega o PARVO ao batel do ANJO, e diz:

PARVO: Ó da barca!
ANJO: Que me queres?
PARVO: Quereis me passar além?
ANJO: Quem é tu?
PARVO: Samica alguém
ANJO: Tu passarás, se quiseres;
Porque em todos teus fazeres
Por malícia não errastes.
Tua simpleza te baste
Para gozar dos prazeres.

Espera entanto por í,
Veremos se vem alguém
Merecedor de tal bem
Que deva entrar aqui.

O PARVO representa a glorificação da modéstia e da humildade.
Em Mateus, na Bíblia, há a seguinte menção: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus”.



Vem um SAPATEIRO com o seu avental e carregado de fôrmas, e chega ao batel infernal, e diz:


SAPATEIRO: Ó da barca!
DIABO: Quem vem í?
Santo sapateiro honrado,
Como vens tão carregado?
SAPATEIRO: Mandaram-me vir assim...

E para onde é a viagem?
DIABO: Para o lago dos danados.
SAPATEIRO: Os que morrem confessados
Onde têm sua passagem?
DIABO: Não cures de mais linguagem!
Esta é tua barca – esta!
SAPATEIRO: Renegaria eu da festa
E da puta da barcagem!

Como poderá isso ser,
Confessado e comungado?
DIABO: Tu morreste excomungado,
Não o quiseste dizer.
Esperavas de viver;
Calaste dois mil enganos.
Tu roubaste bem trinta anos
O povo com teu mister.

Embarca, eramá para ti,
Que há já muito que te espero!
SAPATEIRO: Pois digo-te que não quero!
DIABO: Que te pés, há de ir, sim, sim!
SAPATEIRO: Quantas missas eu ouvi,
Não me hão de elas prestar?
DIABO: Ouvir missa, então roubar –
É caminho para aqui.

SAPATEIRO: E as ofertas, que darão?
E as horas dos finados?
DIABO: E os dinheiros mal levados,
Que foi da satisfação?
SAPATEIRO: Ah! Não praza ao cordovão,
Nem à puta da badana,
Se esta é boa traquitana
Em que se vê João Antão!

Ora juro a Deus que é graça!

Vai-se à barca do ANJO, e diz:

Ó da santa caravela,
Podereis levar-me nela?
ANJO: A carga te embaraça.
SAPATEIRO: Não há mercê que Deus me faça?
Isto uxiquer irá.
ANJO: Esta barca que lá está
Leva quem rouba de praça.

Oh, almas embaraçadas!
SAPATEIRO: Ora eu me maravilho
Haverdes por grão peguilho
Quatro forminhas cagadas
Que podem bem ir chantadas,
Num cantinho desse leito!
ANJO: Se tu viveras direito,
Elas foram cá escusadas.

SAPATEIRO: Assim que determinais
Que vá coser ao inferno?
ANJO: Escrito está no caderno
Das ementas infernais.

Torna-se à barca dos danados, e diz:

SAPATEIRO: Ó barqueiros! Que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo
E levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!


O SAPATEIRO simboliza a má fé e a hipocrisia religiosa.

Vem um FRADE com uma MOÇA pela mão, e um broquel e uma espada na outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar dizendo:

FRADE: Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;
Ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã;
Ta-tã; ta-rim-rim-rã. Huhá!
DIABO: Que é isso, padre? Que vai lá?
FRADE: Deo gratias! Sou cortesão.
DIABO: Sabeis também o tordião?
FRADE: Por que não? Como ora sei!
DIABO: Pois entrai! Eu tangerei
E faremos um serão.
Essa dama, é ela vossa?
FRADE: Por minha a tenho eu,
E sempre a tive de meu.
DIABO: Fizestes bem, que é formosa!

E não vos punham lá grosa
No vosso convento santo?
FRADE: E eles fazem outro tanto!
DIABO: Que coisa tão preciosa...
Entrai, padre reverendo!
FRADE: Para onde levais gente?
DIABO: Para aquele fogo ardente
Que não temestes vivendo.

