domingo, 12 de fevereiro de 2012

Miguel de Cervantes: O homem de La Mancha


Miguel de Cervantes

A foto aí em cima não é de um poeta, ou pelo menos de alguém convencionalmente aceito como tal. De fato, o retrato é do espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), autor de Dom Quixote de La Mancha, livro que marca o início do romance moderno e é um dos mais sólidos pilares da literatura universal.

Pois bem, a exceção para Cervantes vem exatamente a propósito disso: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha está completando este ano quatro séculos de sua primeira publicação.

Cervantes — assim como Camões e Shakespeare, seus contemporâneos — é um
desses raríssimos e prodigiosos artistas que conseguem  sobrepujar o tempo e o espaço. Conforme uma pesquisa da Unesco realizada em 2002, o Quixote é o segundo livro mais lido da  história da humanidade, atrás apenas da Bíblia. É também um dos mais traduzidos.

"Num lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor."

Assim começa o livro. Conta a história de um fidalgo decadente, Alonso Quijano. De tanto ler novelas de cavalaria, Quijano perde o juízo e transforma-se em Dom Quixote, um cavaleiro
andante. Seu cavalo, um pangaré fracote, é rebatizado com o nome de Rocinante, por ele considerado um fogoso corcel.

Como legítimo herói de cavalaria, Quixote dispõe-se a percorrer o mundo e lutar contra a injustiça, corrigir malfeitos, salvar donzelas em perigo. Sua esperança é conquistar reconhecimento moral por seus elevados esforços e também honrar o nome de sua amada, Dulcinéia del Toboso. A musa inspiradora do fidalgo não passa de uma rude camponesa,
mas, em sua loucura, ele a vê como formosa donzela. Aliás — terrível Cervantes! —, o verdadeiro nome dela é Aldonça Lourenço.

Para também participar de suas heróicas empreitadas, o cavaleiro consegue convencer seu vizinho Sancho Pança. É verdade que os objetivos de Sancho não são nada românticos. Ele aceita a proposta porque o Quixote lhe acena com a possibilidade de conquistar benefícios materiais e ser dono de sua própria terra.

Forma-se assim uma das mais consagradas parcerias da literatura. Diferentes em tudo: Quixote, o magro, viciado na leitura de novelas e sonhador alucinado; e Sancho, o escudeiro gordo, que nunca leu nada, sempre colado à realidade. Apesar disso, são amigos — para o que der e vier.

Talvez se possa dizer que um dos ingredientes que mantêm de pé o romance de Cervantes seja a ironia — um recurso tipicamente moderno. As aventuras do Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, são na verdade uma paródia das novelas medievais. Mas o que de fato sustenta essa história é a perenidade dos grandes valores humanos: o desejo de justiça, o amor, a amizade e o eterno debate sobre loucura e razão.

Ao longo destes 400 anos, o Quixote inspirou, no mundo inteiro, todo tipo de manifestação artística. Neste boletim, reuni algumas delas. Aqui estão, como representantes das artes visuais, o espanhol Pablo Picasso e o brasileiro Candido Portinari, dois grandes pintores do século XX.

Como este é um boletim de poesia, também comparecem poetas — exatamente dois dos mais destacados do século passado:

Os textos de Drummond vêm de "Quixote e Sancho, de Portinari", uma série de 21 poemas escritos com base em igual número de desenhos do pintor, criados em 1956. Os poemas apareceram no livro de Drummond Impurezas do Branco, de 1973, mas haviam saído antes
numa edição fora de comércio, junto com trechos de Cervantes e os desenhos de Portinari.

Abaixo, estão transcritos quatro dos 21 textos drummondianos. No primeiro, "Soneto da Loucura", discute-se sobre a perda da razão de Alonso Quijano. Nos blocos IV e XI o que vem à tona são as diferentes visões de mundo do Quixote e de Sancho Pança. No poema XXI, o último da suíte, Drummond trata da morte de Alonso Quejana.

