sábado, 26 de maio de 2012

Paraísos Artificiais: 150 anos entre o livro e o filme

Charles Baudelaire Capa do livro

Do livro Paraísos Artificiais, de Charles Baudelaire, ao filme Paraísos Artificiais, de Marcos Prado, as drogas são um tema recorrente na criação artística. São inúmeros os casos de escritores que, ao longo dos 150 anos que separam as duas obras, fizeram uso de diferentes tipos de substâncias químicas, do beat Jack Kerouac ao intelectual Aldous Huxley, do poeta Jean Cocteau ao filósofo Jean-Paul Sartre, num rol que ainda inclui Thomas de Quincey, Coleridge, Rimbaud, Fernando Pessoa, Henri Michaux, Walter Benjamin, Philip K.Dick, Timothy Leary, Carlos Castañeda, Hunter Thompson e Irvine Welsh. Sir Arthur Conan Doyle transferiu para seu personagem Sherlock Holmes o próprio gosto pela cocaína, substância que também foi pesquisada e usada por Freud.

No Brasil, já em 1924, na crônica No bairro da cocaína, Benjamin Costallat retratou Gaby, uma parisiense dona de pensão na praia da Glória, na qual se reuniam toxicômanos e “aspiravam pitadas de pó em companhia de mulheres”. Indiferente ao sofrimento alheiro, Gaby “venderia a última peça de roupa, a última jóia, para alimentar seu vício” – e o dos seus hóspedes. Era, conclui Costallat, a sacerdotisa de uma nova igreja, a religião da cocaína. Vale lembrar que a cocaína era vendida em farmácias, como analgésico, até meados da década de 30, e consumida livremente em bares e pensões – até ser proibida por lei, em 1938. Entre os escritores brasileiros que tiveram contato com a droga estão Junqueira Freire, Olavo Bilac, Pagu, João do Rio, Lima Barreto e Manuel Bandeira. João Cabral de Melo Neto tinha outro vício: o ácido acetil-salicílico da Aspirina, da qual ele era um consumidor contumaz – e à qual dedicou um famoso poema, em que define o comprimido como “o mais prático dos sóis”.

Não decorre daí que essas experiências tornaram necessariamente melhor ou pior a escrita desses autores, mas em todo caso isso mostra que a atração exercida pelo uso de substâncias que conduzem a estados alterados da mente atravessa os séculos e continua rendendo relatos que no fundo espelham a mesma busca e as mesmas questões abordadas por Baudelaire em meados do século 19. De lá para cá os relatos sobre o vício não mudaram muito: os cenários são diferentes, mas a essência é a mesma: prazer, sofrimento, redenção, perda. Talvez William Burroughs, outro doidão, tivesse razão quando afirmou: “Nunca acontece nada de novo no mundo das drogas”.

Leia aqui um trecho do livro Paraísos Artificiais.

Em Paraísos Artificiais (L&PM, 224 pgs.), publicado em 1860. Baudelaire descreve e compara os efeitos de três substâncias psicotrópicas: o haxixe, o ópio e o vinho. No caso do haxixe, ele se baseou em experiências próprias, como frequentador do Club des Hachichins, círculo de artistas e intelectuais que se reunia no Hotel Pimodan, em Paris, para experimentar as sensações de alargamento dos sentidos provocadas pela droga. Já o capítulo sobre o ópio se baseia no livro Confissões de um Comedor de Ópio (1821), de Thomas de Quincey, que Baudelaire traduziu livremente para o francês, com alguma ênfase nos efeitos nocivos para o organismo do uso crônico da droga, contrapartida cruel da alucinações maravilhosas e surreais que ela proporciona. Para o poeta, sensações mais agradáveis e menos danosas decorrem do vinho – com uma ressalva: desde que consumido com moderação. “Existe um deus misterioso nas fibras da videira. Como são grandes os espetáculos do vinho, iluminados pelo sol interior! Como é verdadeira e abrasadora esta segunda juventude que o homem dele retira! Mas como são, também, perigosas suas volúpias fulminantes e seus encantamentos enervantes”, escreve.

Baudelaire não escreveu portanto para exaltar o uso de psicoativos, mas para alertar contra os seus devastadores efeitos morais e espirituais no indivíduo. Escrevia de cadeira, pois além do consumo de haxixe ele ficou viciado em láudano,  um derivado de ópio, ao qual recorria para aliviar os sintomas da sífilis. Mesmo em relação ao potencial da droga como estimulante da criativdade artística, Baudelaire é reticente: “Aquele que recorre a um veneno para pensar em breve não poderá pensar sem veneno. Dá para imaginar o destino horrível de um homem cuja imaginação paralisada não funciona mais sem o haxixe ou o ópio?”, pergunta o autor de As Flores do Mal.