FRADE: Juro a Deus que não te entendo!
E este hábito não me val?
DIABO: Gentil padre mundanal,
A Berzebu vos encomendo!
FRADE: Ah! Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesus Cristo,
Que eu não posso entender isto!
Eu hei de ser condenado?

Um padre tão namorado
E tanto dado à virtude!
Assim Deus me dê saúde,
Que eu estou maravilhado!
DIABO: Não cureis de mais detença,
Embarcai, e partiremos:
Tomareis um par de remos.
FRADE: Não ficou isso na avença.

DIABO: Pois dada está já a sentença!
FRADE: Pardeus! Essa seria ela!
Não vai em tal caravela
Minha senhora Florença.
Como? Por ser namorado
E folgar com uma mulher
Se há de um frade perder,
Com tanto salmo rezado?
DIABO: Ora estás bem aviado!
FRADE: Mais estás bem corregido!
DIABO: Devoto padre marido,
Haveis de ser cá pingado...

Descobriu o FRADE e a cabeça, tirando o capelo, e apareceu o casco, e diz o FRADE:

FRADE: Mantenha Deus esta coroa!
DIABO: Ó padre Frei Capacete!
Cuidei que tínheis barrete!
FRADE: Sabei que fui da pessoa!

Esta espada é roloa
E este broquel rolão.
DIABO: Dê Vossa Reverência lição
De esgrima, que é coisa boa!

Começou o FRADE a dar lição de esgrima com a espada e o broquel, que eram de esgrimir, e diz desta maneira:

FRADE: Deo gratias! Demos caçada!
Para sempre contra sus!
Um fendente! Ora sus!
Esta é a primeira levada.
Alto! Levantai a espada!
Talho largo, e um revés!
E logo colher os pés,
Que todo o al não é nada.

Quando o recolher se tarda,
O ferir não é prudente.
Ora, sus! Mui largamente,
Cortai na segunda guarda!
Guarde-me Deus de espingarda
Mais de homem denodado.
Aqui estou tão bem guardado
Como a palha na albarda.

Saio com meia espada...
Olá! Guardai as queixadas!
DIABO: Oh, que valentes levadas!
FRADE: Inda isto não é nada...
Demos outra vez caçada!
Contra sus e um fendente,
E cortando largamente,
Eis aqui sexta feitada.

Daqui saio com uma guia
E um revés da primeira:
Esta é quinta verdadeira.
- Oh! Quantos daqui feria!
Padre que tal aprendia
No Inferno há de haver pingos?
Ah! Não praza a São Domingos
Com tanta descortesia!

Tornou a tomar a moça pela mão, dizendo:

Prossigamos nossa história
Não façamos mais detença.
Dá cá a mão, minha Florença:
Vamos à barca da glória!

Começou o FRADE a fazer o tordião e foram dançando até o batel do ANJO desta maneira:

FRADE: Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-ri-rã;
Tai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã;
Huhá!
Deo gratias! Há lugar cá
Para minha Reverença?
E a senhora Florença
Pelo meu entrará lá!

PARVO: Andar, muitieramá!
Furtaste esse trinchão, Frade?
FRADE; Senhora, dá-me à vontade,
Que este feito mal está.
Vamos onde havemos de ir,
Não praza Deus co’a ribeira!
Eu não vejo aqui maneira
Senão enfim...concluir.

DIABO: Padre, haveis logo de vir.
FRADE: Agasalhai-me lá Florença,
E cumpra-se a sentença,
E ordenemos de partir.

O FRADE representa o falso moralismo religioso. Não é recebido pelo ANJO e é condenado por seus comportamentos mundanos.

Tanto que o FRADE foi embarcado, veio uma ALCOVITEIRA, por nome BRÍSIDA VAZ, a qual, chegando à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍSIDA VAZ: Olá da barca, olá!
DIABO: Quem chama?
BRÍSIDA VAZ: Brísida Vaz.
DIABO: Eia, aguarde-me, rapaz.
Como não vem ela já?
COMPANHEIRO: Diz que não há de vir cá
Sem Joana de Valdês.
DIABO: Entrai vós, e remareis.
BRÍSIDA VAZ: Não quero eu entrar lá.