O boletim se fecha com um soneto de Jorge Luis Borges, "Sueña Alonso Quijano", que tem, mais ou menos, o mesmo assunto do poema XXI, de Drummond. O mestre argentino, como sempre, apresenta um achado brilhante: "Foi o fidalgo um sonho de Cervantes / E Dom Quixote um sonho do fidalgo."


 

Não se impressionem com a variação do sobrenome: Quejana, Quijano. O bom-humor de Cervantes era mesmo poderoso. Na primeira página do livro, ele avisa: "Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada, que nisto discrepam algum tanto os autores que tratam na matéria; ainda que por conjeturas verossímeis se deixa entender que se chamava Quijana. Isto, porém pouco faz para a nossa história."

Portanto, como escreve Drummond no poema "V / Um em Quatro" (não transcrito aqui), lá se vão, pelos séculos afora, "um cavaleiro um cavalo um jumento um escudeiro".

Viva Cervantes. Viva o engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha.



Portinari: Dom Quixote e Sancho Pança Saindo para Suas Aventuras (1956).
Lápis de cor sobre cartão.

l Drummond

QUIXOTE E SANCHO, DE PORTINARI

                                  (trechos)

I / SONETO DA LOUCURA

A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto em meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,

e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.

IV / CONVITE À GLÓRIA
— Juntos na poeira das encruzilhadas conquistaremos a glória.
— E de que me serve?

— Nossos nomes ressoarão nos sinos
de bronze da História.
— E de que me serve?

— Jamais alguém, nas cinco partidas do mundo,
será tão grande.
— E de que me serve?

— As mais inacessíveis princesas se curvarão
à nossa passagem.
— E de que me serve?

— Pelo teu valor e pelo teu fervor
terás uma ilha de ouro e esmeralda.
— Isto me serve.

XI / DISQUISIÇÃO NA INSÔNIA
Que é loucura: ser cavaleiro andante
          ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
          O que, mesmo vendado,
          vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou — que doideira — um louco de juízo.

XXI / ANTEFINAL NOTURNO
Dorme, Alonso Quejana.
Pelejaste mais do que a peleja
(e perdeste).
Amaste mais do que amor se deixa amar.
O ímpeto
o relento
a desmesura
fábulas que davam rumo ao sem-rumo
de tua vida levada a tapa
e a coice d'armas,
de que valeu o tudo desse nada?
Vilões discutem e brigam de braço
enquanto dormes.
Neutras estátuas de alimárias velam
a areia escura de teu sono
despido de todo encantamento.
            Dorme, Alonso, andante
            petrificado
            cavaleiro-desengano.



Pablo Picasso: Dom Quixote (1955)

l Borges

SONHA ALONSO QUIJANO

                          Tradução: Josely Vianna Baptista

SUEÑA ALONSO QUIJANO
El hombre se despierta de un incierto
Sueño de alfanjes y de campo llano
Y se toca la barba con la mano
Y se pregunta si está herido o muerto.
¿No lo perseguirán los hechiceros
que han jurado su mal bajo la luna?
Nada. Apenas el frío. Apenas una
Dolencia de sus años postrimeros.
El hidalgo fue un sueño de Cervantes
Y don Quijote un sueño del hidalgo.
El doble sueño los confunde y algo
está pasnado que pasó mucho antes.
Quijano duerme y sueña. Una batalla:
Los mares de Lepanto y la metralla.





fonte: http://www.algumapoesia.com.br/
Desperta aquele homem de um indistinto
Sonho de alfanjes e de campo chão,
Toca de leve a barba com a mão
Duvidando se está ferido ou extinto.
Não irão persegui-lo os feiticeiros
Que juraram seu mal por sob a lua?
Nada. O frio apenas. Apenas sua
Amargura nos anos derradeiros.
Foi o fidalgo um sonho de Cervantes
E Dom Quixote um sonho do fidalgo.
O duplo sonho os confunde e algo
Está ocorrendo que ocorreu muito antes.
Quijano dorme e sonha. Uma batalha:
Os mares de Lepanto e a metralha.

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