domingo, 12 de fevereiro de 2012

Mário de Andrade: Lira paulistana


Mário de Andrade, por Lasar Segall


Figura central do modernismo brasileiro, o paulistano Mário de Andrade (1893-1945) foi muito mais do que poeta. Músico, romancista, contista, professor, estudioso de cultura popular, ensaísta, prolífero escritor de cartas e — como se diz hoje —poderoso agitador cultural, ele parece confirmar a multiplicidade anunciada no verso: "Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta".

Mário era tantos que fica difícil dizer onde está sua maior força. No poeta escandaloso de Paulicéia Desvairada (1922)? No romancista de Macunaíma, O Herói sem Nenhum Caráter (1928)? No ensaísta? No inveterado escritor de cartas?

Do poeta selecionamos três trechos de poemas. Primeiro, a parte inicial de "A Meditação sobre o Tietê", poema longo, terminado em fevereiro de 1945, treze dias antes da morte do criador de Macunaíma.

"A Meditação" é um poema denso e maduro, no qual o poeta passa em revista sua vida e reafirma sua crítica aos "plutocratas e todos os que são chefes e são fezes". Reafirma, também, sua crença na fraternidade e em "tudo aquilo que fica pra cá do grito metálico dos números, e tudo o que está além da insinuação cruenta da posse".

O poema "Quando eu Morrer", também escrito no final da vida de Mário, é na verdade um trecho sem título da coletânea Lira Paulistana,
publicada postumamente. Fiel à sua cidade, o poeta quer permanecer nela, nesse poema-testamento. Vejam que nem nessa hora ele abre mão da ironia.

Por fim, vem o trecho VII dos "Poemas da Amiga", escritos entre 1929 e 1930. Nesses poemas destaca-se o Mário em exercício amoroso.

Atenção: ao transcrever os poemas, deixei de lado a ortografia peculiar de Mário, que escrevia, de forma propositada, "siquer", "ólio", "olioso" e "si" (em lugar de "se", conjunção).



A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ
                           (trecho inicial)


                    Água do meu Tietê,
                    Onde me queres levar?
                    — Rio que entras pela terra
                    E que me afastas do mar...


É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco
                                            [ admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oleosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como se a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de
                                            [ apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De
                                            [ repente
O óleo das águas recolhe em cheio luzes
                                            [ trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios
                                            [ e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e
                                            [ fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada
                                            [ forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E
                                             [ deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de
                                             [ novo,
Está negro. As águas oleosas e pesadas se
                                             [ aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um
                             [ caminho de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração
                                   [ devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite
                           [ insone e humana.

                            De Lira Paulistana

 

QUANDO EU MORRER
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
          Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
          Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
          Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
          Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
          Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
          Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
          Adeus.

                            De
Lira Paulistana

 
POEMAS DA AMIGA
VII

Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e de um branco
Ecoando azuis profundos.

Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.

Estamos no interior duma asa
Que fechou.

                            De "Poemas da Amiga", 1929-1930

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