DIABO: Que saboroso arrecear!
BRÍSIDA VAZ: Não é essa barca a que eu cato.
DIABO: E trazeis vós muito fato?
BRÍSIDA VAZ: O que me convém levar.
DIABO: Que é o que haveis de embarcar?
BRÍSIDA VAZ: Seiscentos virgos postiços,
E três arcas de feitiços
Que não podem mais levar.

Três armários de mentir,
E cinco cofres de enleios,
E alguns frutos alheios,
Assim em jóias de vestir;
Guarda-roupa de encobrir;
Enfim – casa movediça;
Um estrado de cortiça
Com dois coxins de encobrir.

A maior carga que é:
Essas moças que vendia.
Daquesta mercadoria
Trago eu muita, bofe!
DIABO: Ora ponde aqui o pé...
BRÍSIDA VAZ: Hui! E eu vou pra o Paraíso!
DIABO: E quem te disse a ti isso?
BRÍSIDA VAZ: Lá hei de ir desta maré.

Eu sou mártir tal,
Açoites tenho levados,
E tormento suportados,
Que ninguém me foi igual.
Se fosse ao fogo infernal,
Lá iria todo o mundo!
A estoutra barca, cá fundo,
Me vou eu, que é mais real.

Barqueiro, mano, meus olhos:
Prancha a Brísida Vaz!
ANJO: Eu não sei quem te cá traz...
BRÍSIDA VAZ: Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
Anjo de Deus, minha rosa?
Eu sou aquela preciosa
Que dava as moças aos molhos,

A que criava as meninas
Para os cônegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
Meu amor, minhas boninas,
Olhos de perlinhas finas!
E eu sou apostolada,
Angelada e martelada,
E fiz coisas mui divinas.

Santa Úrsula não converteu
Tantas cachopas como eu:
Todas salvas pelo meu,
Que nenhuma se perdeu.
E prouve Àquele do Céu
Que todas acharam dono.
Cuidais que dormia sono?
Nem ponto se me perdeu!

ANJO: Ora vai lá embarcar,
Não me estes importunando!
BRÍSIDA VAZ: Pois estou-vos eu contando
O porquê me haveis de levar.
ANJO: Não cures de importunar,
Que não podeis ir aqui.
BRÍSIDA VAZ: E que má hora eu servi,
Pois não me há de aproveitar!

Tornar-se Brísida Vaz à barca do Inferno, dizendo:

Ó barqueiros da má hora,
Que é da prancha, que eis me vou?
E há já muito que aqui estou,
E pareço mal cá fora.
DIABO: Ora entrai, minha senhora,
E sereis bem recebida;
Se vivestes santa vida,
Vós o sentireis agora.

A ALCOVITEIRA, Brísida Vaz, possui um prostíbulo e afirma que foi torturada em vida, então, se ela for condenada, todos serão, pois cometem pecados iguais ou piores aos seus. Por ser repugnante, desperta o desejo do Diabo.


Tanto que BRÍSIDA VAZ se embarcou, veio um JUDEU, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

JUDEU: Que vai cá, ó marinheiro?
DIABO: Oh! Que má hora vieste!
JUDEU: Cuja é esta barca que preste?
DIABO: Esta barca é do barqueiro.
JUDEU: Passai-me, por meu dinheiro.
DIABO: E o bode há de cá vir?
JUDEU: Pois também o bode há de ir.
DIABO: Que escusado passageiro!

JUDEU: Sem bode, como irei lá?
DIABO: Nem eu passo cabrões.
JUDEU: Eis aqui quatro tostões,
E mais se vos pagará.
Por vida de Semifará,
Que me passeis o cabrão!
Quereis mais outro tostão?
DIABO: Nenhum bode há de vir cá.

