sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Marília de Dirceu - Tomás Antônio Gonzaga

Numa breve introdução ao Neoclassicismo como estilo da época, podemos afirmar que este estilo representa o momento de coesão e revelância da doutrina clássica originada na Renascença e que alcança a sua estruturação perfeita na literatura francesa do século XVII. Do ponto de vista histórico, o século XVIII é o século das luzes, momento em que se desenvolve uma visão científica do mundo.

A ciência e o racionalismo constituem as luzes com que se costuma caracterizar o século. A razão ilumina, ilustra; daí as palavras iluminação e ilustração que caracterizam as manifestações culturais do momento, o conjunto das tendências características. No campo da literatura, o Neoclassicismo representa, nas diversas literaturas européias, uma generalizada reação contra o Barroco, sob o irresistível impulso do pensamento racionalista dominante em toda a Europa a partir do século XVIII.

Como fruto desse iluminismo, um bom exemplo na literatura é a poesia satírica, largamente difundida na época, e de que As Cartas Chilenas podem funcionar como um bom exemplo, na nossa literatura.

Sem nos prendermos à “tirania cronológica” podemos dizer que o Neoclassicismo como estilo de época foi inaugurado, oficialmente, em Portugal, com a criação da Arcádia Lusitana, em 1756, e vai-se prolongar até 1825, quando Garrett publica o poema narrativo de feição romântica, Camões.

No caso do Brasil, há um pequeno atraso com relação às delimitações “oficiais”, sem nenhum critério estritamente literário: o início é marcado pela data de 1768, com a publicação das Obras Poéticas, de Cláudio Manuel da Costa, estendendo-se até 1836, quando se dá a implantação oficial do Romantismo, com os Suspiros Poéticos e Saudades, Marília de Dirceu, a obra de Tomás Antônio de Gonzaga, se enquadra exatamente nesse estilo de época: o Neoclassicismo ou por outros chamado de Arcadismo.

Sua primeira edição, constando apenas da Parte I (23 liras), foi editada em Lisboa, em 1792, saindo a Parte II, também em Lisboa, em 1799. Com relação à Parte III, que muitos julgam apócrifa, Rodrigues Lapa considera autêntica a edição de 1812, da Impressão Régia.

CARACTERÍSTICAS MARCANTES DA OBRA

         1) Uma das mais exploradas características barrocas foi, sem dúvida, a suntuosidade e, de certo modo, a complicação, principalmente da forma exterior (cf. cultismo), além de empanar e perturbar a limpidez e lógica do ideário clássico. Daí o sentido pejorativo que teve o Barroco naquela época.

Um dos postulados básicos de Neoclassicismo é exatamente a reação ao preciosismo e confusão do estilo barroco, ou seja, o Neoclassicismo significou antes de tudo, como a própria palavra explicita, um retorno ao equilíbrio, à simplicidade da linguagem e de idéias da literatura clássica quinhentista e greco-latina.

A imitação dos modelos clássicos volta à tona, e a razão, mais uma vez, tem dias de glória. Esse racionalismo, essa fundamentação racionalista, na literatura configurada na aceitação e volta ao pensamento e cultura clássica, têm confirmação de autores da época, como Filinto Elísio, que aconselhava:

        “         Lede, que é tempo, os clássicos honrados;
         Herdai seus bens, herdai essas conquistas,
         Que em reinos dos romanos e dos gregos
         Com indefeso estudo conseguiram.

         Vereis então que garbo, que facúndia
         Orna o verso gentil quanto sem eles
         É delambido e peco o pobre verso.
         Lede, que é grande cegueira esse descuido.”


Tomás Antônio Gonzaga, como “o mais árcade de nossos árcades” leu “esses clássicos honrados” e se mostra impregnado deles em muitas liras de sua Marília de Dirceu. Aí está a linguagem estereotipada da mitologia, do retrato da mulher ideal que, no fundo, são decorrências do imperativo da razão e da lógica: se um princípio qualquer era válido para os antigos (porventura autoridades do assunto), tinha que sê-lo também para os novos.

Se os antigos usaram uma determinada forma poética e a cultivaram, o mesmo deveriam fazer os novos. Daí a estereotipia de linguagem e também de assunto.
        
