segunda-feira, 19 de setembro de 2011

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, Machado de Assis

 

Volume dedicado pelo próprio autor à Fundação Biblioteca Nacional


De acordo com Lúcia Miguel Pereira:

"Aqui, ousadamente, varriam-se de um golpe o sentimentalismo, o moralismo superficial, a fictícia unidade da pessoa humana, as frases piegas, o receio de chocar preconceitos, a concepção do predomínio do amor sobre todas as outras paixões; afirmava-se a possibilidade de construir um grande livro sem recorrer à natureza, desdenhou-se a cor local, colocou-se o autor pela primeira vez dentro das personagens. [...] A independência literária, que tanto se buscara, só com este livro foi selada. Independência que não significa, nem poderia significar, auto-suficiência, e sim o estado de maturidade intelectual e social que permite a liberdade de concepção e expressão. Criando personagens e ambientes brasileiros, bem brasileiros. Machado não se julgou obrigado a fazê-los pitorescamente típicos, porque a consciência da nacionalidade, já sendo nele total, não carecia de elementos decorativos. [...] e por isso pode entre nós ser universal sem deixar de ser brasileiro."

I – INTRODUÇÃO:

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” é um romance escrito a princípio “aos pedaços”, como escreve o próprio Machado de Assis, desenvolvido em folhetim, de março a dezembro de 1880, na Revista Brasileira, para, no ano seguinte, ser publicado como livro, pela então Tipografia Nacional.


De acordo com o próprio Machado, à época da 4ª edição do livro, o volume publicado não recebeu grandes modificações ou retificações. Os fragmentos publicados na Revista Brasileira foram corrigidos em vários lugares pelo autor. Quando teve que o rever para a terceira edição, "emendei alguma coisa e suprimi duas ou três dúzias de linhas. Assim composto, sai novamente à luz esta obra que alguma benevolência parece ter encontrado no público", escreveu ele.

As modificações mais significativas que ocorreram da passagem de folhetim para livro publicado tenham sido somente a introdução de um preâmbulo, assinado por Brás Cubas e denominado "Ao Leitor", e substituição de uma epígrafe retirada de uma comédia de Shakespeare pela dedicatória ao “primeiro verme que roeu as frias carnes do meu cadáver”. Também acredita-se que o principal trabalho de revisão de Machado de Assis foi focar-se no início e no final do livro, as duas partes onde notam-se "recursos criativos destinados a abalar várias das convenções vigentes na prosa de ficção da época."

O primeiro país estrangeiro a publicá-lo foi a França, em 1911, traduzido por Adrien Delpec, por conta do contrato de Machado com o editor Baptiste Louis Garnier, dono da Livraria Garnier, que publicava seus livros tanto no Rio de Janeiro quanto em Paris.

A obra já teve três versões cinematográficas. A primeira, rodada em modo completamente experimental, dirigida por Fernando Cony Campos em 1967, chamava-se “Viagem ao Fim do Mundo”. A segunda, em 1985, já apresenta um caráter estético mais ousado e foi filmada por Julio Bressane, com Luiz Fernando Guimarães no papel de Brás Cubas. E em 2001, surgiu uma nova produção, embora tivesse sido filmada nos anos 90: essa terceira versão, “Memórias Póstumas”, foi mais fiel à obra, tendo sido dirigida por André Klotzel, com Reginaldo Faria atuando como Brás Cubas após os 60 anos até ser defunto e Petrônio Gontijo sendo Brás Cubas na sua juventude.

O livro também recebeu uma versão em paródia, “Memórias Desmortas de Brás Cubas”, de Pedro Vieira, no qual o emplastro transforma Brás Cubas em um zumbi.
Em agosto de 2010, para integrar a série Grandes Clássicos em Graphic Novel da Editora Desiderata, do grupo Ediouro, “Memórias Póstumas” foi adaptada pelo desenhista João Batista Melado e o roteirista Wellington Srbek para o formato de HQ, cujo prefácio foi assinado por Moacyr Scliar.

II – ESTILO MACHADIANO:

“A revolução dessa obra, que parece cavar um fosso entre dois mundos, foi uma revolução ideológica e formal: aprofundando o desprezo às idealizações românticas e ferindo no cerne o mito do narrador onisciente, que tudo vê e tudo julga, deixou emergir a consciência nua do indivíduo, fraco e incoerente. O que restou foram as memórias de um homem igual a tantos outros, o cauto e desfrutador Brás Cubas."
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira,1972.

O livro marca um tom cáustico e novo estilo na obra de Machado de Assis, bem como audácia e inovação temática no cenário literário nacional, que o fez receber, à época, resenhas estranhadas. Confessando adotar a "forma livre" de Laurence Sterne em seu “Tristram Shandy” (1759-67), ou de Xavier de Maistre, o autor, com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, rompe com a narração linear e objetivista de autores proeminentes da época como Flaubert e Zola para retratar o Rio de Janeiro e sua época em geral com pessimismo, humor reflexivo, ironia e indiferença, inaugurando o que a história literária passou a consignar como fase realista da ficção machadiana, e dando início ao período realista da Literatura Brasileira.

O estilo de Machado de Assis assume uma originalidade despreocupada com as modas literárias dominantes de seu tempo. Mesmo suas obras iniciais que eram pertencentes ao Romantismo (ou ao convencionalismo), possuem uma ainda tímida análise psicológica das personagens e do homem diante da sociedade, que ele virá mais amplamente desenvolver em suas obras do Realismo. Os acadêmicos notam cinco fundamentais enquadramentos em seus textos:

• "elementos clássicos" (equilíbrio, concisão, contenção lírica e expressional);
• "resíduos românticos" (narrativas convencionais ao enredo: paixões e amores de Brás Cubas, ainda que o sonho de relações e casamentos perfeitos e a tensão bem x mal, herói x vilão não exista e as personagens ajam calculadamente por interesse na obtenção de "status", na ascensão social através do casamento);
• "aproximações realistas" (atitude crítica, objetividade, temas contemporâneos);
• "procedimentos impressionistas" (ruptura com a narrativa linear e recriação do passado através da memória);
• "antecipações modernas" (a estrutura fragmentária não linear; o gosto pelo elíptico e a postura metalinguística);
• “o realismo mágico ou narrativa fantástica” (a fantasia encontrada em duas situações: Brás Cubas, mesmo morto e enterrado, ainda assim escreve sua autobiografia e, no Capítulo VII, tem um delírio em que viaja montado num hipopótamo e encontra-se com Pandora, que é interpretado como uma forma de mostrar que o ser humano nada mais é do que um verme diante da Natureza).
• Ao contrário dos realistas, que eram muito dependentes de um certo esquematismo determinista Machado não procura causas muito explícitas ou claras para a explicação das personagens e situações.
• A frase machadiana é simples, sem enfeites. Os períodos em geral são curtos, as palavras muito bem escolhidas e não há vocabulário difícil, embora hoje certas palavras caíram em desuso. Mas com esses recursos limitados Machado consegue um estilo de extraordinária expressividade, com um fraseado de agilidade incomparável. A linguagem machadiana faz referências constantes aos estilos de outros grandes autores do Ocidente. Na maioria dos casos, essas referências são implícitas, só podem ser percebidas por leitores familiarizados com as grandes obras da literatura. Esse é um dos motivos de se poder dizer que o estilo de Machado é um estilo "culto" (pois ele faz uso da cultura e sua compreensão aprofundada exige cultura da parte do leitor).
• A descrição dos objetos se limita ao que neles é funcional, ou seja, àquilo que tenha que ver com a história que está sendo contada. O espaço é singelo, reduzido, e as coisas descritas parecem participar intimamente do espírito da narrativa.
• Uma das maiores características da prosa de Machado de Assis é a forma contraditória de apreensão do mundo. Machado em geral apanha o fato em suas versões antagônicas, e isso lhe dá um caráter dilemático. É também uma forma superior e mais completa de ver as coisas. Machado tem os olhos voltados para as contradições do mundo.
• O estilo machadiano focaliza as personagens de fora para dentro, vai descascando as pessoas, aparência atrás de aparência. Por isso, Machado é considerado grande "analista da alma humana". Sua atenção desvia-se comumente do coletivo para ir à mente e à alma do ser humano — fator denominado "microrrealismo".
• Sua mensagem artística se dá por meio de uma interrupção na narrativa para dialogar com o escritor sobre a própria escritura do romance, ou sobre o caráter de determinado personagem ou sobre qualquer outro tema universal, numa organização metalinguística que constituía seu principal interesse como autor.
• Machado de Assis pratica a interpolação de episódios, recordações, ou reflexões que se afastam da linha central da narrativa. Essas "intromissões" de elementos que aparentemente se desviam do tema central do livro correspondem a procedimentos chamados digressões. O importante não é o que narrar, mas narrar como se narra, levando à auto-reflexão crítica, como pode ser observado em: “(...) Tu tens pressa de envelhecer e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem.”
• Uso de arquétipo. Termo usado por C.J. Jung para se referir aos modelos inatos presentes no inconsciente coletivo que servem de base para o desenvolvimento da psique humana.

