quinta-feira, 10 de março de 2011

Nada menos que ele ... Fernando Pessoa.

Apresentação humana de Fernando Pessoa

Desde a sua adolescência que Fernando Pessoa dialogou, entre o orgulho e a agonia, com a convicção de ter sido marcado pelo génio, e quis realizar uma obra de superior destino, que antepôs a qualquer satisfação possível. Sendo Fernando Pessoa um sonhador, este facto sustentou-lhe a escolha de uma existência à margem da sua classe natural e oposta à da sua família, à qual, sempre permaneceu vinculado por um formalismo comedido e aristocrático que não cumpria extremamente.

            Dentro do exílio, que foi o da sua vontade, a sua diferença, inclinou-se a pretexto da sua força oculta, a de ser poeta, e quotidianamente cumpriu exemplarmente a função de escrever. Foi um homem que se contentou com uma história sem brilhos e sem misérias espetaculares, e que preferiu uma vida secreta e sem importância, em poesia, como em vida, cumpriu, enganou-se, falhou, sabendo-o sempre, com a incómoda evidência da previsão e comentário com que se julgava, e nem sequer teve ilusões satisfatórias fosse até acerca da glória que finalmente desejava para o que escrevia.

            A sua presença sempre se volveu estranha, pela forma de reserva inesperada, pelas bruscas confidencias intempestivas, pelo pudor defendido como uma aparência às avessas, e temperado com um humorismo irónico, de desencanto e defesa. Foi o próprio Fernando Pessoa que revelou, à luz desfavorável do artifício e do exagero, os seus tiques e os seus hábitos com que a censura se entretivesse no que ter à dizer dele. Gostava de manter intocáveis a sua intimidade e a vida privada, limpa, facilitando o pitoresco e a anedota com que o desconhecessem sem, contudo, o mentirem.

No entanto o cenário que o rodeou e a personagem na qual se transformou aos poucos, são adaptáveis à ideia do tipo que nós fazemos da sua existência de homem de letras, embora singular. Sem que seja preciso grande esforço ou grande imaginação, reencontramos a atmosfera dos cafés habituais da Baixa cidade de Lisboa, que ele frequentava como cliente modesto entre as horas de presença dos escritórios próximos, e como intelectual às horas dos intelectuais. Aí o distinguimos, vestido de escuro e refugiado no gesto imóvel de cruzar os pés sob a mesa, e inclinar a cabeça a qual apoiava numa das mãos.

Reconhecemos o seu ar de secreta e vaga ausência, a sua distraída contemplação, o seu lento sorriso silencioso ou uma pequena gargalhada nervosa. A imagem assim obtida, leva-nos do autor à obra e da obra ao autor, num vaivém de interferencias do conhecimento que temos. Qualquer decifração que se pretenda fazer incidir sobre a personalidade humana que permitiu uma tal personalidade literária, está por força presa à declarada relevância da segunda sobre a primeira. Fernando Pessoa na sua convenção de atitudes e aparências, no processo da literatura, é deduzível da interpretação do seu génio.

Pessoa e os nascimento dos heterônimos…

VIDA:  Nasceu em Lisboa e aos 5 anos tornou-se órfão de pai. Foi levado pela mãe e pelo padrasto para a África do Sul, onde fez seus estudos secundários com notável brilho. Aos 17 anos, regressou a Lisboa e cursou Letras e Filosofia, mas sua profissão foi a de correspondente comercial em línguas estrangeiras.
 
Em 1915, liderou um grupo de jovens no lançamento da revista Orpheu, que marca o início da literatura moderna em Portugal. Após o desaparecimento da revista, Pessoa entregou-se a uma vida solitária dedicada à poesia e ao álcool. Seus poemas são divulgados pela prestigiosa revista Presença, mas o único livro publicado em sua vida foi Mensagem. Uma aguda crise de cirrose hepática o mataria aos 47 anos. Apesar da relativa obscuridade em que veio a falecer, era certamente uma das grandes vozes da poesia ocidental do século XX.
 
OBRA:  Traduzindo um mundo multifacetado (ele é contemporâneo da I Guerra Mundial), em que todos os valores considerados eternos desabavam, todas as certezas desapareciam e uma imensa crise filosófica e ideológica comovia o Ocidente, Fernando Pessoa registraria poeticamente esse vácuo aberto diante de sua alma de artista moderno. Não podemos esquecer que atrás de si, ele tinha a poesia suprema de Camões e a de todos os clássicos portugueses. Ou seja, uma tradição impossível de ser renegada. Já diante do presente, Pessoa se sentia seduzir pelos experimentos de vanguarda, cubismo e futurismo em especial, o que o aproximava das rupturas literárias mais radicais.
 