Assim, é como poeta integrado no espírito neoclássico e arcádico que Gonzaga, uma das maiores expressões literárias da época, descreve Marília: mulher nívea, de cabelos longos e louros. É assim que Gonzaga descreve Marília na primeira lira da Parte I. Não importava que Marília fosse brasileira e morena, como o poeta a descreverá na lira seguinte (I, 2). Era, talvez, mais importante estar integrado no espírito e convenções do Arcadismo.


         "Os teus olhos espalham luz divina,
         A quem a luz do Sol em vão se atreve;
         Papoula, ou rosa delicada, e fina,
         Te cobre as faces, que são cor de neve.
         Os teus cabelos são uns fios d'ouro;
         Teu lindo corpo bálsamos vapora.
         Ah! não, não fez o Céu, gentil Pastora,
         Para glória de Amor igual tesouro.
                  Graças, Marília bela,
                  Graças à minha Estrela!"

Sem dúvidas, outras descrições idealizadas como esta podem ser notadas no livro. É só ler com atenção e espírito crítico.Mas, como falamos, outro postulado estético, racionalmente aceito na época, era a mitologia. Seria ocioso mostrar os valores e referências mitológicas no livro, dada a presença avassaladora dos deuses do Olimpo, principalmente Cupido com suas setas mortais e Vênus que está sempre cotejada com Marília, a quem esta sempre vence pela beleza divinal:

         "O destro Cupido um dia               Por fazer pensar a todos
         Extraiu mimosas cores                  No seu liso centro escreve
         De frescos lírios,e rosas,              Um letreiro, que pergunta:
         De jasmins, e de outras flores.         'Este espaço a quem se deve?'
        
         Com as mais delgadas penas   Vênus, que viu a pintura,
         Usa de uma, e de outra tinta,         E leu a letra engenhosa,
         E nos ângulos do cobre              Pôs por baixo: 'Eu dele cedo;
         A quatro belezas pinta.              Dê-se a Marília formosa'"

Outro excelente exemplo, em que o poeta perpassa a sua visão do mundo filtrada pela ótica mitológica, é a lira 25 (Parte I).

       2) O Racionalismo é outro elemento decorrente da volta ao passado clássico. Destacamo-lo aqui, dada a sua importância como principal esteio da ideologia neoclássica. Já falamos atrás, da complicação do pensamento, da linguagem, das idéias do estilo barroco.

A esta complicação se opôs a lógica - clara, límpida, cristalina do Neoclassicismo, que se revela pela simplicidade de raciocínio, que é claro e lógico, como se pode entrever na argumentação da Lira VIII (Parte I):

         "Já viste, minha Marília,                   As grandes Deusas do Céu
         Avezinhas, que não façam          Sentem a seta tirana
         Os seus ninhos no verão?               Da amorosa inclinação.
         Aquelas, com quem se enlaçam,         Diana, com ser Diana,
         Não vão cantar-lhes defronte         Não se abrasa, não suspira
         De mole pouso, em que estão? Pelo amor de Endimião?
                  Todos amam: só Marília          Todos amam: só Marília
                  Desta Lei da Natureza                Desta Lei da Natureza
                  Queria ter isenção?            Queria ter isenção?
        
         Se os peixes, Marília, geram         Desiste, Marília bela,
         Nos bravos mares, e rios,          De uma queixa sustentada
         Tudo efeitos de Amor são.               Só na altiva opinião.
         Amam os brutos ímpios,          Esta chama é inspirada
         A serpente venenosa,              Pelo Céu; pois nela assenta
         A onça, o tigre, o leão.          A nossa conservação.
                  Todos amam: só Marília          Todos amam: só Marília
                  Desta Lei da Natureza                Desta Lei da Natureza
                  Queria ter isenção?            Não deve ter isenção."

         3) O Bucolismo na poesia arcádica é também uma decorrência da volta ao passado clássico quinhentista e greco-latino. Fundamentado nos autores bucólicos, o Neoclassicismo fez dessa matéria uma de suas principais temáticas poéticas. A poesia pastoril ou bucólica, sem dúvida, não é apenas um postulado estético a que devia seguir o poeta. Chegou mesmo a representar uma idealização da vida, inclusive, numa tentativa de identificação com os modelos gregos, os poetas arcádicos chegaram a usar nomes de pastores: Gonzaga (Dirceu), Cláudio (Glauceste/Alceste), Basílio da Gama (Termindo Sipílio).

 A própria criação de arcádias (daí o nome Arcadismo para este estilo'de época) mostra muito bem essa idealização da vida campesina.