Não resta dúvida, portanto, sobre a mensagem de Baudelaire. Revela-se no livro, contudo, certa ambiguidade nessa percepção fundadora das drogas na modernidade. Mesmo alertando para os “esforços sobre-humanos de vontade que lhe foi necessário empregar para escapar à danação a qual ele, imprudentemente, se havia devotado”, o escritor relata também os prazeres envolventes e reveladores das substâncias que analisa, de tal forma que é capaz de despertar a curiosidade do leitor mesmo 150 anos depois da publicação do texto: “As palavras mais simples, as idéias mais triviais tomam uma fisionomia nova e estranha; semelhanças e aproximações incongruentes, impossíveis de serem percebidas, jogos de palavras intermináveis, tentativas de comicidade jorram continuamente de seu cérebro. O demônio o invadiu; é inútil resistir (…). De vez em quando, você ri de si mesmo, de sua ingenuidade e de sua loucura, e seus companheiros, se você os tem, riem igualmente de seu estado e do deles; mas, como eles não têm malícia, você não tem rancores”.

Essa ambiguidade, de certa maneira, subsiste. Em todas as produções artísticas contemporâneas que tematizam a droga, ou que são produzidas sob seu efeito, existe esse convívio tenso entre atração e repulsa, entre resistência e entrega, entre alerta racional e exaltação irracional.

Cena do filme 'Paraísos artificiais'

No cinema essa dicotomia é ainda mais evidente que na literatura, talvez pela imposição comercial de se levar em consideração o gosto e os limites da plateia. Sem forçar muito a memória, nos filmes que tematizaram a droga a punição é uma companheira constante do êxtase. Exemplos: The trip, de Roger Corman (1967);  Sem destino, de Dennis Hopper (1969); O desespero de Veronika Voss, de Rainer Werner Fassbinder (1982); Drugstore Cowboy, de Gus Van Sant (1989); Mistérios e paixões, de David Cronenberg (1991); Trainspotting, de Danny Boyle  (1996); Réquiem para um sonho, de Darren Aronofsky (2000). Em todos o protagonista ou algum personagem importante morre ou é preso ou se estrepa de alguma maneira como consequência direta do vício.

De certa forma, o padrão se repete no longa-metragem Paraísos artificiais, de Marcos Prado, no qual quase todos os personagens são de alguma maneira punidos – o que tem levado parte do público a considerar o filme moralista, enquanto outra parte, paradoxalmente,o julga ousado demais, talvez mais pelas (belas) cenas de nudez e sexo que propriamente pelas drogas. Não concordo com nenhuma das duas visões. Acho tão careta e autoritário julgar o filme a partir de uma posição fechada pró-drogas quanto a partir de uma posiçãofechada anti-drogas. Uma e outra enxergam a questão de forma absoluta, como se o sentido, os efeitos e as consequências da droga fossem os mesmos em qualquer época, em qualquer contexto, em qualquer pessoa.

Não são.  O haxixe de Baudelaire não é a bala da balada. A maconha como evasão da opressiva realidade brasileira dos anos 70 não é a maconha da juventude consumista da Barra da Tijuca dos anos 2000. O impacto do tráfico  e sua relação com a violência urbana também mudaram radicalmente, o significado político do consumo é outro. O que não mudou é que, em qualquer época, excessos podem ter consequências sérias. Tudo isso precisa ser levado em conta em qualquer criação artística, ao menos se a intenção for tratar do assunto de maneira honesta, sem julgamentos fáceis nem proselitismo.

Plasticamente impecável, Paraísos artificiais traz sequências que lembram, em sua primeira metade, a atmosfera das cenas filmadas no deserto californiano de Zabriskie Point, de Antonioni, talvez o melhor retrato da contracultura e da juventude americana dos anos 60 já feito no cinema.  (Aliás, o protagonista de Zabriskie Point também é punido, e o filme é tudo menos moralista.) O diretor Marcos Prado consegue produzir no espectador o que a experiência de uma rave pode ter de maravilhosa para quem gosta e frequenta. Nem por isso ele cede à tentação de retratar o universo da música eletrônica e o boom das drogas sintéticas como uma realidade cor de rosa, onde todo mundo se ama e nada de ruim pode acontecer. Seus personagens são de carne e osso, têm problemas familiares, sofreram com perdas e lidam com o desafio de superá-las. E, graças a um roteiro cuidadosamente estruturado, aparecem lidando com essas questões de formas diferentes em tempos e lugares variados: em uma palavra, amadurecem. Nesse processo, se alguma restrição pode ser feita ao filme, é sua relativamente curta duração (96 minutos), já que algumas sequências pediam um tempo e um desenvolvimento maiores.

Ao mesmo tempo, o filme fala diretamente aos sentidos do espectador, a quem consegue envolver de forma quase hipnótica – mais pela fotografia e pela montagem que pela música eletrônica, sempre irritante para quem não está sob efeito de nenhuma droga. Nessa tentativa de traçar um panorama realista e ao mesmo tempo poético de um fenômeno social ligado à classe média, e portanto próximo da maioria dos espectadores – empreendimento pouco comum entre nossos diretores, mas afeitos a retratar as “distantes” camadas mais carentes da população – Paraísos artificiais se destaca como exemplo do profissionalismo e da maturidade da atual fase do cinema brasileiro.

artigo retirado de : http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2012/05/13/baudelaire-vai-a-balada/

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