Atrás de si ele tinha um país que conquistara parte do mundo e que hoje – conforme sua próprias palavras – era apenas “nevoeiro”. Já no presente, deparava-se com a emergência de novos sistemas sócio-políticos (Comunismo, Fascismo) que afirmavam estar construindo o “novo homem”, enquanto Portugal continuava com seu provincianismo e sua letargia histórica. Portanto, a existência do poeta estava dilacerada pela ausência de verdades absolutas e um caos interior parecia fragmentar sua personalidade e, em seguida, multiplicá-la. Estabeleciam-se as condições de nascimento dos heterônimos.
 
Ao contrário dos pseudônimos – vários nomes para uma mesma personalidade – os heterônimos constituem várias pessoas que habitam um único poeta. Cada um deles tem a sua própria biografia, sua temática poética singular e seu estilo específico.É como se eus fragmentados e múltiplos explodissem dentro do artista, gerando poesias totalmente diversas. O próprio Fernando Pessoa explicou os seus heterônimos: Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria.
 
            Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer deles idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler.
 
Em outra ocasião, o poeta explicou o nascimento de cada um dos heterônimos:
 
 Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (…) Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à idéia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.) Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada (…). Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. (…) Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfa de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. (…)
 
Em síntese: Fernando Pessoa não é um só, multiplica-se em vários poetas. Ou como diz Massaud Moisés: “Através desse processo, o poeta se habilita a ver o mundo como outros indivíduos o vêem, antes e depois dele, tentando explicar o caos e atingir alguma verdade dentro da floresta de relativismos em que se acha cercado.”


Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
(Fernando Pessoa)


Lusíadas
Canto X

As Ninfas oferecem um banquete aos portugueses. Após uma Invocação do poeta Calíope, uma Ninfa faz profecias sobre as futuras vitórias dos Portugueses no Oriente. Tétis conduz Vasco da Gama ao cume de um monte para lhe mostrar a Máquina do Mundo e indicar nela as lugares onde chegará o império Português. Os portugueses despedem-se e regressam a Portugal. O poeta termina lamentando-se pelo seu destino infeliz de poeta incompreendido por aqueles a quem canta e exortando o Rei D. Sebastião a continuar a glória dos Portugueses.
A Máquina do Mundo revela o que será o Império Português, representando o auge da glorificação – Vasco da Gama vê o que só aos Deuses é dado ver; é a glorificação simbólica do conhecimento, do saber proporcionado pelo sonho da descoberta: “o bicho da terra tão pequena” venceu as suas próprias limitações e foi além do que prometia a “força humana”. É de assinalar que, neste episodio se sobrepõem, a nível da estrutura, os três planos narrativos: o plano da viagem; o plano mitológico e o plano da história de Portugal, mas agora e futuro.

Ilha dos Amores
Terminada a viagem do Gama e antes de regressarem a Portugal, o poeta dirige os nautas para a Ilha dos Amores, onde, por acção de Vénus e Cupido, receberão o prémio do seu esforço.
Trata-se de uma ilha paradisíaca, de uma beleza deslumbrante. A descrição do consórcio entre os portugueses e as ninfas está repassada de sensualidade. Os prazeres que lhes são oferecidos são o justo prémio por terem perseguido o seu objectivo sem hesitações.
Em primeiro lugar, serve para desmitificar o recurso à mitologia pagã, apresentada aqui como simples ficção, útil para "fazer versos deleitosos". Em segundo lugar, representa a glorificação do povo português, a quem é reconhecido um estatuto de excepcionalidade. Pelo seu esforço continuado, pela sua persistência, pela sua fidelidade à tarefa de expansão da fé cristã, os portugueses como que se divinizam. Tornam-se assim dignos de ombrear com os deuses, adquirindo um estatuto de imortalidade que é afinal o prémio máximo a que pode aspirar o ser humano.
De certo modo, podemos dizer que é o amor que conduz os portugueses à imortalidade. Não o amor no sentido vulgar da palavra, mas o amor num sentido mais amplo: o amor desinteressado, o amor da pátria, o amor ao dever, o empenhamento total nas tarefas colectivas, a capacidade de suportar todas as dificuldades, todos os sacrifícios. É esse amor que manifestam Gama e os seus homens; é ele que permite a tantos libertar-se da "lei da morte". É também esse amor que conduz Camões a "espalhar" os feitos dos seus compatriotas por toda a parte e tornar-se, também ele, imortal.