Mostrar o bucolismo de Marília de Dirceu é demonstrar o óbvio, dado o predomínio quase que total da atmosfera pastoril nas liras, sobretudo na Parte I:

         "Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
         Que viva de guardar alheio gado;
         De tosco trato, d'expressões grosseiro,
         Dos frios gelos, e dos sóis queimado,
         Tenho próprio casal, e nele assisto;
         Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
         Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
         E mais as finas lãs, de que me visto.
                  Graças, Marília bela,
                  Graças à minha Estrela!

         Eu vi meu semblante numa fonte,
         Dos anos inda não está cortado:
         Os Pastores, que habitam este monte,
         Respeitam o poder do meu cajado:
         Com tal destreza toco a sanfoninha,
         Que inveja até me tem o próprio Alceste:
         Ao som dela conserto a voz celeste;
         Nem canto letra, que não seja minha.
                  Graças, Marília bela,
                  Graças à minha Estrela!

         Irás divertir-te na floresta,
         Sustentada, Marília, no meu braço;
         Ali descansarei a quente sesta,
         Dormindo um leve sono em teu regaço.
         Enquanto a luta jogam os Pastores,
         E emparelhados correm nas campinas,
         Toucarei teus cabelos de boninas,
         Nos troncos gravarei os teus louvores.
                  Graças, Marília bela,
                  Graças à minha Estrela!" (Lira 1)

         4) Convívio com a Natureza. Aceitando o conceito de arte como imitação da natureza, os autores neoclássicos procuram valorizá-la, recriando-a através de escrições em que era embelezada em seus aspectos considerados apoéticos. A natureza dos árcades era, pois, a verossímil e não a real, de natureza universal e aceita como a ideal. Sem dúvida, o convívio com a natureza se fundamenta numa postura de bastante voga na época: o "fugere urbem" (=fugir da cidade), que é exatamente a busca da simplicidade manifestada através do bucolismo.
 

Muitas vezes, a natureza chega a exercer o papel de confidente, como nos sonetos de Cláudio Manoel da Costa, onde a natureza participa da desventura amorosa do poeta, escutando as suas lágrimas e recolhendo os seus soluços:

         "Grutas, troncos, penhascos da espessura,
         Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
         Mostrai, mostrai-me a sua formosura."

Em Gonzaga, se a natureza não exerce o papel de confidente como em Cláudio, está presente de modo avassalador, como cenário dos seus idílios e devaneios amorosos, a ponto de transformar a íngreme e montanhosa Vila Rica em doces e amenos campos de pastagens ("locus amoenus"), onde vivem os pastores e seus rebanhos. A presença da natureza nas liras é uma constante: a natureza verossímil, idealizada - não a verdadeira, como se pode notar na lira 5 (I):

         "Aqui um regato                       Mas como discorro?
         Corria sereno                   Acaso podia
         Por margens cobertas                Já tudo mudar-se
         De flores, e feno:                            No espaço de um dia?
         A esquerda se erguia          Existem as fontes,
         Um bosque fechado,                E os feixos copados;
         E o tempo apressado,             Dão flores os prados,
         Que nada respeita,                  E corre a cascata,
         Já tudo mudou.                           Que nunca secou.
                  São estes os sítios?          São estes os sítios?
                  São estes; mas eu                            São estes; mas eu
                  O mesmo não sou.             O mesmo não sou.
                  Marília, tu chamas?             Marília, tu chamas?
                  Espera, que eu vou             Espera, que eu vou."

         5) Manifestações Pré-Românticas. É fato incontestável o caráter transitório do Arcadismo ou Neoclassicismo, principalmente com poetas da categoria de um Bocage ou de um Gonzaga. Assim, "ao mesmo tempo que se busca o primado absoluto da razão, cultiva-se o sentimento, a sensibilidade, o irracionalismo" (Afrânio Coutinho) - características tipicamente românticas. Vimos atrás o retrato estereotipado de Marília. Vejamos agora como o poeta se desprende dos clichês e convenções arcádicas, numa visível atitude romântica (I, 2):

         "Pintam, Marília, os Poetas          Porém eu, Marília, nego,
         A um menino vendado,                Que assim seja Amor; pois ele
         Com uma aljava de setas          Nem é moço, nem é cego,
         Arco empunhado na mão;            Nem setas, nem asas tem.
         Ligeiras asas nos ombros,                 Ora, pois, eu vou formar-lhe
         O tenro corpo despido,                 Um retrato mais perfeito
         E de Amor, ou de Cupido          Que ele já feriu meu peito;
         São os nomes, que lhe dão.                 Por isso o conheço bem."