JUDEU: Por que não irá o judeu
Onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
DIABO: E ao fidalgo, quem lhe deu
O mando deste batel?
JUDEU: Corregedor, coronel
Castigai este sandeu”

Azará, pedra miúda,
Lodo, chanto, fogo, lenha,
Caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Per el Deu, que te sacuda
Com a beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!

PARVO: Furtaste a chiba, cabrão?
Pareceis-me vós a mim
Gafanhoto de Almerim
Chacinado em um seirão.
DIABO: Judeu, lá te passarão,
Porque vão mais despejados.
PARVO: E ele mijou nos finados
Na Igreja de São Gião!

E comia a carne da panela
No dia de Nosso Senhor!
E aperta o Salvador,
E mija na caravela!
DIABO: Sus, sus! Demos à vela!
Vós, Judeu, ireis à toa,
Que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!

Símbolo do judaísmo, ao contrário dos anteriores quer embarcar no Batel do Inferno, argumentando que deve ser levado porque tem dinheiro para pagar a sua viagem e de seu bode.
Reclama de discriminação, pois se Brísida Vaz foi aceita, por que não ele e seu bode?
Decidem que o JUDEU irá numa embarcação rebocada pela barca do Inferno e que o BODE irá preso numa coleira.


Vem um CORREGEDOR carregado de feitos e chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:

CORREGEDOR: Ó da barca!
DIABO: Que quereis?
CORREGEDOR: Está aqui o senhor juiz.
DIABO: Oh, amador de perdiz,
Que gentil carga trazeis!
CORREGEDOR: No meu ar conhecereis
Que não é ela do meu jeito.
DIABO: Como vai lá o direito?
CORREGEDOR: Nestes feitos o vereis.

DIABO: Ora, pois, entrai. Veremos
Que diz aí nesse papel...
CORREGEDOR: E onde vai o batel?
DIABO: No Inferno vos poremos.
CORREGEDOR: Como?! Á terra dos demos
Há de ir um corregedor?!
DIABO: Santo descorregedor,
Embarcai, e remaremos!
Ora entrai, pois que viestes!

CORREGEDOR: Não é de regulae júris, não!
Ita, ita! Daí cá a mão!
Remareis um remo destes.
Fazei conta que nascestes
Para nosso companheiro.
- Que fazes tu, barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes!

CORREGEDOR: Oh! Renego da viagem
E de quem me há de levar!
Há aqui meirinho do mar?
DIABO: Não há cá tal costumagem.
CORREGEDOR: Não entendo esta barcagem,
Nem hoc non potest esse.

DIABO: Se ora vos parecesse
Que não sei mais que linguagem...

Entrai, entrai, corregedor!
CORREGEDOR: Oh! Videtis qui petatis!
Super jure magestatis
Tem vosso mando vigor?
DIABO: Quando éreis ouvidor
Nonne accepistis rapina?
Pois ireis pela bolina
Onde nossa mercê for...

Oh! Que isca esse papel
Para um fogo que eu sei!
CORREGEDOR: Domine, memento mei!
DIABO: Non es tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel
Quia judicastis malitia.
CORREGEDOR: Semper ego justitia
Fecit, e bem por nível!

DIABO: E as peitas dos judeus
Que vossa mulher levava?
CORREGEDOR: Isso eu não o tomava,
Eram lá percalços seus.
Non sunt peccatus meus,
Peccavit uxore mea.
DIABO: Et vobis quoque cum ea,
Não temuistis Deus?

A largo modo adquiristis
Sanguinis laboratorum,
Ignorantes peccatorum,
Ut quid eos non audistis?
CORREGEDOR: Vós, arrais, nonne legistis
Que o dar quebra os penedos?
Os direitos estão quedos,
Sed aliquid tradidistis...

DIABO: Ora entrai nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães,
E vereis os escrivães
Como estão tão prosperados.
CORREGEDOR: E na terra dos danados
Estão os evangelistas?
DIABO: Os mestres das burlas vistas
Lá estão bem fraguados.