Estes modelos nascem da constante repetição de certa experiência, durante muitas gerações, portanto, os arquétipos não se desenvolveriam individualmente, mas seriam herdados, podendo se manifestar de maneira diferente de uma geração para outra. Os arquétipos funcionariam como “imagens primordiais”, símbolos universais, presentes em todas as culturas, que tendem a produzir, em cada geração, a repetição e a elaboração dessas mesmas experiências. Nas obras machadianas, personagens comumente são baseados em arquétipos, na medida em que podem ser interpretados como símbolos que representam uma ideia universal do homem. Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, surge Pandora, a primeira mulher mandada à Terra para vingar-se dos homens com sua famosa caixa, que dialoga com o narrador-personagem Brás Cubas e diz que ele pode chamá-la também de Natureza.

• Machado de Assis, enfim, estava acima das escolas. Sempre irônico e sem deixar passar nada, faz comentários críticos sobre essa necessidade de enquadramento em estilos de época, na própria obra. Vale ressaltar que esses comentários são sutis, quase que despercebidos, pois são feitos no meio da trama, como pode ser observado no seguinte fragmento do capítulo XIV, das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que Brás Cubas narra o seu primeiro beijo, criticando o Romantismo e o Realismo: “(...) Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes e, por compaixão, o transportou para os seus livros.”

• Logo ao abrir o livro, o leitor se depara com uma página reservada especialmente a ele, de nome AO LEITOR. Nessa página, Machado se apropria do próprio personagem principal – Brás Cubas – para dar a sua palavra inicial à crítica literária. Machado já previa a severa tentativa que a crítica teria ao tentar estabelecer o gênero do livro, se era romance ou não era.
• “(...) Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angarias as simpatias da opinião (...).”

• Acontece que há uma ruptura com todos os gêneros tradicionais, como busca da criação do próprio gênero – gênero sui generis - comprovando mais uma vez a intenção proposital do autor de não seguir o cânon. Segundo ele, a obra de arte deveria seguir as suas próprias regras, mostrando que o escritor é um ser autônomo. Ele mostra sua irreverência, não querendo saber se o livro vai ter menos de cinco leitores, se vão falar da forma de sua narrativa, se vão especular sobre seu gênero, e muito menos se vão gostar do livro:
• “(...) A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote e, adeus.”

III – FOCO NARRATIVO:

O narrador machadiano representa-se dramaticamente revestido de múltiplas máscaras, simbolizando a manifestação do que é simultaneamente presente e ausente, apresentando as unidades duais que permeiam o drama universal. Nas “Memórias Póstumas”, a morte acossa a vida durante toda a narrativa. O próprio escritor surge no ato da morte: se Brás Cubas não tivesse morrido, o "defunto autor" não existiria e, consequentemente, não haveria estas “Memórias”.

O próprio título do livro já gera uma duplicidade entre a vida e a morte. Só quem é vivo é que possui memórias, mas aquilo que é póstumo pertence à morte. O que está entre essa interação é o verme, representado pela passagem do vivo para o morto, e a quem Brás Cubas dedica este livro: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico, como saudosa lembrança, estas Memórias Póstumas”.

Machado de Assis escolheu a situação fantástica e autobiográfica de Brás Cubas, um narrador-personagem (1º pessoa) que, depois de morto, conta sua vida e assume uma posição transtemporal, de quem vê a própria existência já de fora dela, “desse outro lado do mistério”, de modo onisciente, descontínuo e sem a pressa dos vivos.

O narrador procura mais "parecer" do que "ser", isto é, dá-nos a impressão que se trata de um relato caracterizado pela isenção, pela imparciabilidade de que já não tem necessidade de mentir, pois deixou o mundo e todas as suas ilusões. Essa é uma das famosas armadilhas machadeanas, pois na verdade, Brás mente, ilude e distorce os fatos, escondendo suas misérias para que sejam vistas como superioridades, exteriorizando uma visão cínica, irônica e desencantada de si mesmo e dos outros.

Pode, ainda, atuar no duplo domínio do vivo e do morto, vendo a morte do ponto de vista da vida, e a vida do ponto de vista da morte; e transita entre o entrar e sair da pele do personagem, podendo falar do ponto de vista do ator e do espectador.

Assim, o aspecto fundamental na análise da narrativa é que a própria possui uma perspectiva dual, através de dois "eus", que são um e o mesmo: o eu-narrante (narrador) e o eu-narrado (protagonista) e que, por sua vez, são os desdobramentos do próprio defunto autor.

O narrador é o espectador crítico, ironicamente distanciado dos eventos; enquanto o protagonista é o ator que se deixa levar emocionalmente pelos acontecimentos narrados. Isso mostra a utilização simultânea dos pontos-de-vista do narrador, que é espectador e eu-narrante, constitui o eu de agora, representado pela consciência; e o do protagonista, que é ator e eu-narrado, constitui o eu de outrora, representado pela experiência. Assim, enquanto o eu de outrora admite um mundo maniqueísta, o eu de agora é regido pelo princípio geral da reversibilidade dos contrários.

O narrador tem o privilégio de interromper o ritmo das ações para comentar, generalizar, contar algo que ele tenha se lembrado, etc. Assim, ele pode lançar a história para frente, para trás, como quiser, fazendo um movimento progri-regri-digressivo, criando dificuldade aos leitores que tem pressa de chegar ao final.

IV – TEMPO:

A obra é apoiada em dois tempos. Um é o tempo psicológico, do autor além-túmulo, que, desse modo, pode contar sua vida de maneira arbitrária, com digressões e manipulando os fatos à revelia, sem seguir uma ordem temporal linear. A morte, por exemplo, é contada antes do nascimento e dos fatos da vida.

Há que se distinguir, além das incursões no tempo da memória, o tempo da escrita, o tempo da enunciação. Se o tempo dos vivos, na narrativa, transcorre desordenadamente, sob o fluxo da memória do narrador, o tempo da escrita denota intransitoriedade, pois, apesar de estar marcado pela voz do autor das memórias, está perdido no infinito, uma vez que a morte não envelhece, não sofre as oscilações temporais.

No tempo cronológico, os acontecimentos obedecem a uma ordem lógica: infância, adolescência, ida para Coimbra, volta ao Brasil e morte. A estranheza da obra começa pelo título, que sugere as memórias narradas por um defunto.

“Essa recusa de usar a linha reta se dá porque ela é sinônima de tédio, monotonia, e falta de imaginação. É a adoração de leitores superficiais e preguiçosos, que querem chegar logo ao final da história para saber o que acontece, ao invés de repararem as minúcias da obra, dissecando-a. Logo, nessa obra há a preferência pelo círculo, pela diagonal, pela espiral, mas nunca pela linha reta. O narrador pode até perder o fio da meada: (...) Pobre Destino! Onde andarás agora, grande procurador dos negócios humanos? Talvez estejas a criar pele nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e não é impossível que...Já me não lembra onde estava....Ah! nas estradas escusas” (cap. LVII).