E o que dizer do tom confessional e plangente, da sensibilidade e emoção, da cor local existente em muitas liras do livro? - Sem dúvida, são características decisivamente românticas. É o Romantismo que está chegando. Não se pode, absolutamente, dizer que o poeta está preso às limitações neoclássicas. As asas da imaginação e da liberdade criadora estavam nascendo! Com mais um pouco, o poeta estaria navegando por esferas nunca dantes navegadas: a esfera do sonho e da imaginação; da emoção e do subjetivismo, que se revelam sobretudo na Parte II, onde Gonzaga vai se libertando de Dirceu e chega mesmo a predominar sobre Marília.

Assim, concluindo, podemos dizer que a poesia neoclássica em Gonzaga "apresenta duas faces contrastantes e complementares: quando imita os moldes clássicos e quinhentistas, é arcádica propriamente dita, ou neoclássica; quando reflete as novas inquietações que preparavam a eclosão do Romantismo, é pré-romântica " (Massaud Moisés).

O ESTILO DE GONZAGA NAS LIRAS

No prefácio à Marília de Dirceu (Lisboa, 1957), Rodrigues Lapa, comentando o estilo de Gonzaga, afirma que "não é a persistência dos elementos tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dão definitivamente o seu estilo. Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforço de remoer sem cessar a antiguidade. Um amor sincero, na idade em que o homem sente fugir-lhe o ardor da mocidade, e uma prisão injusta e brutal - foram estas duas experiências que fizeram desferir à lira de Dirceu acentos novos.

Estamos ainda convencidos de que o clima americano, mais arejado e mais forte, contribuiu poderosamente para a revelação desse estilo, em que se sentem já nitidamente os primeiros rebates do romantismo e a impressão iniludível das idéias do tempo."Partindo daqui, podemos apontar três fatores básicos que contribuíram para a individualidade poética de Gonzaga: o romance com a menina Maria Dorotéia; a prisão injusta e brutal, como inconfidente; e a magia da natureza e do clima tropical.

Aqui vale ressaltar também a influência de Cláudio Manoel da Costa (Glauceste ou Alceste, nas liras) a quem o poeta devotava grande amizade e admiração, e que Antônio Cândido defende como elemento fundamental na criação das liras gonzagueanas: "sem Dorotéia e sem Cláudio não teríamos a sua obra" - a primeira como fonte de inspiração: "o amor"; o segundo como elemento policiador de seus versos: "a técnica".

A presença de Maria Dorotéia Joaquina de Seixas - sob o nome pastoril de Marília - é fato insofismável; o lirismo amoroso e idílico tecido à volta de uma experiência concreta - a paixão, o noivado, a separação - é igualmente fato inegável e insofismável: o tema do livro é, pois, Marília, sinônimo de Amor - fonte inspiradora do poeta, quer como mulher física e concretamente sentida, quer como uma vaga pastorinha - objeto ideal de poesia que vai e vem como peteca: por isso mesmo, ora é loura, ora morena, como já vimos.

Ademais, sob essa mesma Marília, sentida de carne e osso (cf. I, 14 outras) ou idealizada como esposa dedicada e firme (cf. II, 4), podem esconder pedaços de Lauras, Nises ou Elviras, como revela a Lira 5 da Parte III (confronte-se com I, 1).

Assim, negar a presença física e concreta de Maria Dorotéia nas liras é incorrer em tão grasso engano quanto negar a presença da pastora Marília: ambas têm um lugar ao sol nas liras, assim como têm presença garantida no livro o poeta ouvidor Tomás Antônio Gonzaga e o pastor Dirceu.

A influência de Cláudio Manuel da Costa nas liras é fato que Antônio Cândido defende com fortes argumentos. Com efeito, há diversas referências nas liras e Cláudio (Glauceste ou Alceste) como:

a)     elogiando-o pela sua posição que considerava superior (I, 31):

                  "Porém que importa
                  não valhas nada
                  seres cantada
                  do teu Dirceu?
                  Tu tens, Marília,
                  cantor celeste;
                  o meu Glauceste
                  a voz ergueu:
                  irá teu nome
                  aos fins da terra
                  e ao mesmo Céu."

         b) na lira 1 (I), onde traça o próprio perfil, manifesta o orgulho de ser admirado pelo "poeta das lágrimas tristes":

                  "Com tal destreza toco a sanfoninha
                  que inveja até me tem o próprio Alceste."

         c) comovente a bela é também a amizade que unia os dois poetas, como se pode ver na lira 12 (II):

                  "Quando passar pela rua
                  o meu companheiro honrado,
                  sem que me vejas com ele
                  caminhar emparelhado,
                  tu dirás: Não foi tirana
                  somente comigo a sorte;
                  também cortou desumana
                  a mais fiel união."

