quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Educação e a incomunicabilidade dos Brasis




Nós brasileiros de classe média para cima somos vítimas de dois erros de percepção. O primeiro é de que o Brasil é como nós: relativamente instruído, informado, desejoso de progresso nos moldes dos países desenvolvidos, liberal e democrático. O segundo, um pouco derivado do primeiro, é de que nossa ação pode influenciar os destinos da nação através da pressão sobre a classe política e os formadores de opinião.

Para derrubar o primeiro erro, basta conversar mais prolongadamente com as pessoas que compõem a base e maioria de nossa pirâmide social para descobrir que nossas experiências e leituras de mundo são separadas por um enorme fosso. Para quem não quer fazer o trabalho de campo, basta ler A Cabeça do Brasileiro (Record; 280 páginas; 42 reais), do sociólogo Alberto Carlos Almeida, e notar quão diferente é o Brasil das duas pontas do espectro sociocultural. Entre os que têm estudo até a 8ª série, 58% acha certo o "jeitinho", contra 33% entre aqueles com ensino superior. Entre os analfabetos, 51% acredita que Deus decide o destino, contra 9% dos bacharéis. A tortura de presos pela polícia é tolerada por 51% dos analfabetos contra 14% dos diplomados. 76% daqueles que têm ensino até a 4ª série é contra a masturbação masculina, contra apenas 26% dos possuidores de ensino universitário. E por aí vai.

A idéia de que podemos influenciar decisivamente a ação política deriva de um elitismo de antanho e do desconhecimento do funcionamento do "mercado" político. Esse é um mercado movido a voto. A maioria elege. Todo político que queira ser eleito deve aderir ao chamado teorema do votante mediano: você precisa defender posições que agradem ao eleitor que está no meio do espectro político/ideológico. Quem "captura" o eleitor mediano tem grandes chances de ser palatável para a maioria do eleitorado e, portanto, sair vencedor. Quem defende uma posição extremada só captura a minoria dos votantes que compartilha daquela visão e tende, portanto, a perder eleições majoritárias ou ser minoritário em eleições proporcionais. No Brasil, as posições majoritárias são diferentes daquelas posições defendidas pelos setores mais ilustrados da população. Dois terços das pessoas com até 4 anos de escolaridade acreditam que os bancos devem ser controlados pelo governo, 45% defende a censura, 51% defende o "jeitinho", 85% acredita que cada um deve cuidar somente do que é seu e deixar que o governo cuide do que é público, 31% acredita que os políticos devem usar seus cargos em benefício próprio, "como se fosse sua propriedade", 77% não confia nem nos amigos. Segundo a amostra do livro, 34% da população tem até 4 anos de estudo e 57% tem até 8 anos. Segundo o IBGE, a escolaridade média do grupo parecido com o dos eleitores - aqueles de 15 anos de idade ou mais - é de 7 anos. Não é por acaso, portanto, que Renan Calheiros é eleito, faz o que faz e é absolvido por seus pares. O brasileiro médio, e portanto o político médio, é mais parecido com Renan e sua trupe do que gostaríamos de reconhecer.

Por isso o esforço de editoriais de jornais, correntes de e-mail ou apelos desesperados de sites é irrelevante ao processo decisório político. Para começar, 74% da população brasileira, segundo dados do INAF, não consegue ler e entender um simples texto. E, segundo, mesmo que o lesse, provavelmente não partilharia do espanto das classes letradas. Os políticos sabem que não perderão seus mandatos por usarem de "jeitinhos" ou trafegarem nas zonas cinzentas da moral política. E nós sabemos que, se perderem, serão substituídos por pessoas muito parecidas.

O corolário lógico dessa percepção é que, se as elites intelectuais quiserem modernizar o Brasil, elas precisam entender que, em um sistema democrático, seu trabalho passa necessariamente pelo convencimento dos "corações e mentes" da maioria de seus concidadãos - que não lêem jornal, não têm acesso à internet e pensam de maneira muito diferente. O que deveria estar ficando cada vez mais claro é que ou construímos um país para todos e pensando em todos ou não conseguiremos fazer nada. Numa democracia, minorias não geram mudanças.

Não há um caminho óbvio para gerar essa mudança. O fato de pessoas mais instruídas terem uma determinada posição não significa que essa posição tenha sido causada pela educação. Mas, dentre as alternativas possíveis, é a mais provável: como já foi observado em todo o mundo, o aumento de escolaridade traz uma série de conseqüências positivas para o desenvolvimento econômico - e político. No pior dos casos, pelo menos fará com que mais pessoas possam pelo menos ler e entender os pensamentos de terceiros, e participar do debate sobre a construção do Brasil que queremos.



Artigo de Gustavo Ioschpe
http://veja.abril.com.br/gustavo_ioschpe/index_200907.shtml

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