Outro tempo é o tom de desdém, de ironia, de sarcasmo, de melancolia, de humor, de morbidez que está na fala desse que se conta. É o tempo que se reconhece pela linguagem, representação que marca a trajetória de Brás nessa história que quer desdenhar dos vivos e dos tempos amargos de uma sociedade, cuja marca oscila em vantagens sociais, figuração política, arbítrio escravista e clientelista, truncamento de direitos individuais, tudo isso em benefício pessoal instalado no processo social.

V – ESTRUTURA DA OBRA:

A estrutura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” tem uma lógica narrativa surpreendente e inovadora. A sequência do livro não é determinada pela cronologia dos fatos, mas pelo encadeamento das reflexões do personagem. É uma narrativa dialogicamente estruturada, em que o leitor é fundamental, pois há um intenso processo de comunicação com ele, como se ele desempenhasse um papel no texto. Assim, o autor compartilha com o leitor a tarefa de narrar. Vejamos o capítulo IX, que trata da Transição, em que Machado chama de maneira nada modesta a atenção do leitor para a maneira coerente de sua narrativa:

“E vejam com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método.”

Organizados em blocos curtos, os 160 capítulos de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” fluem segundo o ritmo do pensamento do narrador. A aparente falta de coerência da narrativa, permeada por longas digressões, dissimula uma forte coerência interna, oferecendo ao leitor todas as informações para conhecer a visão de mundo de um homem que passou pela vida sem realização nenhuma, apenas ao sabor de seus desejos.

Logo nas primeiras páginas, o escritor brinca com a expectativa do leitor de chegar logo às ações do romance. Machado de Assis, por intermédio do seu narrador, se dirige diretamente ao leitor, metalinguisticamente, para comentar o livro. Diz Brás Cubas:

“Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem”.

Nos nove primeiros capítulos, Brás Cubas descreve a sua morte (cap.1); o emplasto (uma ideia fixa que teve, ao final da vida, de inventar um “medicamento anti-hipocondríaco”, isto é, que curasse a mania de doença das pessoas); sua origem (cap.3); a ideia fixa do emplasto (cap.4); sua doença (cap.5); a visita de Virgília (cap.6); o delírio (pesadelo que teve antes de morrer em que lhe aparece Natureza ou Pandora, dona dos bens e dos males humanos, dentre os quais, o maior de todos é a esperança, (cap.7); razão contra a sandice (em que a razão expulsa a sandice, cap.8) e transição (cap.9), em que o narrador faz uma reflexão metalinguística e retoma o fio narrativo, cronológico de sua vida, a partir de seu nascimento em 1805). A partir do cap.10, a vida de Brás Cubas é contada de forma sucessiva: nascimento, batizado, infância, juventude.

VI – PERSONAGENS:

As personagens que circulam pelo romance são o suporte necessário para que Brás Cubas tenha realidade. Se está clara a intenção de sintetizar um tipo representativo da classe dominante brasileira, as personagens que vão dar vida ao protagonista resumem, de certa forma, a sociedade nacional: os ricos e os pobres. As ligações sociais que especificam a figura de Brás surgem ao acaso dos episódios.

Visto assim, a enredo procura ancorar-se na história nacional. Alguns episódios políticos emergem da narrativa como a Independência, a Abdicação de D. Pedro I, a Maioridade, a Lei do Ventre Livre, a Abolição e a República e se mesclam às peripécias ficcionais, não como simples localizações no tempo, mas como composição de uma alegoria nacional. É como se Brás fosse o Brasil e a cronologia das “Memórias” um emaranhado de práticas sociais que não reconhecem a norma e os costumes.

BRÁS CUBAS: em primeiro plano, é o defunto-autor (diferente de autor-defunto) que se propõe contar sua vida sob a ótica do além. Em segundo plano, Brás é a personagem protagonista do romance e se apresenta em vários perfis, o que confere verossimilhança ao moço de boa família enquanto tipo representativo de uma sociedade marcadamente burguesa.

Assim, no tocante aos escravos de que judia, Brás aparece como menino diabo. Uma agregada velha, que não tem onde cair morta, encontrará nele o protetor, cheio de pensamentos escarninhos. A moça pobre, filha ilegítima, corresponde o rapaz bem nascido e aproveitador. Um cunhado negocista, ex-traficante de escravos, tem nele o parente compreensivo, capaz de justificá-lo e até de intermediar fornecimentos à Marinha. Para a menina casadoura, cujo pai é uma influência política, Brás representa numa só pessoa o noivo escolhido pela família e o futuro deputado.

VIRGÍLIA: aparece pela primeira vez nos instantes finais de Brás, já uma senhora em decadência. Caracteriza-se pela duplicidade: a Virgília exuberante da juventude e a Virgília corroída pela velhice. Personagem movida pelo desejo de ascensão social, inescrupulosa, oscilante, deixa-se envolver pela ambivalência das convenções. Pertence à galeria de criaturas fantasiosas e inconsequentes que perdem a distinção entre o bem e o mal.
É fria e calculista, sem conflitos de consciência: convive tranquilamente com o marido e o amante. Viveu impune toda uma situação de adultério e pecado, mantendo a respeitável a honra de dama da sociedade fluminense.

MARCELA: foi o primeiro amor do Brás jovem. Traiçoeira e vulgar, vive um amor ardente e interesseiro com o rapaz. O destino da “dama espanhola” é flagrado em um hospital, onde morre roída de bexigas.

DONA PLÁCIDA: alcoviteira do casal de amantes na casinha da Gamboa, ofício que a princípio rejeita, mas ao qual acaba por habituar-se. Tudo por cinco contos de réis, aqueles que Brás tinha achado na praia e destinado a uma doação caridosa. Passou a vida trabalhando para cuidar da família, costurando e cosendo, até acabar na miséria, que, segundo o narrador, era o seu destino.

DONA EUSÉBIA E VILAÇA: casal flagrado pelo menino Brás atrás da moita. Mais tarde, Brás encontra Dona Eusébia na Tijuca, e fica conhecendo a filha bastarda do casal, Eugênia.

EUGÊNIA: a “flor da moita”. Jovem casadoura, coxa de nascença, com quem Brás teve um breve romance. Possuía alguns predicados importantes: bonita, altiva, orgulhosa de sua dignidade, mas não suficientes para suplantar suas deficiências (pobre, bastarda e coxa) aos olhos de Brás bem nascido e aproveitador. Aparece no final da narrativa em plena miséria, sem contudo, perder o orgulho.

LOBO NEVES: marido de Virgília e amigo de Brás, de quem arrebatou a noiva e a candidatura. Desejoso de glórias e respeitador da opinião pública, passa por cima do adultério da esposa, com “a mesma ignorância de outrora”, incapaz de assumir atitudes drásticas.

SABINA: irmã de Brás. Está sempre plena de interesses: a herança do pai e o celibato do irmão.

COTRIM: cunhado de Brás.

EULÁLIA: conhecida por Nhã-Loló. É a moça que Sabina pretende ter por cunhada. Tem breve romance com Brás, interrompido pela morte precoce da moça.

QUINCAS BORBA: amigo de Brás, idealizador do Humanitismo. Aparece em três momentos no romance: o colega de Brás nas aulas do professor Ludgero Barata; o mendigo, que ao reencontrar o velho amigo lhe rouba o relógio; e o filósofo, que volta à casa de Brás recomposto da miséria e pleno da sabedoria Humanitas. Enlouquece e morre tragicamente consciente, não apenas da sua loucura, podemos dizer, mas da loucura que tudo governa.

PRUDÊNCIO: moleque da casa do menino Brás, que servia de cavalo nas brincadeiras. Mais tarde, em liberdade, aparece vergalhando outro negro, cena que deixa Brás espantado.