O mais curioso dessa amizade, como observa Rodrigues Lapa, "é que Cláudio Manuel da Costa, ao tempo que Gonzaga escrevia estes versos (na prisão), estava denunciando o amigo como comprometido na conjura!"

Segundo ainda Antônio Cândido esta amizade contribuiu grandemente para a individualidade e naturalidade do estilo de Gonzaga: "Mais notável se torna o calor dessa fraternidade sem ciúmes, se repararmos que Gonzaga vinha de certo modo superar a obra de Cláudio, trazendo à literatura luso-brasileira um tom moderno dentro do Arcadismo, deslocando para um plano mais individual e espontâneo a naturalidade, que na geração anterior ainda é quase acadêmica.

" Assim, Cláudio nem combatia nem rejeitava essas manifestações, espontâneas e inovadoras. "Pelo contrário, emenda os versos do amigo, certamente entusiasmado e rejuvenescido pelo seu cristalino frescor; e, quem sabe, sentindo neles a conseqüência natural da reforma que ajudara a empreender, trinta anos antes, em busca da naturalidade."

A "prisão brutal e injusta" contribuiu, igualmente, conforme Rodrigues Lapa, para novos acentos, singulares tonalidades da poesia gonzagueana: amargurado pela incompreensão e injustiça dos homens, a poesia de Gonzaga expressa a dura realidade circundante. Traduz o estado de espírito do tempo que passou na prisão. Para abrandar o seu martírio apenas uma realidade existe: a doce lembrança de Marília.

Colocado face a face com a realidade brutal, ganha a sua poesia novos acentos, maior autenticidade, dissipando-se, em parte, aquele idealismo e convencionalismo dominante na Parte I. E assim, pelo tom confessional e plangente, pela presença de saudade, ganha a sua poesia maior dose de individualidade e naturalidade, podendo muitas liras ser arroladas no pré-romantismo, como estes versos da lira 2, (II):

         "Eu tenho um coração maior que o mundo,
         tu, formosa Marília, bem o sabes:
                  Um coração, e basta,
                  onde tu mesma cabes."

Nascido em Portugal (Porto), o luso-brasileiro Gonzaga não poderia ficar indiferente à paisagem brasileira. Na sua poesia, a natureza tem presença garantida, como já ressaltamos, desde a cor local da famosa lira 3, (III), até a visão que revela "um estado de alma", ainda de "inspiração puramente romântica" como se pode notar na lira 5, (I):

         "Os sítios formosos,
         que já me agradaram,
         ah! não se mudaram;
         mudaram-se os olhos,
         de triste que estou.
                  São estes os sítios?
                  São estes, mas eu
                  o mesmo não sou.
                  Marilia, tu chamas!
                  Espera, que eu vou."

Ainda com relação ao estilo de Gonzaga, podemos notar a presença de alguns aspectos lingüísticos que sobressaem nas suas liras, como a predileção por certas palavras ("beiço" para "lábios", "discurso" para "juízo", "inteligência" etc.); inversões ("são que os de Apolo mais belos"); a repetição de vocábulos, numa técnica superlativa sui-generis, como:

         "Ah! enquanto os destinos impiedosos
         não voltam contra nós a face irada,
         façamos, sim, façamos, doce amada,
         os nossos breves dias mais ditosos."

         E assim em muitas outras passagens.


ESTRUTURA DAS LIRAS DE GONZAGA

Com relação à estrutura das liras gonzagueanas, podemos dizer que se distribuem por duas partes, visto ser a terceira constituída de composições que pertencem à primeira ou segunda partes, além de trazer outras espécies literárias que estão fora do objeto do nosso estudo: os sonetos e as odes.

Parte I. Na primeira parte (anterior à prisão) mostra-se o poeta cheio de esperanças, fazendo projetos conjugais, defendendo o ideal de vida burguês. De um modo geral, predomina o convencionalismo arcádico, embora possamos já constatar a presença de manifestações pré-românticas que se acentuarão na Parte II. Aí, com efeito, se constata mais intensamente a presença da mitologia, do bucolismo, da imitação, do racionalismo - postulados estéticos caracterizantemente arcádicos e neoclássicos.