O CORREGEDOR é o antigo magistrado cujas atribuições eram análogas às dos atuais juízes de direito.
O CORREGEDOR simboliza a injustiça na peça de Gil Vicente. Ele carrega uma vara na mão, materialização dos seus pecados.
Era costume que os juízes levassem, no julgamento para ouvir testemunhas e réus, uma vara de marmelo. Após o veredicto, castigava ali mesmo o réu. Batendo no condenado com a vara, antes de prendê-lo.
Por isso, hoje, a vara, que era símbolo de poder, justiça e distribuição de castigo, passou a denominar as seções dos juizados, como: Vara da Família, Vara Civil etc.


Estando o CORREGEDOR nesta prática com o ARRAIS infernal, chegou um PROCURADOR, carregado de livros, e diz o CORREGEDOR ao PROCURADOR:

CORREGEDOR: Ó senhor procurador!
PROCURADOR: Beijo-vo-las mãos, juiz!
Que diz esse Arrais? Que diz?
DIABO: Que sereis bom remador.
Entrai, bacharel doutor,
E ireis dando na bomba.
PROCURADOR: E este barqueiro zomba...
Jogatais de zombador?

Essa gente que aí está,
Para onde a levais?
DIABO: Para as penas infernais.
PROCURADOR: Dix! Não vou eu para lá!
Outro navio está cá,
Muito melhor assombrado.
DIABO: Ora estás bem aviado!
Entra, muitieramá!

CORREGEDOR: Confessaste-vos, doutor?
PROCURADOR: Bacharel sou...Dou-me ao Demo!
Não cuidei que era extremo,
Nem de morte minha dor.
E vós, senhor Corregedor?
CORREGEDOR: Eu mui bem me confessei,
Mas tudo quanto roubei
Encobri ao confessor...

Porque, se o não tornais,
Não vos querem absolver,
E é mui mal de volver
Depois que o apanhais.
DIABO: Pois por que não embarcais?
PROCURADOR: Quia esperamus in Deo.
DIABO: Imbarquemini in barco meo...
Para que esperatis mais?

Vão-se ambos ao batel da Glória e, chegando, diz o CORREGEDOR ao ANJO:

CORREGEDOR: Ó Arrais dos gloriosos,
Passai-nos neste batel!
ANJO: Oh pragas para o papel,
Para as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
Sendo filhos da ciência!
CORREGEDOR: Oh! Habeatis clemência
E passai-nos como vossos!

PARVO: Ó homens dos breviários,
Rapinastis coelhorum
Et pernis perdiguitorum
E mijais nos campanários!
CORREGEDOR: Oh! Não nos sejais contrários,
Pois não temos outra ponte!
PARVO: Beleguinis ubi sunt?
Ego latinus macarios.

ANJO: A justiça divinal
Vos manda vir carregados
Porque vades embarcados
Nesse batel infernal.
CORREGEDOR: Oh! Não praza a São Marçal
Co’a ribeira, nem co’o rio!
Cuidam lá que é desvario
Haver cá tamanho mal.

CORREGEDOR: Venha a negra prancha cá!
Vamos ver este segredo.
PROCURADOR: Diz um texto do Degredo...
DIABO: Entrai, que cá se dirá!


O CORREGEDOR e o PROCURADOR são acusados de corruptos, burocratas e não respeitadores das leis. Além do uso do poder em benefício próprio.
O PARVO ajuda o ANJO a condená-los.


No batel dos condenados, diz o CORREGEDOR a BRÍSIDA VAZ:

Esteis vós em hora má,
Senhora Brísida Vaz!
BRÍSIDA VAZ: Agora já estou em paz,
Que já me deixáveis lá.