VII – TEMÁTICAS:

1. ESCRAVIDÃO:

Os romances machadianos tratam frequentemente da escravidão sob o ponto de vista cínico do senhor de escravos, sempre criticando-o de forma oblíqua. Sobre a escravidão, Machado de Assis já havia tido uma experiência familiar, quer por seus avós paternos terem sido escravos, quer porque lia os jornais com anúncios de escravos fugitivos. Em seu tempo, a literatura que denunciava crenças etnocêntricas que posicionavam os negros no último grau da escala social era distorcida ou tolhida, de modo que este tema encontra uma grande expressividade na obra do autor.

A começar, as “Memórias Póstumas de Brás Cubas” narra o que seria uma das páginas de ficção mais perturbadoras já escritas sobre a psicologia do escravismo: o negro liberto compra seu próprio escravo para tirar sua desforra.
Castro Alves escrevia sobre a violência explícita a que os escravos estavam expostos, enquanto Machado de Assis escrevia as violências implícitas, como a dissimulação e a falsa camaradagem na relação senhor e escravo.

2. MUNDIVIDÊNCIA TRAGICÔMICA:

Três fatos fatos fazem Brás Cubas aprender a condição da mundividência tragicômica, são eles: o delírio com o Mito de Pandora; a filosofia do Humanitismo e a Lei da Equivalência das Janelas.

2.1. O MITO DE PANDORA:
“Pandora”, por Jules Joseph Lefebvre, 1882.

Personagem mitológico, Pandora foi criada por Zeus para castigar Prometeu, deus da estirpe dos titãs, que roubara o fogo dos céus e o entregara aos mortais. A versão mais conhecida da lenda de Pandora é a relatada no século VIII a.C. pelo poeta Hesíodo, na “Teogonia”. Zeus decidiu vingar-se e ordenou a Vulcano, deus do fogo, que plasmasse com terra uma mulher de extrema beleza, à qual os deuses do Olimpo concederam presentes e qualidades excepcionais. Atena ensinou-lhe as artes femininas e Afrodite os encantos da beleza. Hermes concedeu-lhe o dom da palavra insinuante e as Graças cobriram-na de jóias raras.

Por isso foi chamada de Pandora, que em grego significa "portadora de todos os dons".
Zeus encarregou-a então de entregar a Prometeu, em grego "o previdente", uma caixa fechada, mas este resistiu aos encantos de Pandora e recusou-se a abrir o presente. Apesar das advertências de Prometeu, Epimeteu, seu irmão, ficou fascinado com a beleza de Pandora e tomou-a por esposa. Depois, pediu-lhe que abrisse a caixa, da qual escaparam todos os males e desventuras que desde então afligem os humanos. Arrependido, Epimeteu, cujo nome em grego significa "o que reflete tardiamente", tentou fechar a caixa, mas conseguiu apenas nela encerrar a esperança, que seria o consolo da humanidade.


 Zeus não perdoou Prometeu por ter escapado à armadilha e o acorrentou ao Cáucaso, para que um abutre eternamente lhe devorasse o fígado. A expressão "caixa de Pandora" passou a ser empregada como sinônimo de tudo que, sob aparência de encanto, é fonte de males e desgraças.

Pandora, ou Natureza aparece no delírio Brás Cubas, dizendo ser mãe e inimiga; aquela que dá e aquela que tira a vida, ou seja, faz da vida um flagelo e traz o rosto indiferente como o sepulcro. Brás Cubas percebe, então, que Pandora é vida e morte, e que o seu delírio, por si só, já é um movimento rumo ao caos, uma excursão às avessas. Ela ensina a Brás Cubas que a vida e a morte não se contradizem e que o mundo é um jogo de sentimentos desencontrados, como:

“(...) flagelos e delícias, desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancólica, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo (cap. VII).

2.2. O HUMANITISMO:

Humanitismo é nome da filosofia fictícia criada por Joaquim Borba dos Santos, o Quincas Borba, um dos mais célebres personagens de Machado de Assis, que é exposta fundamentalmente no romance “Quincas Borba” e de forma secundária em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.

A seguir o trecho do livro em que o mesmo explica sua filosofia ao personagem Rubião:
"- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum.

Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos que assim adquire forças para transpor a montanha e e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação.

 Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais feitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
- Mas a opinião do exterminado?
- Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias."
“Quincas Borba”, Capítulo VI

O "Humanitismo" do filósofo Quincas Borba expõe as dúvidas e perguntas do discípulo e as respostas rápidas e prontas do mestre, em oposição à maiêutica socrática. Surge pela primeira vez na prosa machadiana no Capítulo 157 de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, recebendo um adendo no Capítulo 141, para comentar uma briga de cães. A partir disso, as ideias humanitistas acompanham Brás Cubas até o final do livro. A exposição é retomada, para um novo interlocutor e de forma mais explícita, no Capítulo 6 de “Quincas Borba”. Rubião, este novo interlocutor, ao contrário de Cubas, que era adepto da filosofia e sempre procurava questioná-la, não compreendia suas concepções e considerava Borbas um doido—passando a entender a fórmula "ao vencedor, as batatas" só depois de derrotado por Sofia e Cristiano.

 
"A Origem das Espécies", 1859, de Charles Darwin: o "Humanitismo" de Machado de Assis ironiza a "lei do mais forte" de Darwin.


Para os críticos, o "Humanitismo" constitui-se da ideia "do império da lei do mais forte, do mais rico e do mais esperto". Antonio Candido escreveu que a essência do pensamento machadiano é "a transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maldições ligadas à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual." Os críticos notam que o "Humanitismo" de Machado não passa de uma sátira ao positivismo de Auguste Comte e ao cientificismo do século XIX e à teoria de Charles Darwin acerca da seleção natural. Desta forma, a teoria do "ao vencedor, as batatas" seria uma paródia da ciência da época de Machado e sua divulgação, uma forma de desnudar ironicamente o caráter desumano e anti-ético da "lei do mais forte".

A filosofia de Quincas Borba afirma que a substância da qual emanam e para qual convergem todas as coisas é Humanitas, e que a inveja não passa do "nobre sentimento" de contemplação, nos outros, das qualidades de Humanitas. O "Humanitismo", tal qual a seleção natural de Darwin, enxerga a guerra como forma da seleção dos mais aptos. Humanitas se projeta por meio de quatro fases: a estática, anterior à criação; a expansiva, início das coisas; a dispersiva, surgimento do homem, e a contrativa, absorção do homem na substância original.

A filosofia exclui o sexo e o sofrimento, considerando o Cristianismo uma "moral de fracos" (clara intertextualidade às teorias de Nietzsche), a mulher um ser inferior, e tudo no mundo como algo bom, sendo a única coisa ruim o não nascer. No Capítulo 157 de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o "Humanitismo" se proclama "a única verdade", negando a verdade essencial do Budismo, Bramanismo, Islamismo, Cristianismo e de todos os sistemas e crenças da história da humanidade.

2.3. A LEI DA EQUIVALÊNCIA DAS JANELAS:

Há, ainda, a Lei da Equivalência das Janelas, em que Brás Cubas admite que um mesmo acontecimento, pode provocar duas reações contrárias, dependendo do valor envolvido. Essa lei estabelece que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência.

Ao encontrar uma moeda, ele resolve devolvê-la ao verdadeiro dono, porém, ao encontrar um embrulho com cinco contos de réis, embolsa-o. Assim, há uma desconstrução com o discurso moralista, mais uma vez, mostrando que o ser humano é tensionado pelo impacto dúbio da consciência cindida em polêmica consigo mesma, empuxada por forças simétricas e opostas.

3. CETICISMO:

Os críticos notam que na segunda metade do século XIX os intelectuais brasileiros interessavam-se com o "surgimento de novas ideias" como o já citado positivismo de Comte e o evolucionismo social de Spencer. Ao que tudo indica, Machado não compartilhava deste interesse e escreveu seus romances com ceticismo a estas escolas filosóficas e políticas.

Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, por exemplo, um importante aspecto do pessimismo de Brás Cubas é sua visão de que os valores são arbitrários. O autor cético desafia o critério social que discrimina o que é relevante na vida e aquilo que não é (e, desta forma, o que deve ser incluído ou não em uma autobiografia).

4. IRONIA:

A ironia fundamental de todo o livro realiza-se em relação á não-compreensão da posição ambígua e contraditória do homem: a tradição dicotômica do pensamento ocidental, o puritanismo filosófico e o maniqueísmo religioso não se compatibilizam com a natureza dual do homem, desfigurando a realidade da condição humana. Logo, Machado possui uma compreensão irônica da existência, ou seja, o homem é bom e mau ao mesmo tempo, de acordo com o princípio da reversibilidade dos contrários.

Essa dualidade do ser humano, expressa ricamente através da ironia, pode ser exemplificada com as diferentes atitudes de Brás Cubas, em relação à moeda e ao embrulho de dinheiro encontrado, como já foi expresso anteriormente na lei da equivalência das janelas. A mudança na postura do personagem é evidente, mostrando que as pessoas são assim mesmo: fazem o que convém, de acordo com seus interesses pessoais, até sendo hipócritas consigo mesmas.

Essa mudança brusca de comportamento, realizada pela dualidade dos contrários, também é presente em outras personagens da obra, como, por exemplo, Virgília, que traiu o marido, mas chorou a sua morte com sinceridade; Marcela, que parecia amar Brás Cubas, mas o interesse era no dinheiro dele; Dona Plácida, que condenava Brás Cubas e Virgília por serem amantes, mas diante de cinco contos de réis, não falou mais nada; e Prudêncio, que sofreu os castigos de escravo, mas quando recebeu sua alforria, arrumou um escravo para castigar.

VIII - ANÁLISE DO ENREDO:

1. PRÓLOGO AO LEITOR:

“AO LEITOR

QUE STENDHAL confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual, ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.”

Assinado por Brás Cubas, o “Prólogo Ao Leitor” de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” apresenta as memórias de um finado, escritas “com pena da galhofa e a tinta da melancolia...”, um misto de sarcástico e de pessimismo. Assim, logo de início somos informados à maneira que irá narrar os acontecimentos sobre a sua vida:

PENA +TINTA = ESCRITA.

Dessa forma, o contexto da obra é a própria fusão de antíteses que vão caracterizar o comportamento das personagens numa busca de síntese da essência humana.
A princípio, fica estabelecido que a obra apresenta-se em duas faces: a própria história que Brás narra através de sua memória e outra, a que Brás está querendo nos contar sobre o pretexto de sua história. Além da condição de morto, esse narrador possui outra característica própria: vai interromper a ação para conversar com o leitor inúmeras vezes.

Essa interpelação é uma atitude metalinguística, uma linguagem CPM que se procura interpretar e explicar outra linguagem. O narrador, através desse recurso, vai estar sempre a induzir-nos ao ato da enunciação, momento em que discorre sobre suas reflexões acerca do agente motivador de suas memórias: a condição humana. Esse recurso distancia o narrador do que está sendo narrado e cria uma situação ideal para que o leitor perceba o jogo de ficção que se desenrola aos seus olhos.

Ao leitor foi sugerido que pulasse o capítulo, caso ele queira apenas um deleite da história.

“Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à narração.”

Outra chamada ao leitor segue adiante:

“Mas, com a breca! Quem me explicará a razão desta diferença? Um dia vimo-nos, tratamos o casamento, desfizemo-lo e separamo-nos, a frio, sem dor, porque não houvera paixão nenhuma; mordeu-me apenas algum despeito e nada mais. Correm anos, torno a vê-la, damos três ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com delírio. A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas nós éramos substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, não me tornara mais bonito nem mais elegante. Quem me explicará a razão dessa diferença?”

Não apenas a atitude metalinguística distancia o narrador de sua narrativa, essa é uma técnica comum, como o próprio Brás afirma ao trazer ao texto referências intertextuais a Sterne e Xavier de Maistre, como afirma:

“Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo.”

E nós percebemos, enquanto leitores, não apenas algumas “rabugens de pessimismo”, mas uma grande ironia, fio que tece toda a narrativa, ao considerar as gentes leitoras, “graves” ou “frívolas”, que estão a esperar sempre por um romance, por uma história.

Nesse fragmento está presente uma crítica ao leitor ou crítico cujas expectativas são sempre voltadas para o palpável que o estilo propõe, quer seja romântico, quer realista.

O espevitamento da abertura do romance deixa claro que a situação de “defunto autor”, diferente de “autor defunto”, sendo paradoxal, não pretende desmanchar a verossimilhança realista, e, sim, desrespeitá-la enquanto categoria. Não se trata, portanto, de, buscar a verdade ou coerência, mas de admirar o descaramento e a insolência com que a voz, distante e fria, trata de detalhar e descrever um contexto, com promessas de quem não quer enganar, nem ocultar nada.

A todo instante, Brás exige o tipo do gentleman moderno, para desmerecê-lo em seguida, e tornar a adotá-lo, configurando uma inconsequência que o curso do romance acaba por ter como norma. É como se a postura bem comportada fosse a credencial tanto de respeito como de escárnio, um verniz de respeitabilidade que permite ao narrador assumir seus contrastes sem prévia licença. As feições que ele veste e desveste tornam-se sempre um elemento de provocação e cabe ao leitor orientar-se como pode, tendo como única referência as palavras do autor narrador, forçando-o a estar sempre em estado de alerta, o que é próprio à grande literatura.

Ainda nesse capítulo, é narrado a visita de Virgília e seu filho Nhonhô, que aos cinco anos fora cúmplice do rompimento dos amores adúlteros de Virgília e Brás e agora, já bacharel, estava como que satisfeito diante da figura mortificada de Brás.

Em seguida, o narrador incita o leitor a se defrontar com as imagens oníricas de seu delírio, pré-morte: as relações entre “um barbeiro chinês” e um mandarim, a “Summa Theológica”, de São Tomás, e um hipopótamo que serve de guia do narrador.

O que se verá nesse delírio é uma crítica à ciência evolucionista da época, com referências, inclusive, às sensações de vida na morte. O destino da viagem a que o narrador é arrebatado pelo hipopótamo aponta para a origem dos séculos, em que Brás entrevê a redução do tempo e o desfilar da humanidade.
Ao fim da jornada, Brás depara com um vulto sem contornos definidos, Natureza ou Pandora. A ele, pede mais uns anos de vida e Natureza o leva ao cume de uma montanha para lhe mostrar a inutilidade desse desejo já que o que o espera é a “voluptuosidade do nada”.

Sob o ângulo do delírio, é possível ver a história do homem como um ininterrupto passar de “flagelos e delícias”, em que nem a ciência nem a imaginação podem atuar como determinantes. O delírio vem a ser a condensação, a busca da síntese das teorias da criação.

2. ÓBITO DO AUTOR:

“ALGUM TEMPO hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios.

Acresce que chovia - peneirava uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu á beira de minha cova: "Vós, que o conhecestes, meus senhores vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado."

A abertura desse capítulo é afrontosa, pois o impossível está dito em primeira pessoa. Essa postura diante da narrativa que se segue nos diz Brás Cubas pretende fazer um ajuste de contas com a própria existência, pois menos que deflagrar outro mundo, o narrador quer mesmo é evidenciar o nosso, numa postura de destrato e impertinência.

Em seguida, somos informados sobre o dia, local, horário, idade, estado civil e condição física do defunto-autor e no lugar de uma narração desencarnada nos vemos diante de uma personagem com contornos visíveis. Logo a seguir, a descrição se modifica em despeito, pois onze amigos é um número pequeno. O tom torna-se amargo, mas a intenção é irônica. Percebemos, dessa forma, que o defunto narrador se apresenta ora mórbido, ora indiferente, alternando o texto com um ritmo sempre inusitado. Isso reafirma a questão da dualidade que percorre toda leitura, num ritmo binário, marcado por alternativas, antíteses, paralelismos, simetrias e disparidades.
Ilustração de Brás Cubas no cemitério por Portinari, 1943.