Nesta primeira fase, conforme Antônio Cândido, "denota preferência pelo verso leve, tratado com facilidade", como revela essa odezinha de sabor anacreôntico (I, 4):

         "Se alguém te louvava,                 Se estavas alegre,
         De gosto me enchia;                           Dirceu se alegrava;
         Mas sempre o ciúme                    Se estavas sentida,
         No rosto acendia                   Dirceu suspirava
         Um vivo calor                                  À força da dor.
                  Marília, escuta                   Marília, escuta
                  Um triste Pastor.                   Um triste Pastor."

Parte II. A segunda parte das liras traz a marca dos dias de masmorra, longe de sua pastora e de seu rebanho, curtindo a amargura da prisão. Daí o caráter nitidamente pré-romântico que perpassa as diversas liras que a constituem e que nos lembra Casimiro de Abreu, posteriormente, com sua poesia da saudade.

A dimensão onírica de que está impregnada esta segunda parte é outro elemento decisivamente pré-romântico: o poeta vive de sonhos ou do tempo passado. Veja-se neste sentido a lira 9, onde conclui o poeta:

         "Assim vivia...
         Hoje os suspiros
         O canto mudo;
         Assim, Marília,
         Se acaba tudo."

É curioso observar na Parte II o emprego do verbo no passado: o poeta vive de lembranças e recordações passadas. A realidade que o cerca é o mal presente. É interessante observar, neste sentido, a lira 15, onde o poeta revive o mesmo ambiente bucólico que envolve a lira 1, (I) - do bem passado. Mas note-se que o poeta jamais perde a esperança de rever Marília, de reconstruir tudo - porque crê na sua inocência:

         "Ah! minha Bela; se a Fortuna volta,
         Se o bem, que já perdi, alcanço, e provo;
         Por essas brancas mãos, por essa faces
         Te juro renascer um homem novo;
         Romper a nuvem, que os meus olhos cerra,
         Amar no Céu a Jove, e a ti na terra."

Enfim, é ocioso ressaltar as recordações do bem passado e a brutal realidade do mal presente. As primeiras, o poeta as revive oniricamente, a segunda, embora sempre esperançoso, levava o poeta, muitas vezes, à revolta (II, 16):

         "A quanto chega
         A pena forte!
         Pesa-me a vida,
         Desejo a morte,
         A Jove acuso,
         Maldigo a sorte,
         Trato a Cupido
         Por um traidor.
         Eu já não sofro
         A viva dor."

 Do ponto de vista técnico, é preciso que se ressalte aqui também a estrutura métrica das liras. Conforme observa Cavalcânti Proença, "a versificação é pouco variada e, a par dos versos de quatro sílabas, melhor ditos células métricas, vêm a redondilha menor, com acentuação na 2.ª e 5ª sílabas; o heróico quebrado, sempre em combinação; a redondilha maior; o decassílabo."

Assim, exemplificando, temos:

a) tetrassílabo (quatro sílabas):
                  "A/mi/nha a/ma/da
                  É/mais/for/mo/sa,
                  Que/bran/co/lí/rio
                  Do/bra/da/ro/sa"

b) pentassílabo ou redondilha menor (cinco sílabas):
                  "Mal/vi/o/teu/ros/to,
                  O/san/gue/ge/lou/-se,
                  A/lín/gua/pren/deu/-se,
                  Tre/mi,/e/mu/dou/-se,
                  Das/fa/ces/a/cor"

c) heptassílabo ou redondilha maior (sete sílabas):
                  "Tem/re/don/da e/li/sa/tes/ta
                  Ar/que/a/das/so/bran/ce/lhas
                  A/voz/mei/ga a/vis/ta ho/nes/ta
                  E/seus/o/lhos/são/uns/sóis"

d) decassílabo (dez sílabas) com heróico quebrado ou hexassílabo (seis sílabas):
                  "É/cer/to/mi/nha a/ma/da/sim/é/cer/to
                  Qu'eu/as/pi/ra/va/va a/ser/de um/ce/tro/o/do/no;
                  Mas/es/te/gran/de im/pé/rio/que eu/fir/ma/va
                            Ti/nha em/teu/pei/to o/tro/no"