Cada hora encoroçada
- justiça que manda fazer...
CORREGEDOR: E vós...tornar a tecer
E urdir outra meada
BRÍSIDA VAZ: Dizede juiz de alçada
Vem lá Pero de Lisboa?
Leva-lo-emos à toa
E irá desta barcada

E vem um homem que morreu ENFORCADO:

DIABO: Venhais embora, Enforcado,
Que diz lá Garcia Moniz
ENFORCADO: Eu vos direi o que ele diz
Que fui bem-aventurado
Que, pelos furtos que eu fiz,
Sou santo canonizado
Pois morri dependurado
Como o tordo na boiz

DIABO: Entra cá, governarás
Até as portas do Inferno
ENFORCADO: Não é essa a nau que eu governo
DIABO: Entra que ainda caberás
ENFORCADO: Pesar de São Barrabás!
Se Garcia Moniz diz
Que os que morrem como eu fiz
São livres de Satanás

E disse que Deus prouvera
Que fora ele o enforcado
E que fosse Deus louvado
Que em boa hora eu nascera,
E que o Senhor me escolhera,
E por meu bem vi beleguins
E com isto mil latins
Como se eu latim soubera.

E no passo derradeiro
Me disse nos meus ouvidos
Que o lugar dos escolhidos
Era a forca e o Limoeiro
Nem guardião de mosteiro
Não tinha tão santa gente
Como Afonso Valente
Que agora é carcereiro

DIABO: Dava-te consolação
Isso, ou algum esforço?
ENFORCADO: Com o baraço no pescoço
Mui mal presta a pregação...
Ele leva a devoção,
Que há de tornar a jantar...
Mas quem há de estar no ar
Aborrece-lhe o sermão.

DIABO: Entra, entra no batel,
Que para o Inferno hás de ir.
ENFORCADO: E Moniz há de mentir?
Disse-me: “Com São Miguel
Irás comer pão e mel
Tanto que fosse enforcado”.
Ora, já passei meu fado,
E já é feito o burel

Agora não sei que é isso:
Não me falou em ribeira,
Nem barqueiro, nem barqueira,
Senão – logo ao Paraíso.
E, segundo o seu juízo
Que era santo o meu laço;
Porém não sei que aqui faço,
Ora se era mentira isso.

DIABO: Falou-te no Purgatório
ENFORCADO: Disse-me que era o Limoeiro
E reza para isso o salteiro
E o pregão vitatório;
E que era muito notório
Que aqueles que eram açoitados
Valiam horas dos finados
E missa de São Gregório.

DIABO: Ora entra, pois hás de entrar,
Não esperes por teu pai...
ENFORCADO: Entremos, pois que assim vai...
Este foi bom embarcar!
- Eia, todos apear,
que está em seco o batel!
Vós doutor, bota batel;
Fidalgo, saltai ao mar.

O ENFORCADO, Pero de Lisboa, diz que Garcia Moniz lhe garantira o Céu, pois era honroso morrer por furtos. Assim, o ladrão tolo ou o “bom ladrão” roubava sem vantagens e era manipulado pelos mais espertos.



Vêm quatro fidalgos, CAVALEIROS da ordem de Cristo que morreram nas partes da África. Vêm cantando a letra que se segue:

Albrecht Dürer O cavaleiro, a morte e o diabo, 1513, gravura em metal

À barca, à barca segura,
Guardar da barca perdida:
À barca, à barca da vida!

Senhores, que trabalhais
Pela vida transitória
Memórias, por Deus, memória
Deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais!
Porém na vida perdida
Se perde a barca da vida.

Vigiai-nos, pecadores,
Que depois da sepultura
Neste rio está a ventura
De prazeres ou de dores!

À barca, à barca segura,
Guardar da barca perdida:
À barca, à barca da vida!

Cantando, passam por diante da proa do batel dos danados, com suas espadas e escudos, disse ARRAIS da perdição dessa maneira:

DIABO: Cavaleiros, vós passais
E não perguntais onde is?

PRIMEIRO
CAVALEIRO: Vós, Satanás, presumis?
Atentai com que falais!

SEGUNDO
CAVALEIRO: E vós, que nos demandais?
Sequer conheceis-nos bem:
Morremos nas partes de além,
E não queirais saber mais.