Brás acaba morrendo de uma pneumonia, mas nos revela que a verdadeira causa de sua morte foi nada menos que uma útil ideia e se propõe a contá-la ao leitor. Por ser um defunto autor, e estar afastado da vulnerabilidade da vida, o morto se considera, também, afastado do compromisso de justificar suas atitudes e posturas. Delega essa função ao leitor e, dessa forma, transfere ao leitor a cumplicidade ideal para a realização de sua proposta literária: “Julgue-o por si mesmo.”

3. O EMPLASTO:

“Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.”

Ao estabelecer para seu cérebro a figura de um trapézio, Brás não só remete o leitor ao Positivismo, doutrina criada por Augusto Comte, mas também marca a postura de grande ironizador das correntes determinantes do comportamento da época.


Brás Cubas faz de seu trapézio o espaço para malabarismos e inventa um “emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”.


Voltando à questão da síntese (pena/tinta/escrita), podemos alegar que o emplasto de Brás se destina a ser a síntese das soluções para a cura da humanidade das dores do mundo.
Em seguida, o emplasto é apresentado sucessivamente como: ideia grandiosa e útil; ideia fixa; objeto de uma petição de privilégio dirigida ao governo, com alegação filantrópica e propósitos lucrativos.

As referências são respectivamente: o ideário liberal-burguês; a filosofia do inconsciente, em transposição cômica; o contraste entre a cura antiga e a medicina moderna; o patrocínio governamental; a finalidade cristã; a finalidade capitalista e a síntese na mania de anúncio.

“Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória.

[...] Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua genuína feição.”

A questão da glória é, portanto, uma questão relativa e, a decisão entre o cônego e o militar fica por conta do leitor.

4. A BIOGRAFIA:

Do ponto de vista da narratividade, é possível dizer que a intriga começa no capítulo 10, com o nascimento do protagonista e culmina no capítulo 160, com o balanço final de sua existência.

Embora muito solta, a forma do romance é biográfica, entremeada de incursões pela memória e alegorias aos costumes. Passam diante de nós as estações da vida de um brasileiro rico e desocupado: nascimento; o ambiente da primeira infância; estudos de Direito em Coimbra; amores de diferentes tipos; pretensões literárias, políticas, filosóficas, científicas; e por fim a morte.

5. O NASCIMENTO:

“Da árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor.” Vale aqui a referência que Brás faz à genealogia da família Cubas e em toda a ostentação e falsidade sobre a honra do nome da família.

Bem, naquele dia nasceu um Cubas, pelas mãos da parteira Pascoela que, por elogios ao novo fidalgo ou por hábito da recompensa, foi gratificada com duas meias dobras. Com ar de Bonaparte para uns e de cônego para outros, o herói seria o que Deus quisesse, na voz do pai, que via no filho o reflexo de sua inteligência e beleza.

Muitas visitas se fizeram presentes em tão solene evento. Idem para o batizado. Todos honravam o novo varão que, ao que tudo indica, resplandecia em berço de ouro.
Brás cresceu naturalmente, assim como os gatos e as magnólias, num misto de esperteza e beleza. Suas peraltices sempre atentam para a esperteza e, até, da malvadeza, visto que em idade ainda pouca já havia quebrado a cabeça de uma escrava, já preparava armadilhas para presenciar os castigos dos empregados, já se fazia senhor de escravos, mesmo que nas brincadeiras com Prudêncio.

Entre o acobertamento do pai e a fraqueza da mãe, Brás foi sendo educado, segundo ele, de forma viciosa, incompleta e negativa. Mas, na família de Brás, outros elementos exerciam suas influências sobre o garoto. Havia os tios. Um deles ligado a obscenidades, outro religioso. Havia a tia Emerenciana, a quem Brás respeitava muito, mas que durou pouco. Outros agregados, de menor importância, circularam pela vida de Brás que, contrariamente ao costume da época, tinha uma família pouco numerosa (Brás só tinha uma única irmã, Sabina).

A última reinação de que se lembra nas “Memórias” é o flagrante que deu em D. Eusébia beijando o Vilaça, em 1814, numa pequena moita da chácara.

Do moleque brejeiro, Brás passa a contar da vida escolar, da palmatória, dos ensinamentos enfadonhos, do professor Ludgero Barata e de seu colega Quincas Borba.
A referência ao professor Ludgero é muito mais para colocar em evidência o triste descaso para com a figura do professor do que enaltecer o herói que, através da memória, tenta recompor sua negligência estudantil.

Depois, recorda-se do amigo de escola, Quincas Borba. “Recordo porque ele, vai retornar à narrativa” e dele decorre a grande chave filosófica ou filosofante, de “Memórias”.
Sobre as relações familiares, retomamos o fio em Sabina, a irmã que aparece muito pouco na infância de Brás, mas que toma corpo na hora da disputa pela herança e no momento em que revela preocupação com o celibato do irmão. Lembra-se da inimizade dos dois por causa de uma prataria. E da reconciliação por uma causa muito justa, um pretenso matrimônio com Nhã-Loló.

6. A UNIVERSIDADE:

“A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, - principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz descontrolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver, - de prolongar a Universidade pela vida adiante...”

Após o seu desenlace de seus amores furtivos de adolescente, o nosso herói parte para Coimbra, onde foi impelido pelo pai e terá uma vida acadêmica medíocre, dando continuidade ao menino Brás.

7. AMORES:

A performance amorosa de Brás, uma das temáticas preciosas da obra, tem força e complexidade, ainda que sob o prisma romântico pareça lamentável. O curso biográfico do romance deixa entrever um moço bem ao estilo burguês, síntese de um tipo representativo da classe dominante brasileira, que alimenta sua vida amorosa com as mesmas bases como se entusiasma pela glória dos estudos: um ímpeto que não será levado adiante.

7.1. MARCELA:

A primeira aventura amorosa de Brás aconteceu aos dezessete anos.

“Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma...uma...não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas, vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a “linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do tempo.”

A volúvel Marcela dedicou seu amor a Brás enquanto este a alimentava com jóias e outros luxos, advindos, certamente, da generosidade do pai, mãe, e de obrigações assinadas sobre a pretensa herança.
Marcela dissimulava-se em candura ao mostrar-se ofendida com os espécimes, mas logo se recompunha, sempre com juras de amor eterno.

“Assim foi um dia, como eu lhe não pudesse dar certo colar, que ela vira num joalheiro, retorquiu-me que era um simples gracejo, que o nosso amor não precisava de tão vulgar estímulo.
- Não lhe perdôo, se você fizer de mim essa triste ideia, concluiu ameaçando-me com o dedo.
E logo, súbita como um passarinho, espalmou as mãos, cingiu-me com elas o rosto, puxou-me a si e fez um trejeito gracioso, um momo de criança. Depois, reclinada na marquesa, continuou a falar daquilo, com simplicidade e franqueza. Jamais consentiria que lhe comprassem afetos.
(...)
No dia seguinte levei-lhe o colar que havia recusado.
(...)
Marcela teve primeiro um silêncio indignado; depois fez um gesto magnífico: tentou atirar o colar à rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito que não me fizesse tal desfeita, que ficasse com a jóia. Sorriu e ficou.”

O amor de Marcela durou “quinze meses e onze contos de réis; nada menos”. O pai, ao tomar conhecimento dos onze contos, impõe a Brás a universidade.

“Vais para a Europa.”