PRESENÇAS MARCANTES NAS LIRAS

Vamos tentar esboçar aqui o retrato e caracteres de algumas figuras que transparecem nas liras de Gonzaga, catalisadas pela pastora Marília (Maria Dorotéia Joaquina de Seixas) e o pastor Dirceu (Tomás Antônio Gonzaga), além de outro pastor Glauceste ou Alceste (Cláudio Manuel da Costa) que reponta aqui e ali nas liras, como já ressaltamos.

a) Maria Dorotéia Joaquina de Seixas (Marília). Já falamos de Marília ao longo deste comentário. Parece-nos que ficou claro o retrato de Marília (figura vaga, sem existência concreta - objeto ideal de poesia) e o de Maria Dorotéia (amada de Gonzaga, menininha de 17 anos que faz o poeta quarentão vibrar, como na Lira 14 (I)) e outras. Além de outras indicações, veja-se a lira 2 (I), que traça o perfil da amada do poeta.

b) Tomás Antônio Gonzaga (Dirceu). Sem dúvida, pode-se afirmar que as liras são a expressão do "eu" do poeta, onde se revela altivo e apaixonado. Fala com naturalidade e abundância da sua inteligência, posição social, prestígio, habilidades (cf. I, 1). Preocupa-se com a aparência física e a erosão da idade (cf. I, 14 e 18); com o conforto, futuro, planos, glória (cf. II, 15) etc. A esse propósito, Antônio Cândido observa que "talvez a circunstância de namorar uma adolescente rica (ele, pobre e quarentão) tenha exarcebado essa tendência, que seria além disso exibicionismo compreensível de homem apaixonado."

Por outro lado, impressionam a firmeza e a sabedoria reveladas nas liras da prisão: "nenhum momento de desmoralização ou renúncia; sempre a certeza da sua valia, a confiança nas próprias forças". É o pastor Dirceu que se "despastoraliza", tornando-se cada vez mais o poeta Tomás Antônio Gonzaga, que se exterioriza e que confia na sua inocência.

c) Cláudio Manuel da Costa (Glauceste ou Alceste). Já vimos a presença de Cláudio nas liras e a amizade que unia os dois poetas, em que se nota também a admiração que Gonzaga nutria pelo poeta mais velho. Outra referência a Cláudio pode-se ver na lira 7 (II), onde Gonzaga parece ignorar a prisão e morte do grande amigo.
d) Na lira 38 (II), onde Gonzaga faz a justificação da sua inocência, há uma alusão a Tiradentes, cabeça da conjuração, que era tido por todos como alucinado:

                  "Ama a gente assisada
         A honra, a vida, o cabedal tão pouco,
                  Que ponha uma ação destas
         Nas mãos dum pobre, sem respeito e louco?"

A lira 23 (II) é um elogio ao Visconde de Barbacena, governador de Minas, destinada a captar-lhe a benevolência. O visconde foi quem mandou prender Gonzaga mas fora-lhe um dos amigos mais caros.
  


Na poesia árcade o poeta tem a preocupação constante em nos passar com o tema, a busca pela clareza, simplicidade e equilíbrio. Para isso usa como pano de fundo a natureza e o sentimento bucólico.

A cultura grega tem papel importantíssimo, pois dela ele serve-se em muitos casos e faz-se necessário sua compreensão para melhor entender a passagem em liras do poema “Marília de Dirceu”, que reflete a visão estereotipada da mitologia, retratando a mulher ideal, em que no próprio nome “Marília” já vemos a junção de dois termos: mar e ilha, ou seja a beleza e poder buscada pelos gregos através de ilhas e mares. Dirceu nos lembra os grandes conquistadores e desbravadores gregos.

“Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,”
Que viva de guardar alheio gado;

Neste verso o eu-lírico se dirige à mulher da maneira informal apresentando-se e se auto afirmando ao usar o pronome pessoal “eu” e o possessivo “sou” .

Já o pronome indefinido “algum” nos leva a pensar que ele é alguém bem mais que um simples vaqueiro que cuida de gado alheio, ele afirma ter seu próprio rebanho. E os termos “vaqueiro”, “viva” “gado” nos lembra a simplicidade e bucolismo da aurea mediocritis , é um traço da poesia horaciana, que idealizava a vida no campo, vivendo sem luxos.

“De tosco trato, d’ expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;”

O eu-lirico vem nos mostrar que preocupa-se com a aparência e suas expressões são finas, é vaidoso como homem burguês, mas conhece o campo como o camponês. Possui e afirma dar muita importância a seus bens materiais com o termo “tenho próprio casal” tem orgulho em possuir casa própria

“Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.”