Reflexão do Poeta Os últimos versos da obra revelam sentimentos contraditórios: o desalento, o orgulho e a esperança.
1. O poeta recusa continuar o seu canto, não por cansaço, mas por desânimo, o que provêm da contratação…metida no gosto da cobiça e na rudeza, imagem que representa o Portugal do seu tempo;
2. Mas exprime o seu orgulho naqueles que continuam dispostos a lutar pela grandeza da pátria;
3. E afirma a esperança de que o rei saiba aproveitar e estimular essas energias para dar continuidade á glorificação do “peito ilustre lusitano”
4. Em suma, a glória do passado deverá ser encarada como um exemplo presente para construir um futuro grandioso.

"Não sei se é sonho, se realidade"

Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul de olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Mas já sonhada de desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, á luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

Reflexão: O sujeito poético neste poema, numa primeira fase procurou colocar a hipótese
 de poder alcançar o sonho, numa segunda fase contradiz a hipótese colocada, expondo a
concretização do sonho. Finalmente conclui que não é necessário fingir para o sonho, porque aquilo que procuramos está dentro de nós mesmos. No entanto, ao referir  que é “Ali, ali / A vida é jovem e o amor sorri”, deixa entender que mesmo estando  dentro de nós, o sonho e a felicidade estão distantes, pois são difíceis de alcançar. Este poema foi escrito para explorar o tema tipicamente pessoano do binómio, sonho/realidade.

"Porque esqueci quem fui quando criança?"
Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?

Reflexão: Trata-se de um dos temas fundamentais da obra de Fernando Pessoa ortónimo, mas que também é partilhado pelo seu heterónimo Álvaro de Campos. Para Fernando Pessoa, a sua infância é o passado irremediavelmente perdido,  o tempo longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que ainda não  tinha iniciado a procura de si mesmo, e por isso, ainda não se tinha fragmentado.  Em muitos poemas, o poeta exprime a memória dessa infância provocada por um qualquer  estímulo – “velha música”, um simples som (“Quando as crianças brincavam /  E eu as oiço brincar), uma imagem ou uma palavra – para concluir amargamente que o  rosto presente, não há coincidência entre o “eu – outrora” e o “eu – agora” Em Fernando Pessoa, a passagem da infância a idade adulta não é um processo de ruptura, de corte, de morte: “A criança que fui vive ou morreu?”; “Porque não há semelhança /  Entre quem sou e fui?”. Todo o poema “Porque esqueci quem fui quando criança?” exprime  essa admiração perturbante de se sentir habitado por outro, diferente da criança que  foi “sou outro?”.Desta forma, o passado e o presente opõem-se na poesia de Fernando Pessoa,  não se complementam. O passado é infância, alegria, felicidade “inconsciente”;  o presente é nostalgia, inquietação, desconhecimento de si mesmo e do futuro:  “se quem fui é enigma, / E quem serei visão, / Quem sou ao menos sinta / Isto no meu coração”.
FRESTA - Fernando Pessoa
Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou soterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado,

Revivo, existo, conheço;
E, inda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço:
Entrego-lhe o coração.


Reflexão: A idéia de uma presença que se faz/ sente ausente força o leitor da obra pessoana a refletir toda a complexidade do sentido de ser. Notemos aqui, portanto, uma "ausência" fingida ("fingir é conhecer-se", frase do heterônimo Álvaro de Campos) que revela, assim podemos dizer, enigmática presença, em névoas e muros, de vida. Claro pensemos, muitos, alguma vez, já se sentiram estranhamente ausentes, mesmo vivendo…
 
A presença vaga de um eu-lírico que se faz ausente se desenha na pele dos pronomes: "meus", "mim", "me"… Os verbos na primeira pessoa do singular, em tempo presente, reforçam a idéia de uma "sombra presente/ De uma presença passada" (versos de outro poema de Fernando Pessoa). Ainda que esteja soterrado em si, um instante só basta para que um "longínquo horizonte", cheio de sol posto (pôr-do-sol) ou nado (palavra arcaica, em desuso: nascido/ em aurora), reviva ao eu-lírico, fazendo-o existir, e conhecer. E não importa ser ilusão o mundo exterior: sem desejar nada mais além, entrega ao mundo possivelmente ilusório o "Coração de ninguém" (verso de outro poema de Fernando Pessoa). Parece ser o mundo da ilusão uma forma de suportar, muitas vezes, a realidade da vida… Só parece…
 
Cf. leitura, e análise, de outro poema de Fernando Pessoa: (ANÁLISE): A presença de quem se faz ausente — Fernando Pessoa (parte 1) A seção "(ANÁLISE)", como câmera fotográfica, tenta flagrar algumas nuanças mágicas do poema. Esperam-se aqui comentários que possam ajudar a interpretar a beleza da poesia. Críticas pertinentes e sugestões de leitura serão muito bem recebidas. Texto-análise originalmente publicado em 21/01/2007.

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