Brás tenta persuadir Marcela a acompanhá-lo. Em vão foram os presentes e as juras de uma vida magnífica, o amor havia acabado, por força das ordens do pai, a bordo de um navio. Bem mais tarde, Brás reencontra Marcela ao acaso, ao entrar em uma relojoaria. Marcada pela bexiga e pela pobreza, Marcela desperta em Brás, mais uma vez, a lei da compensação.

“(...) Deu-me uma cadeira, e, com o balcão permeio, falou-me longamente de si, da vida que levara, das lágrimas que eu lhe fizera verter, das saudades, dos desastres, enfim das bexigas, que lhe escalavraram o rosto, e do tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a decadência. Verdade é que tinha a alma decrépita.
(...)
Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas a beleza de outro tempo valia uma terça parte dos meus sacrifícios? Era o que eu buscava saber, interrogando o rosto de Marcela. O rosto me dizia que não; ao mesmo tempo os olhos me contavam que, já outrora, como hoje, ardia neles a flama da cobiça. Os meus é que não souberam ver-lhe; eram olhos da primeira edição.”

A aventura com Marcela, que inicia sob o influxo do Romantismo, explicitamente assim afirmado pelo narrador, imediatamente se contrasta com o Realismo, de tal modo que a passagem para o capítulo seguinte representa uma intensificação no sentido da degradação capitalista dos amores entre o jovem ingênuo e a mulher experiente.

“Ao cabo, era lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar no castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros.”

E, logo no início do capítulo 15, a transformação das imagens antecipa a mudança nas relações entre os dois.

“Gastei trinta dias para ir do Rossio Grande ao coração de Marcela, não já cavalgando o corcel do cego desejo, mas o asno da paciência, a um tempo manhoso e teimoso.”

Entre o corcel e o asno, cria-se o espaço para que seja possível iniciar o capítulo 16 com a frase que representa o ápice da degradação do amor com que se tinham iniciado as relações entre Brás e Marcela.

“...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.”

O reencontro com a Marcela marcada pelas bexigas e pelo tempo deixa em Brás uma sensação de mal-estar. Na verdade, o que se apreende nesse flagrante é a transitoriedade e o definhamento das paixões, destino amargo, mas infalível.

7.2. EUGÊNIA:

O romance de Brás e Eugênia é muito breve. Acontece na Tijuca, onde Brás está em retiro após a morte da mãe. Vizinha à propriedade dos Cubas mora D. Eusébia, a quem o rapaz faz uma visita de cortesia.

“Nisto recordei-me do episódio de 1814, ela, o Vilaça, a moita, o beijo, o meu grito; e estando a recordá-lo, ouço um ranger de porta, um farfalhar de saias e esta palavra:
- Mamãe...mamãe...
(...)
Eugênia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortesia que lhe fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da mãe. A mãe arranjou-lhe uma das tranças do cabelo, cuja ponta se desmanchara.
- Ah! Travessa! Dizia. Não imagina, doutor, o que isto é...E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu um pouco; lembrou-me minha mãe, e, - direi tudo, - tive cócegas de ser pai.”

A flor da moita entra na vida de Brás sem artifícios e sem linhagem. Ela, filha natural de D. Eusébia, ele, o Vilaça, moço abastado e família que já conhecemos. As circunstâncias, os protagonistas e a barreira social criam a expectativa para um romance denso e complicado, mas o que se verá é um desfecho outro, de caráter mais para o mórbido que para o idílico.
Eugênia marca, de princípio, o abismo material que envolve o casal ao apresentar-se desvestida dos adornos costumeiros da época: broches, anéis, brincos, pulseiras. A ideia é romântica, pois despojar-se das quinquilharias pressupõe valorizar-se de essência.
Brás Cubas aprecia a dignidade da menina, superior ao nascimento irregular e à situação precária, e corre o risco de “amar deveras”.
Observe que o idílio transcorre sob o signo das borboletas. A primeira é a imaginação negligente do rapaz que anuncia:

“Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra, e ela sorria, com os olhos fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante...”

A segunda, uma borboleta grande e preta, entra na varanda e bate as asas em volta de D. Eusébia. Mãe e filha ficam assustadas, o que dá ao rapaz à oportunidade de filosofar, enquanto espanta o bicho intrometido.

“- Não tenha medo, disse eu. (...) D. Eusébia sentou-se outra vez ofegante, um pouco envergonhada; a filha, pálida de medo, dissimulava a impressão com muita força de vontade. Apertei-lhe a mão e sai a rir comigo da superstição das duas mulheres, um rir filosófico, desinteressado, superior.”

O capítulo culmina com a passagem de Eugênia em seu cavalo seguida de um pajem.
Ela cumprimenta Brás com a ponta do chicote e ele se sente lisonjeado com a ideia de que ela, mais adiante se voltaria para olhá-lo, coisa que não acontece.

Não se pode deixar de notar a decepção estampada no rosto do rapaz, mesclada a uma certa irritação, o que vai preparar o contexto em que se compreende a próxima borboleta.
Grande e preta como a outra, ela entra no quarto de Brás e o que faz recordar-se da cena na varanda de D. Eusébia: o susto das senhoras e o papel superior que tocara a ele.

Depois, pela insistência em permanecer batendo as asas, a borboleta o aborrece, pois agora representa a persistência da mocinha em sua lembrança, principalmente pelo gesto de insubordinação que aquele cumprimento com o chicote revelou. Brás sente um “repelão nos nervos” e com uma toalhada acaba de vez com a borboleta.

Entre em cena a derradeira borboleta, não mais em forma de inseto, mas de reflexão.

“Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida: não era assim impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última ideia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as providas formigas...Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.”

A cena que extingue para sempre a borboleta pode ser vista como uma alegoria do capítulo seguinte, “Coxa de Nascença”. Nele, Brás descobre a deformidade de Eugênia.

“Tratei de apagar os vestígios de meu desazo: - não me foi difícil, porque a mãe era segundo confessara, uma velha patusca, e prontamente travou de conversar comigo. Vimos toda a chácara, árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de coisas, que ela me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu, de soslaio, perscrutava os olhos de Eugênia...
Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são: vinha de uns olhos pretos e tranquilos...”

O destino da borboleta preta, mesmo se ela fosse azul, foi fatal. Se deslocarmos essa fatalidade para as relações entre Brás e Eugênia, podemos perceber nela uma grande metáfora social: o destino de Eugênia (além de bastarda, sem posses e coxa) já estava traçado quando Brás abate a borboleta, uma espécie de abate em efígie, pois a dignidade da moça pobre já o havia incomodado. Um momento marcado pela inferioridade social que a imperfeição natural não vai atenuar. Observe o desplante da falta de caridade com que Brás argumenta e desrespeita Eugênia.

“O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa!

Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes, um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma festa do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e aí fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo.

(...) Pobre Eugênia! Se tu soubesses que ideias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços aos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem...”

Após esse desfile de cinismo, nós, leitores, ainda temos de aguentar uma afronta: somos nós os cínicos porque nos apiedamos de Eugênia, a “Vênus Manca”.

“Retira, pois, a expressão, a alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, - que isso é dos óculos, - e acabemos de uma vez com esta flor da moita.”

Nesse festival de maldades, que tem como referências a deformidade de Eugênia, desfila o carro alegórico da sociedade brasileira. Brás, vestido de generoso, dá a pretensa volta por cima na estrutura social ao encantar pela moça pobre. “Por que bonita, se coxa”, “porque coxa, se bonita?” Em outras palavras, se houvesse uma ordem universal razoável, “moças coxas” (pobres) não seriam bonitas, e “moças bonitas” não seriam coxas (pobres). Trata-se de um discurso em que predomina a voz da dominação de classe.

“Quis retê-la, mas o olhar que me lançou não foi já de súplica, senão de império. Desci da Tijuca, na manhã seguinte, um pouco amargurado outro pouco satisfeito. Vinha dizendo a mim mesmo que era justo obedecer a meu pai, que era conveniente abraçar a carreira política...que a constituição...que a minha noiva...que o meu cavalo...”