A fartura que o abastece é também rica, fina em especiarias não comuns ao camponês e sim ao homem bem colocado na sociedade. É o ideal burguês presente na fala do poeta., o orgulho em poder se sustentar e aos demais de sua casa com seu próprio ganho.

“Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!”

Com estes versos ele nos afirma ter tudo que possui graças à sorte, esses versos terão efeito minimônico no decorrer de tudo a lira.

“Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos inda não está cortado:”

Aqui percebe-se o retorno à mitologia grega com a lembrança do mito de Narciso, que se envaidecia ao se ver refletido na água. O eu-lírico também se olhar e se admira por ainda não possuir rugas apesar de ser mais velho que a jovem Marília.

“Os pastores, que habitam este monte,
respeitam o poder do meu cajado”

Ele novamente mostra-nos seu poder diante dos demais habitantes da região, tem mais poder e é respeitado como tal.

“Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha,”

Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

O eu –lirico orgulha-se e diz ser admirado pelo próprio grego poeta das lágrimas tristes. E diz ainda que suas letras não de própria autoria, negando assim que esteja fazendo cópia de alguma obra literária.

“Mas tendo tantos dotes da ventura,
Só apreço lhes dou, gentil Pastora,”

Aqui ele a pede em casamento, pois já pode, já possui bens necessários.

“Depois que teu afeto me segura,
Que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono”

O eu-lírico nos mostra que o querer bem é importante e vem em primeiro plano, mas possuir bens agrada também.

“É bom, minha Marília, é bom ser dono”
De um rebanho, que cubra monte, e prado;”

Reafirma ser capitalista, estar interessado na segurança que o poder econômico lhes trarão.

“Porém, gentil Pastora, o teu agrado
Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!”

Observamos que o eu-lírico coloca nestes versos um toque de romantismo ao usar a conjunção “porém” que dá idéia de adversidade, ou seja , nem tudo parece ser como é , existe para ele o amor que é muito mais importante que tudo isso. E ele faz questão de mostrar isso à amada, substituindo os bens materiais, pelo amor que tem por ela.

“Os teus olhos espalham luz divina,
A quem a luz do Sol em vão se atreve:
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual tesouro.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!”

A idealização da mulher para o eu-lírico é essencial, assim as sensações imediatas são muito importantes para a conquista, pois ela ficará fascinada com palavras que a valorizem. Ele usa um excesso de metáforas ao longo de toda a extrofe.

Comparando-a com “luz divina”, “sol”, “rosa” “neve” “ouro” “balsamo”, tesouro” ou seja, tudo que uma mulher gosta, ser admirada e comparada à coisas boas e belas.

“Leve-me a sementeira muito embora
O rio sobre os campos levantado:
Acabe, acabe a peste matadora,
Sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso:
Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
Para viver feliz, Marília, basta
Que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!”

Todo a estrofe reflete a fugere urbem, pois o eu lírico raciocina e nos mostra que é possível ter uma vida simples no campo, longe de toda complicação da cidade, ele consegue mostrar-se para a amada sendo racional ao usar a conjunção aditiva “nem” para dizer que apesar de não se importar tanto com os bens ele também não ela não deixa se levar pela cegueira da paixão avassaladora que sente por ela. E quer apenas como retribuição a esse amor um “riso”.

“Irás a divertir-te na floresta,
Sustentada, Marília, no meu braço;
Ali descansarei a quente sesta,
Dormindo um leve sono em teu regaço:”

Enquanto a luta jogam os Pastores,
E emparelhados correm nas campinas,
Toucarei teus cabelos de boninas,
Nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!”

A amada terá uma vida plena, feliz, aconchegante e protegida de tudo, se ficar com ele e acalenta-lo, aí vemos o locus amoenos, desejado pelo eu lírico.

“Depois de nos ferir a mão da morte,
Ou seja neste monte, ou noutra serra,
Nossos corpos terão, terão a sorte
De consumir os dois a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
Lerão estas palavras os Pastores:
"Quem quiser ser feliz nos seus amores,
Siga os exemplos, que nos deram estes."

Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

Faz projetos para o futuro, que estarão juntos até a morte. E sugere até o que deve ficar escrito na lápide de seus túmulos. Termina por nos dizer que sua amada é bela, e que por isso tem sorte.

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