DIABO: Entra cá! Que coisa é essa?
Eu não posso entender isto?

PRIMEIRO
CAVALEIRO: Quem morre por Jesus Cristo
Não vai em tal barca como essa!

E prosseguiram, cantando, direto à barca da Glória:

ANJO: Ó cavaleiros de Deus,
A vós estou esperando;
Que morrestes pelejando
Por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo o mal,
Santos por certo sem falha:
Que quem morre em tal batalha
Merece paz eternal.

E assim embarcam.

OS CAVALEIROS chegam cantando e trazem uma cruz. Embora, morreram lutando contra os mouros no norte da África, lutavam pela fé católica.



VII - TEMÁTICA:

HIERONYMUS BOSCH, O último Julgamento (Last Judgement)


. Alegoria do Juízo Final;
. Auto de moralidade/
. O Diabo e o Anjo acusam, mas só o Anjo pode absolver;
. Os personagens são tipos sociais: nobreza/clero/povo;
. Todos trazem de sua vida, os sinais da própria culpa. Apenas o Parvo e os Quatro Cavaleiros nada têm consigo: os pobres de espírito;
. A carga que cada personagem traz é a materialização dos seus pecados em vida;
. Além da oposição conceitual Bem versus Mal; Céu versus Inferno; temos o Diabo-alegre, simpático e irônico que domina a peça e o Anjo, sério e calado.


. Surgem ao longo do Auto três tipos de cômico: o de carácter, o de situação e o de linguagem. O cômico de carácter é aquele que é demonstrado pela personalidade da personagem, de que é exemplo o Parvo, que devido à sua pobreza de espírito não mede as suas palavras, não podendo ser responsabilizado pelos seus erros.

O cômico de situação é o criado à volta de certa situação, de que é bom exemplo a cena do Fidalgo, em que este é gozado pelo Diabo, e o seu orgulho é pisado. Por fim, o cômico de linguagem é aquele que é proferido por certa personagem, de que são bons exemplos as falas do Diabo.

Sem fazer distinção entre classes sociais, coloca o autor em cena os erros e vaidades de ricos e pobres, nobres e plebeus; censura a hipocrisia dos frades que não fazem o que pregam; denuncia os exploradores do povo, sejam eles juízes ou sapateiros; desnuda a imoralidade das alcoviteiras e satiriza os velhos sensuais; ridiculariza os supersticiosos e os charlatães. No conjunto, seu teatro apresenta um vasto painel crítico da sociedade do fim da Idade Média portuguesa. Tentando alcançar a consciência de cada homem, Gil Vicente deixa explícito em suas peças que seu objetivo não é apenas divertir, mas sim destacar os vícios de uma sociedade cada vez mais materialista e corrupta para reconduzi-la ao caminho do Bem.

Essa posição crítica é, no fundo, uma tentativa de volta ao passado. Contemporâneo das modificações operadas na sociedade portuguesa em função do desenvolvimento comercial gerado pelas conquistas ultramarinas, o espírito medieval de Gil Vicente não encontra lugar na nova ordem que se vai construindo. Daí seu ataque ferino a todas as classes sociais, que são chamadas a uma reconsideração de atitudes e valores.

. Embora vivendo em pleno Renascimento, para Gil Vicente o homem não era a medida de todas as coisas. A concepção teocêntrica da vida e a fidelidade aos valores espirituais ainda norteiam sua visão crítica. Como bem resumir a estudiosa Carolina Michaëlis, "além de poeta, Gil Vicente era pensador, e era cristão de fé medieval. Colocado nos umbrais do tempo moderno, emancipado, e só de leve atingido pelo bafo humanista do Renascimento com seus gozos intelectuais e aristocráticos, ele tinha sempre em mente o mundo do além; preocupava-se com a salvação da alma e o bom emprego de cada dia do capítulo da vida que passamos neste mundo terrestre. Tinha simpatia pelos humildes, ingênuos e perseguidos; antipatia pelos prevaricadores e devassos."


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