O destino de Eugênia não foi diferente do de Marcela. Párias da sociedade, vagaram pelo mundo dos pobres até quando Brás nos dá notícia:

“Não acabarei, porém, o capítulo, sem dizer que vi morrer no hospital da Ordem, adivinhem quem?...a linda Marcela; e via-a morrer no mesmo dia em que, visitando um cortiço, para distribuir esmolas, achei...Agora é que não são capazes de adivinhar...Achei a flor da moita, Eugênia, a filha de Dona Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda mais triste.
Esta, ao reconhecer-me, ficou pálida, e baixou os olhos; mas foi obra de um instante. Ergueu logo a cabeça, e fitou-me com muita dignidade. Compreendi que não receberia esmolas da minha algibeira, e estendi-lhe a mão, como faria à esposa de um capitalista. Cortejou-me e fechou-se no cubículo. Nunca mais a vi; não soube de nada da vida dela, nem se a mãe era morta, nem que desastre a trouxera a tamanha miséria. Sei que continuava coxa e triste. Foi com esta impressão profunda que cheguei ao hospital, onde Marcela entrara na véspera, e onde a vi expirar meia hora depois, feia, magra, decrépita...”

7.3. VIRGÍLIA:

Virgília foi o amor que mais reforçou o caráter do protagonista. Primeiro, e por isso mesmo, porque fazia parte dos bem nascidos e sabia viver a vida seguindo a mesma nomenclatura de Brás: dinheiro e poder. Segundo, porque contracena com ele a maior parte do romance, apesar de em fases diferentes: solteira e jovem, quando há o projeto de um casamento perfeito; casada quando empreende a incrível marcha do triângulo amoroso; e no final da vida de Brás.
O primeiro momento está marcado pelo rompimento; quando está tudo acertado, casamento e ministério. Lobo Neves a arrebata de Brás com a promessa de torná-la marquesa.

“Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou teatro, ou palestra, mas a maior parte do tempo passeia-a comigo mesmo. Vivia; deixava-me ir a curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desânimo.
(...)
Quando me lembrava do Lobo Neves, que já era deputado, e de Virgília, futura marquesa, perguntava-me a mim mesmo por que não seria melhor deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves, - eu, que valia mais, muito mais do que ele, e dizia isto a olhar para a ponta do nariz...”

Assim passou Brás Cubas por esse intermédio de tempo a olhar para a ponta de seu nariz. Em seguida, ficamos sabendo do regresso de Virgília para o Rio de Janeiro e para Brás.
O novo romance entre Virgília e Brás principia nos passos rodopiantes de uma valsa e estimula o ego do moço.

“ – É minha! Disse eu comigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e confesso que durante o resto da noite, foi-me a ideia entranhando no espírito, não à força de martelo, mas de verruma, que é mais insinuativa.”

A ideia de ser o dono de Virgília está-se vendo que não é absurda para Brás, mesmo sabendo-se que o “dono” legítimo é Lobo Neves.
Ficando sabendo, no curso da narrativa, que Brás tem ímpetos de tomar a mulher ao marido, mas que rapidamente se acomoda no adultério, apesar do mexerico alheio.
Mesmo assim, a situação é de transgressão às normas sociais. Brás, no entanto, substitui o escrúpulo pela lei da compensação, e, dessa forma, passa por alto a questão moral do adultério.

“- É minha! Dizia eu ao chegar à porta da casa.

Mas aí, como se o destino ou o acaso ou que quer que fosse, se lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessórios, luziu-me ao chão uma coisa redonda e amarela. Abaixei-me: era uma moeda de ouro, uma meia dobra.

- É minha! Repeti eu a rir-me, e meti-a no bolso.”

Brás tem a jubilosa ideia de devolver a moeda a quem quer que fosse o dono. Faz isso por intermédio da polícia, o que legitima sua austeridade para com a coisa alheia e lavar os vestígios de culpa desse apossar-se do alheio o enquadra em uma circunstância mais escrupulosa.
Dessa forma, com a consciência mais limpa, Brás reflete sobre a lei da equivalência das janelas.

“Assim, eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência.”

Em outras palavras, satisfazendo um escrúpulo secundário, o valsista acalma o escrúpulo principal. A devolução da moeda, seguida da correspondente estima pública, permite à personagem passar por alto a questão do adultério. (...) Dispensa comentário a funcionalidade social deste esquema no caso brasileiro.
Estando o adultério instalado no dia a dia tanto de Brás como de Virgília, as relações amorosas do casal amante são evidenciadas em delícias, temores, remorsos, prazeres, dores, aflições, enfim, um desfilar de “hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio...”

As delícias estão nos beijos roubados e os temores, em certas tomadas de consciência sobre a situação adúltera. O “velho diálogo de Adão e Eva” e os remorsos representam a face hipócrita da situação:

“ – Amo-te, é a vontade do céu.”

Prazeres, “que rematavam em dor”, aflições, “que desabrochavam em alegria”, vemos circular por toda narrativa, em situações sempre pretensamente escondidas, mas escancaradas aos nossos olhos, já que é a própria trama do enredo.
Essas situações se concretizam na “casinha”, em D. Plácida, no filho que não chega a seu destino, na carreira política que não se efetiva, nas fofocas maledicentes, no convívio de Brás e Lobo Neves “contentes um do outro”.

“Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor nem prazer, uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico.”

O reencontro se dá quando da morte de Brás. Virgília era uma das senhoras presentes ao pé da cabeceira da cama do moribundo.

7.4. EULÁLIA:

Algum tempo após a separação com Virgília, Brás se deixa persuadir pelo bom senso de Sabina e aceita a ideia de um casamento com Nhã-Loló, a flor do pântano. O romance durou o tempo da vida de Eulália, muito pouco. Com a morte da moça, aacabam-se as aventuras amorosas de Brás.

IX - CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Uma das tônicas da personalidade de Brás é a volubilidade. Ser volúvel significa ser inconstante, variável, instável e a trajetória do protagonista nos dá mostras dessa inconstância. Além de alternar sua rotina com pretensa política e literatura, sua “ideologia” passeia pelo campo filosófico, sem falar de seu júbilo científico, causa, aliás, de sua morte.
Sua pincelada filosófica, da qual não é o autor, revela princípio único de todas as coisas, residindo igualmente nas partes vencida e vencedora, no condenado e no algoz, de sorte que não há perda alguma onde parecia haver uma desgraça. Daí que a dor não existe nem tem cabimento. Estamos falando do Humanitismo, teoria que inclui um elogio à sociedade de hierarquias.

O pressuposto teórico é de Quincas Borba e traz um tom de comicidade à obra quando se liga a doutrina ao ambiente social que ela encontra no país. O ar de disparate passa pela escravidão, na obra representada por Prudêncio, o negro que fora do cativeiro espanca outro negro. Passa também pelo clientelismo de Cotrim: bom pai de família, membro de várias irmandades, e patriota, além de contrabandeador de escravos e negociante de armas da Marinha. Passa pelo modo burguês de uma sociedade pretensamente moderna, cuja representação, com toda hierarquia apesar de falsificada, está sublimada em Brás Cubas.
Outra pretensão de Brás está no emplasto anti-hipocondríaco: uma solução científica, correspondente a solução filosófica de Quincas. Ambas atestam à relatividade das coisas, traço que o romance insiste em manter vivo por toda narrativa.

A teoria filosófica, Quincas queima num gesto de insanidade. Pretende ser o exemplo vivo de Humanitas, mas morre a seguir. A solução científica, bem, essa morre com Brás Cubas.
Na verdade, o movimento de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é marcado pela liquidação. Morre Brás e fica o defunto para refazer sua história do ponto de vista do além, de onde tece a intriga e desfaz das relações sociais. Morre Lobo Neves, morre D. Plácida, morre Marcela, morre Quincas Borba, morre Eulália. Com eles, morrem as teorias, os pressupostos, as “ideias fixas”.

“Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas feitas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto.

Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginara que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas:
- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

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